"Houve um ano que, em Julho, chegámos a registar mais de 50 graus entre as vinhas", conta-nos Ricardo Leonardo enquanto nos guia por entre talhões doces e sumarentos de Alicante Bouschet, uma das quatro castas estrangeiras que marcam presença nos cerca de 65 hectares de vinha (55ha junto à adega e outros 10ha num campo um pouco mais afastado) onde dominam as castas nacionais - "cerca de 90 por cento". E, nesses dias de calor quase insuportável, o ciclo da uva entra numa espécie de hibernação de forma a proteger os valiosos bagos. Mas, este ano, isso não aconteceu.
Pelo contrário: as temperaturas amenas fizeram com que a planta não tivesse entrado no seu ciclo vegetativo e a vindima começou mais cedo. De tal forma que, no fim de Agosto, mais de metade já ia colhido. "Mais uma semana e damos a vindima por terminada", confirmava, aquando a visita da Fugas na segunda semana de Setembro, Rita Carvalho, enóloga da Adega Mayor, de onde saem vinhos como Reserva do Comendador ou Pai Chão.
A certeza é dada com algum pesar: a verdade é que esta "é a altura mais divertida do ano". Aos 13 funcionários que permanentemente cuidam das vinhas juntam-se outros tantos para o trabalho que se impõe: transformar as bagas em néctar, enquanto milhares aproveitam o bom tempo para visitar a adega, projectada por Álvaro Siza, que, num branco minimalista e encaixada entre os campos de vinha, atrai curiosos desde 2007.
E este ano mais ainda: as Festas do Povo de Campo Maior, que enfeitaram as ruas com perfeitas e coloridas flores de papel, abriram as portas da vila a mais de um milhão de curiosos e muitos foram os que não deixaram de visitar a adega.
"Os dias das festas foram uma loucura, entre prosseguir a vindima, receber milhares de visitas por dia (ao que ajudou o facto de a adega disponibilizar transporte gratuito desde a vila) e ainda sair a tempo de aproveitar os festejos." Por estes dias, com as festas terminadas, os visitantes vão chegando mais pausadamente. O dia é de semana, por isso a maioria dos que chegam à adega e que se vão cruzando connosco ora são casais de reformados ora famílias ainda de férias. E todos os dias surgem espanhóis que atravessam regularmente a fronteira, a parcos quilómetros.
O percurso é acompanhado: vêse o processo de transformação da uva em vinho, descobrem-se os detalhes que fazem com que o edifício de 120m por 50m se tenha embrenhado na paisagem, sobese ao espelho de água implantado numa cobertura arrelvada que, em conjunto, ajudam a manter as características de temperatura e humidificação da sala que cobrem - onde os vinhos estagiam em barricas, de carvalho francês ou americano, e em garrafa -, e por fim degusta-se o produto final (as visitas incluem a prova de pelo menos dois vinhos). A experiência pode ser completada numa Rota Mayor - com uma visita ao Museu do Café, almoço no Aperta Azeite, espaço de restauração em Campo Maior do grupo, e dormida no Hotel Santa Beatriz.
A recente vertente de enoturismo ainda tem muito por onde crescer e, até agora, a vindima ainda não foi aberta ao exterior. Mas o processo da monda - retirar cachos quando em número excessivo para melhorar a qualidade da uva final - já foi partilhada por convidados num pacote que incluía ainda a experiência de casar gastronomia e vinhos com o chef José Júlio Vintém, do restaurante Tomba Lobos.
Ainda sem possibilidade de arregaçar mangas, há sempre a opção de seguir um dia de vindima que começa quando a uva assim o entende: "Queremos que o vinho saia o melhor possível e para isso temos de respeitar uma série de regras", explica Rita Carvalho. "É a uva que dita quando está pronta e depois disso temos de ser rápidos." Até porque este "é um processo em que a dada altura se deixa de ter algum controlo". Isto "se se quiser respeitar a uva e o campo".
Rápidos e madrugadores, acrescentamos nós. Assim que o sol nasce começa a azáfama, aproveitando ainda as horas mais frescas do dia. "Em Agosto começávamos às seis; agora estamos a começar pelas seis e meia". Cerca de 30 minutos depois do início da jornada, a Fugas chegava ao local e já caixas cheias de redondinhos bagos escuros - "se a casca se desfizer na boca e a grainha se revelar crocante, é sinal de que está pronta" - iam ocupando as fileiras de vinha.
Caixas e conversas que "animam os homens" (este ano, no campo só havia homens; já na adega foi o sexo feminino a predominar ao longo da vindima) e ajudam a passar o tempo. "Trabalha-se até às duas e meia da tarde, mais ou menos, mas a partir de uma certa hora já se está a preparar o trabalho do dia seguinte: é preciso lavar as caixas, os tractores, a maquinaria...".
"É um trabalho duro", conclui Rita Carvalho. Depois de um ano a cuidar da vinha, debaixo de chuva ou sol, as vindimas são o culminar de todo o investimento de cada um.
Mas isso não quer dizer que já não haja muito a fazer. No campo, há trabalho para o qual é preciso olho vivo, para escolher os melhores cachos, e ao mesmo tempo uma certa delicadeza, para não danificar as varas ao cortá-los. "Cada cacho de uva é [para quem os colhe] super valioso" e "qualquer cacho que caia ao chão [alguém] vai apanhar com todo o cuidado para não se perder", relata a enóloga.
Não é preciso só cuidado; é necessária rapidez e vários pares de mãos extra. Tanto que é a altura em que surgem os trabalhadores sazonais: "isto está a acabar e depois vou para a fruta, para Espanha", comentava um dos homens enquanto as suas mãos empedernidas vão pegando e cortando cacho a cacho com uma gentileza insuspeitável. O objectivo, explica a especialista em vinhos, é começar e acabar um talhão e, ao mesmo tempo, encher um depósito num só dia. Uma regra que irá determinar a qualidade do vinho e, quando se chega ao fim da jorna com um depósito por encher, então é preciso um esforço extra. "E se se tiver de colher ao sábado ou ao domingo, então colhe-se." Mas a labuta não acaba com o corte dos cachos. É ainda preciso força de braços para carregar as caixas que vão sendo empilhadas num atrelado. E, por fim, cuidados redobrados ao despejar as caixas no tractor que levará as uvas à triagem final. "É o resultado do trabalho de um ano destes homens; têm muito respeito pela uva", acrescenta Rita Nabeiro, administradora da Adega Mayor.
À porta da adega, quatro pares de mãos ágeis e olhos argutos esperam pelo próximo carregamento. Cabelhes a tarefa de fazer uma última selecção: retirar folhas, bagos secos ou danificados. "Às vezes [os funcionários que trabalham nos campos; alguns desde o início, em 1997] até ficam um bocadinho tristes connosco", acrescenta Rita Carvalho, enternecida. Mas, por vezes, "cachos aparentemente saudáveis não estão em condições - ou estão pouco maduros ou então estão maduros demais - e nós acabamos por os rejeitar". E isto "é quase um insulto ao ano de trabalho que tiveram".
É sem insultos ou má vontade, porém, que nos recebem na "hora da bucha", os trinta minutos, a meio da manhã, que servem para pôr a conversa em dia, soltar gargalhadas e partilhar merendas num ritual diário que revela que vindimar é mais do que cortar e carregar cachos de uva.
Despedimo-nos quando o sol já está a pique e queima sem piedade os menos cuidadosos. Os trabalhos na vinha prosseguem, imunes ao calor e ao sabor do que diz a uva. Afinal de contas, é à volta dela que tudo gira.
Adega Mayor
Herdade das Argamassas
7370-171 Campo Maior
Tel.: 268699440
www.adegamayor.pt
E-mail: visitas@adegamayor.pt
As visitas guiadas à Adega Mayor requerem marcação prévia, embora na adega nos tenham garantido que, sempre que possível, recebem todos quantos chegam. Por marcação, é possível visitar o espaço às 11h, 15h e 17h. O preço é de 3,50€ (crianças com mais de dez anos pagam 2€) e inclui a prova de dois vinhos da gama Monte Mayor.
Como ir
Campo Maior, distrito de Portalegre, dista 225 km de Lisboa, a maior parte dos quais se podem fazer por auto-estrada: A2 até saída 7 (A6 Espanha / Évora / Montemor-o-Novo); A6 até saída para Campo Maior (já após pagamento de portagem: 15,20€), apanhando a EN373. A vila surge cerca de 15 km depois. Do Porto, são 390 km e o melhor caminho é apanhar a A1 até à saída 7 (Abrantes / Torres Novas). Na A23, segue-se até à saída 15 (Portalegre / Nisa). A partir daí, seguir indicações de Portalegre (EN246) e, depois, de Arronches (EN371).