Fugas - Vinhos

Um dia nas vindimas

Por Joana Bourgard (vídeo) e Carla B. Ribeiro

Fomos às vindimas a Campo Maior, por terras do projecto vitivinícola de Rui Nabeiro, a Adega Mayor, que inclui traço de Siza Vieira. A colheita arranca aos primeiros raios de sol e segue-se todo um percurso de devoção à uva. A enóloga Rita Carvalho é a nossa guia por este dia de vindima. A colheita já terminou mas, ao longo do ano, há muitas e boas razões vitivinícolas para passar por aqui.
Enquanto os olhos vagueiam por estas linhas, já só restam as varas das videiras nuas pelas vinhas de Campo Maior ou algumas netas que se desenvolveram entretanto em cachos tardios mas que já não serão aproveitadas nesta colheita. A razão é simples: ao contrário do que sucede habitualmente, o Verão de 2011 não foi marcado por temperaturas exorbitantes nesta zona fronteiriça.

"Houve um ano que, em Julho, chegámos a registar mais de 50 graus entre as vinhas", conta-nos Ricardo Leonardo enquanto nos guia por entre talhões doces e sumarentos de Alicante Bouschet, uma das quatro castas estrangeiras que marcam presença nos cerca de 65 hectares de vinha (55ha junto à adega e outros 10ha num campo um pouco mais afastado) onde dominam as castas nacionais - "cerca de 90 por cento". E, nesses dias de calor quase insuportável, o ciclo da uva entra numa espécie de hibernação de forma a proteger os valiosos bagos. Mas, este ano, isso não aconteceu.

Pelo contrário: as temperaturas amenas fizeram com que a planta não tivesse entrado no seu ciclo vegetativo e a vindima começou mais cedo. De tal forma que, no fim de Agosto, mais de metade já ia colhido. "Mais uma semana e damos a vindima por terminada", confirmava, aquando a visita da Fugas na segunda semana de Setembro, Rita Carvalho, enóloga da Adega Mayor, de onde saem vinhos como Reserva do Comendador ou Pai Chão.

A certeza é dada com algum pesar: a verdade é que esta "é a altura mais divertida do ano". Aos 13 funcionários que permanentemente cuidam das vinhas juntam-se outros tantos para o trabalho que se impõe: transformar as bagas em néctar, enquanto milhares aproveitam o bom tempo para visitar a adega, projectada por Álvaro Siza, que, num branco minimalista e encaixada entre os campos de vinha, atrai curiosos desde 2007.

E este ano mais ainda: as Festas do Povo de Campo Maior, que enfeitaram as ruas com perfeitas e coloridas flores de papel, abriram as portas da vila a mais de um milhão de curiosos e muitos foram os que não deixaram de visitar a adega.

"Os dias das festas foram uma loucura, entre prosseguir a vindima, receber milhares de visitas por dia (ao que ajudou o facto de a adega disponibilizar transporte gratuito desde a vila) e ainda sair a tempo de aproveitar os festejos." Por estes dias, com as festas terminadas, os visitantes vão chegando mais pausadamente. O dia é de semana, por isso a maioria dos que chegam à adega e que se vão cruzando connosco ora são casais de reformados ora famílias ainda de férias. E todos os dias surgem espanhóis que atravessam regularmente a fronteira, a parcos quilómetros.

O percurso é acompanhado: vêse o processo de transformação da uva em vinho, descobrem-se os detalhes que fazem com que o edifício de 120m por 50m se tenha embrenhado na paisagem, sobese ao espelho de água implantado numa cobertura arrelvada que, em conjunto, ajudam a manter as características de temperatura e humidificação da sala que cobrem - onde os vinhos estagiam em barricas, de carvalho francês ou americano, e em garrafa -, e por fim degusta-se o produto final (as visitas incluem a prova de pelo menos dois vinhos). A experiência pode ser completada numa Rota Mayor - com uma visita ao Museu do Café, almoço no Aperta Azeite, espaço de restauração em Campo Maior do grupo, e dormida no Hotel Santa Beatriz.

A recente vertente de enoturismo ainda tem muito por onde crescer e, até agora, a vindima ainda não foi aberta ao exterior. Mas o processo da monda - retirar cachos quando em número excessivo para melhorar a qualidade da uva final - já foi partilhada por convidados num pacote que incluía ainda a experiência de casar gastronomia e vinhos com o chef José Júlio Vintém, do restaurante Tomba Lobos.

Ainda sem possibilidade de arregaçar mangas, há sempre a opção de seguir um dia de vindima que começa quando a uva assim o entende: "Queremos que o vinho saia o melhor possível e para isso temos de respeitar uma série de regras", explica Rita Carvalho. "É a uva que dita quando está pronta e depois disso temos de ser rápidos." Até porque este "é um processo em que a dada altura se deixa de ter algum controlo". Isto "se se quiser respeitar a uva e o campo".

Rápidos e madrugadores, acrescentamos nós. Assim que o sol nasce começa a azáfama, aproveitando ainda as horas mais frescas do dia. "Em Agosto começávamos às seis; agora estamos a começar pelas seis e meia". Cerca de 30 minutos depois do início da jornada, a Fugas chegava ao local e já caixas cheias de redondinhos bagos escuros - "se a casca se desfizer na boca e a grainha se revelar crocante, é sinal de que está pronta" - iam ocupando as fileiras de vinha.

Caixas e conversas que "animam os homens" (este ano, no campo só havia homens; já na adega foi o sexo feminino a predominar ao longo da vindima) e ajudam a passar o tempo. "Trabalha-se até às duas e meia da tarde, mais ou menos, mas a partir de uma certa hora já se está a preparar o trabalho do dia seguinte: é preciso lavar as caixas, os tractores, a maquinaria...".

"É um trabalho duro", conclui Rita Carvalho. Depois de um ano a cuidar da vinha, debaixo de chuva ou sol, as vindimas são o culminar de todo o investimento de cada um.

Mas isso não quer dizer que já não haja muito a fazer. No campo, há trabalho para o qual é preciso olho vivo, para escolher os melhores cachos, e ao mesmo tempo uma certa delicadeza, para não danificar as varas ao cortá-los. "Cada cacho de uva é [para quem os colhe] super valioso" e "qualquer cacho que caia ao chão [alguém] vai apanhar com todo o cuidado para não se perder", relata a enóloga.

Não é preciso só cuidado; é necessária rapidez e vários pares de mãos extra. Tanto que é a altura em que surgem os trabalhadores sazonais: "isto está a acabar e depois vou para a fruta, para Espanha", comentava um dos homens enquanto as suas mãos empedernidas vão pegando e cortando cacho a cacho com uma gentileza insuspeitável. O objectivo, explica a especialista em vinhos, é começar e acabar um talhão e, ao mesmo tempo, encher um depósito num só dia. Uma regra que irá determinar a qualidade do vinho e, quando se chega ao fim da jorna com um depósito por encher, então é preciso um esforço extra. "E se se tiver de colher ao sábado ou ao domingo, então colhe-se." Mas a labuta não acaba com o corte dos cachos. É ainda preciso força de braços para carregar as caixas que vão sendo empilhadas num atrelado. E, por fim, cuidados redobrados ao despejar as caixas no tractor que levará as uvas à triagem final. "É o resultado do trabalho de um ano destes homens; têm muito respeito pela uva", acrescenta Rita Nabeiro, administradora da Adega Mayor.

À porta da adega, quatro pares de mãos ágeis e olhos argutos esperam pelo próximo carregamento. Cabelhes a tarefa de fazer uma última selecção: retirar folhas, bagos secos ou danificados. "Às vezes [os funcionários que trabalham nos campos; alguns desde o início, em 1997] até ficam um bocadinho tristes connosco", acrescenta Rita Carvalho, enternecida. Mas, por vezes, "cachos aparentemente saudáveis não estão em condições - ou estão pouco maduros ou então estão maduros demais - e nós acabamos por os rejeitar". E isto "é quase um insulto ao ano de trabalho que tiveram".

É sem insultos ou má vontade, porém, que nos recebem na "hora da bucha", os trinta minutos, a meio da manhã, que servem para pôr a conversa em dia, soltar gargalhadas e partilhar merendas num ritual diário que revela que vindimar é mais do que cortar e carregar cachos de uva.

Despedimo-nos quando o sol já está a pique e queima sem piedade os menos cuidadosos. Os trabalhos na vinha prosseguem, imunes ao calor e ao sabor do que diz a uva. Afinal de contas, é à volta dela que tudo gira.

Adega Mayor
Herdade das Argamassas
7370-171 Campo Maior
Tel.: 268699440
www.adegamayor.pt
E-mail: visitas@adegamayor.pt
As visitas guiadas à Adega Mayor requerem marcação prévia, embora na adega nos tenham garantido que, sempre que possível, recebem todos quantos chegam. Por marcação, é possível visitar o espaço às 11h, 15h e 17h. O preço é de 3,50€ (crianças com mais de dez anos pagam 2€) e inclui a prova de dois vinhos da gama Monte Mayor.

Como ir
Campo Maior, distrito de Portalegre, dista 225 km de Lisboa, a maior parte dos quais se podem fazer por auto-estrada: A2 até saída 7 (A6 Espanha / Évora / Montemor-o-Novo); A6 até saída para Campo Maior (já após pagamento de portagem: 15,20€), apanhando a EN373. A vila surge cerca de 15 km depois. Do Porto, são 390 km e o melhor caminho é apanhar a A1 até à saída 7 (Abrantes / Torres Novas). Na A23, segue-se até à saída 15 (Portalegre / Nisa). A partir daí, seguir indicações de Portalegre (EN246) e, depois, de Arronches (EN371).

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