Dia 13 de Novembro. A noite promete na Quinta do Noval, anfitriã de um grupo muito especial e influente, os Mad Wine Lovers Of The World. Daquela propriedade do Douro têm saído alguns dos melhores vinhos portugueses de sempre. Um deles, o Porto Vintage Noval Nacional 1931, foi considerado pela revista Wine Spectator como o segundo melhor vinho do mundo do século XX. Não devem existir mais do que umas poucas dezenas de garrafas espalhadas por alguns coleccionadores. Há uns anos, provar uma dessas garrafas ainda continuava a ser a ambição da vida de Christian Seely, o director geral da Axa Millésime, proprietária da Quinta do Noval. Não sabemos se já a cumpriu.
A mesa já está posta quando os sommeliers começam a chegar impecavelmente vestidos de smoking e caminhando como pinguins. Ao segundo dia da excursão a Portugal, preparam-se para o seu tradicional jantar de gala. As barbatanas que todos trazem calçadas mostram o lado “louco” do grupo. Depois de quase um ano a sugerir e a provar diariamente dezenas ou centenas de vinhos, alguns dos melhores sommeliers do mundo viajam até um país vitícola para conhecer novos vinhos, revisitar outros e comer e beber quase sem regra (este ano, o grupo escolheu Portugal). Só param tombados pelo sono e pelo cansaço de tanto rir com as histórias, as cantorias, os discursos humorados e as “palhaçadas” — daí o nome Mad Wine Lovers Of The World.
São cerca de uma dúzia de sommeliers reputadíssimos e com grande poder e influência no negócio do vinho. Um deles, o francês Olivier Poussier, responsável pelos vinhos do grupo Lenôtre, ostenta o título de Melhor Sommelier do Mundo, obtido em 2001, no Canadá. E outros três já venceram o concurso de Melhor Sommelier da Europa: o alemão Bernard Kreis e os franceses Eric Duret e Eric Beaumard. Este, actual director do Restaurante Georges V, no Hotel Four Seasons, em Paris, também já foi vice-campeão do mundo. Do grupo faz parte também João Pires, o único master sommelier português e considerado um dos melhores do mundo da actualidade.
Ninguém sabe que vinhos vai servir Corine, funcionária da Axa Millésime e também ela sommelier. O Noval Nacional 1931 não será, obviamente. O Noval não Nacional do mesmo ano, que dizem não ser inferior, também estará interdito. E o Noval Nacional 1963, talvez a mais lendária colheita de Porto Vintage, não passa de um sonho. Pelo menos, para nós. Cada garrafa custa na loja de Gaia da Noval 5570 euros! É um daqueles vinhos para beber como último desejo. Sobra a expectativa, suficientemente empolgante, de se provar algum Colheita histórico (Porto Tawny de uma só colheita envelhecido em cascos por um período mínimo de sete anos) ou um outro grande Noval Nacional (exclusivo vintage que a quinta produz a partir de uma vinha velha de dois hectares plantada com videiras não enxertadas).
Na mesa, há garrafas de tintos D.O.C da Noval e da Romaneira, para acompanhar uma sopa de nabiças e um delicioso leitão assado. O vinho do Porto vem depois, com a sobremesa. Para acompanhar uma tarte, Corine serve o Noval Colheita 1968, um vinho vibrante, profundo, fresco e ainda muito jovem. É um começo em grande. Chega o queijo Serra da Estrela. “Um dos melhores queijos do mundo”, exulta Éric Boschman. “Remarquable!” (notável), repete Eric Beaumard.
O vinho perfeito
Sempre pela esquerda, como manda a tradição, começa a rodar um decanter com um novo vinho, um vintage. Os sommeliers são desafiados a adivinhar. Não é fácil acertar, mas alguns andam lá perto. É um Noval Nacional. A surpresa chegou com a revelação da idade: 1970. Surpresa porque ninguém dá 41 anos a este vintage. Muitos outros já estariam a definhar, este parece estar ainda a iniciar a adolescência. Está cheio de vigor aromático, com muita fruta, e um palato amplo, picante e cheio de frescor. Fantástico.
O grupo desdobra-se em elogios ao vinho. Olivier Poussier, sempre cartesiano nas apreciações, destaca-lhe a profundidade e a elegância, Eric Beaumard diz tudo sem dizer nada, semicerrando os olhos e apertando os lábios. A conversa flui como o vinho. Com os espíritos de todos já exaltados, chega à mesa mais um Noval Nacional, o 1964. O bouquet é inspirador, mas na boca não confirma as expectativas criadas. Dizer isto assim até pode parecer sacrilégio, porque não deixa de ser um grande vintage. Mas percebemos que não é um vinho perfeito quando nos cruzamos com o vinho perfeito. E foi logo a seguir.
Não estava no programa, mas Corine não resiste ao momento e vai buscar à garrafeira mais um Noval Nacional. Serve o vinho sem abrir o jogo. Repete o desafio da adivinhação, adensa o mistério e depois diz as palavras que ninguém esperava: “Noval Nacional 1963”. O tal que custa 5570 euros. Para mim, e para mais uns quantos, era a primeira vez.
Não são necessários descritores para este vinho, mas podemos dizer tudo que não erramos: sedutoramente doce, picante, mentolado, poderoso na acidez e estrutura de taninos, perfeito no equilíbrio, enorme, intenso, completo. A quintessência de um Porto vintage. A noite pode acabar que já nada apagará a memória de um momento único.
Mas, já na sala de estar, e com o café, ainda se hão-de beber um Noval Crusted 1962 (muito bom) e, para fechar, com o grupo mais reduzido, um Noval Colheita 1964. Depois do Noval Nacional 1963, julgávamos que já nada nos poderia surpreender. Estávamos enganados. O Colheita 64 não é um vintage, é um tawny, mas não um tawny qualquer. Parece que explode na boca, de tão picante e voluptuoso. Pura magia. Um vinho sublime. Olivier Poussier confessa preferi-lo ao Noval Nacional 1963, que custa quase vinte vezes mais. Eric Beaumard já não opina nada, dominado pelo sono. Antes do jantar, já tinha sido eloquente e definitivo: “Nós temos em França grandes vinhos fortificados, mas nenhum se compara ao vinho do Porto.”
O elogio da acidez e da mineralidade
A maioria dos sommeliers que integram o grupo Mad Wine Lovers Of The World conhece bem e aprecia o vinho português. Olivier Poussier, por exemplo, é um grande apaixonado do Douro e da capacidade que esta tem, diz, “para a produção de grandes vinhos tintos de lote”. Mas nas provas e refeições em que a Fugas esteve presente (nos dois primeiros dias da visita) deu para ver que muitos produtores continuam a não “escutar a sirene dos mercados”, como sublinhava Eric Beaumard, insistindo em vinhos potentes, muito concentrados e cheios de madeira.
As reservas de alguns sommeliers foram bem evidentes na prova que fizeram no primeiro dia da viagem no Hotel The Yeatman, em Gaia, com vinhos da Quinta da Gaivosa, Quinta do Ameal, Casa de Cello, Quinta dos Roques e Luís Pato. Um dos vinhos mais criticados, por ser muito extraído, compotado e marcado pela madeira, foi o tinto Abandonado 2007, da Quinta da Gaivosa. Um vinho caro e que a crítica nacional tem colocado nos píncaros. Em contrapartida, toda a gente se rendeu ao Quinta da Gaivosa Tinto 2000, um vinho extraordinário, muito químico, com taninos ainda muito vivos mas cheio de frescura e mineralidade.
Outro vinho que surpreendeu negativamente foi o Quinta dos Roques Encruzado 2010, por ter madeira a mais e ser um pouco enjoativo. Mas do mesmo produtor ouviram-se loas ao fantástico Quinta dos Roques Garrafeira Tinto 2003, um vinho cheio de elegância e frescura que espelha bem a matriz excelsa dos tintos do Dão. Os vinhos com boa acidez, puros, minerais, vibrantes profundos e elegantes, e também já com alguma idade, foram, de resto, os mais elogiados. O Quinta do Ameal Escolha 2001, por exemplo, foi um deles. Um grande Loureiro, muito mineral e seco e com uma acidez vibrante.
A Casa de Cello, por seu lado, causou grande impacto com os seus tintos, enérgicos e frescos, Quinta da Vegia Reserva 2007 e Esquecido 2007, do Dão. E Luís Pato, que levou três colheitas iguais dos tintos Vinha Pan e Vinha Barrosa (2009, 2003 e 1997), deixou bem patente o grande potencial da Bairrada e da casta Baga. Todos os vinhos causaram boa figura, mas o que mais impressionou foi o Vinha Barrosa 2003. Fresquíssimo, muito balsâmico, e de grande estrutura tânica. Um vinho grandioso, para beber já e ir guardando umas garrafas.
Os vinhos portugueses precisam de imagem
Muitos produtores portugueses, demasiados, diga-se, vivem em ânsias perante tipos como Mark Squires, o homem que Robert Parker escolheu para tratar da sua newsletter e, nas horas vagas, provar também os vinhos de Portugal. Squires não gosta de cães (ao contrário do seu patrão), nem de crianças, nem tão-pouco de vinhas. E é duvidoso que também goste muito de vinho, a avaliar pelas notas que dá. Mesmo assim, os produtores portugueses continuam a conceder-lhe crédito e a temê-lo, quando teriam muito mais a ganhar se se preocupassem com a opinião dos grandes sommeliers mundiais, que são quem realmente vende o vinho.
Alguns dos melhores estiveram em Portugal durante três dias. A viagem teve o dedo de Patrícia Marques, da delegação da AICEP em Bruxelas, e de Éric Boschman, melhor sommelier da Bélgica, cronista e autor de um programa na televisão belga RTBF, que enviou uma equipa. Do grupo fez parte um outro belga, o sommelier William Wouters, casado com a enóloga Filipa Pato e um dos grandes embaixadores do vinho português na Bélgica.
João Pires faz o mesmo em Inglaterra. Depois de ter sido chefe sommelier no hotel The Capital e nos restaurantes The Vineyard e Gordon Ramsay, é hoje o director de vinhos do Hotel Mandarin Oriental, em Londres, cujo restaurante, Dinner by Heston Blumenthal, tem à frente o ex-chef do Fat Duck, considerado durante muito tempo o melhor restaurante do mundo.
João Pires tem vários vinhos portugueses na carta, alguns até saem bem. Mas, em geral, continuam “muito desconhecidos”. “A gente não tem má imagem, a gente simplesmente não tem imagem. É uma pena, porque os nossos vinhos são cada vez melhores”, diz. O preço é outro problema. “Os vinhos portugueses são bons, mas não são os melhores do mundo e não têm preços competitivos, em especial os vinhos de alta gama. Se um cliente entrar num supermercado e encontrar um Charme, do Dirk Niepoort, que é um excelente vinho, a 50 euros e ao lado estiver um Bordéus de Saint-Émillion ao mesmo preço, vai comprar o Bordéus, porque não faz a mínima ideia do que é o Charme”, sublinha.
Para Eric Beaumard, “Portugal possui um património vitícola excepcional, está a fazer grandes vinhos, no Douro, na Bairrada, no Dão, mas, em alguns casos, o mercado ainda não está preparado para eles, ainda não os conhece bem”. “É preciso insistir na educação do consumidor”, defende. Olivier Poussier diz o mesmo. “Portugal tem que dar a conhecer mais a sua cultura vitícola, a grande diversidade de castas e solos que possui. Para mim, Portugal, a par da Suíça e da Áustria, foi dos países que mais progrediu nos últimos 15 anos. E é um dos que possui mais potencial para participar na diversidade do gosto que eu, como europeu, defendo para o negócio do vinho”, refere. “Mas entristece-me que castas internacionais como a Cabernet, a Syrah, a Merlot continuem a ser plantadas em regiões como o Alentejo, o Ribatejo, a Península de Setúbal”, acrescenta.
“No Douro”, continua, “deram-nos a provar um vinho do Douro feito de Syrah. Ninguém o vai comprar. Estamos num mundo que ainda favorece as castas internacionais, é verdade. Mas é preciso resistir a isso. Apostar em castas internacionais é facilitar a entrada dos vinhos do Novo Mundo na Europa”.