Fugas - Vinhos

Nuno Ferreira Santos

Inovação e tradição, qualidade e preço

Por Rui Falcão

Qualidade e preço são dois dos predicados mais apetecidos no vinho, os atributos mais pretendidos por quem se dispõe a comprar uma garrafa de vinho. Maximizar a sensação de qualidade face a um preço que se apresente acessível e justo, um preço honesto e que corresponda de forma proporcional ao que é oferecido na garrafa é o que todos intimamente desejamos quando gastamos dinheiro a comprar uma garrafa de vinho.

Algumas regiões, mais do que outras, estão íntima e umbilicalmente ligadas a este conceito de excelência na relação qualidade/preço, usufruindo de uma imagem pública de vinhos correctos e apetecíveis propostos a preços legítimos. Os vinhos da Península de Setúbal ocupam uma posição cimeira entre as regiões que mais se destacam nesta difícil equação, oferecendo um rol extenso de vinhos agradáveis e fáceis de entender, vinhos sedutores e descomplicados que desfrutam ainda dessa tremenda simpatia de serem propostos a preços alcançáveis pela maioria. A quota crescente de mercado ganha pelos vinhos da Península de Setúbal é um sinal bem explícito da justeza da estratégia dos produtores da região.

Uma estratégia afinada e bem alinhada, inteligente e prática, que se adapta como uma luva à realidade da economia nacional, numa época onde os gastos desmedidos com o vinho terão necessariamente de ser reduzidos por grande parte das famílias portuguesas. Mas é ao mesmo tempo uma estratégia que não diz tudo sobre os vinhos da Península de Setúbal, vinhos que ultrapassam em muito o simples conceito de boa relação qualidade/preço. Ou que, talvez de forma mais acertada, revelam essa mesma boa relação em todas as categorias dos vinhos, para além dos preços de combate presentes nos folhetos das feiras de vinhos da grande distribuição.

Em Setúbal também nascem grandes vinhos, vinhos de personalidade forte e qualidade inquestionável, disponíveis em todos os patamares de preço. Por vezes de Castelão, a casta histórica da região que antigamente foi popular como Periquita, por vezes de variedades importadas de outras regiões ou países, adaptadas à região de forma pragmática e sem qualquer sentimento de pudor. Por vezes de Moscatel de Alexandria, a histórica variedade branca da região, por vezes de outras castas brancas nacionais ou internacionais introduzidas mais recentemente para complementar a oferta. Se em tempos os vinhos da Península de Setúbal foram conhecidos pelo Moscatel e Castelão, hoje a diversidade de castas é uma das bandeiras mais populares de Setúbal.

Veja-se por exemplo o FSF 2007, da José Maria da Fonseca, um dos novos clássicos de Setúbal feito em homenagem a Fernando Soares Franco, que não hesita em associar as castas Syrah, Tannat e Trincadeira para dar corpo a um vinho tinto de cor carregada que indicia uma profundidade aromática requintada. As notas fumadas cunham a prova desde o início, submergindo a fruta sob um manto de café moído, chocolate, alguns aromas mais tostados e tabaco. A boca mostrase mais cordata, mais elegante e conforme, anunciando taninos musculados que o elevam para um fi nal poderoso e avassalador. Um tinto poderoso que ganhará com o passar do tempo em garrafa.

O mesmo se passa com o Quinta da Bacalhôa branco, um lote de Sémillon, Alvarinho e Sauvignon Blanc, bem como com o Palácio da Bacalhôa, um lote de castas francesas ao melhor estilo bordalês, associando Cabernet Sauvignon, Merlot e Petit Verdot num vinho de cor vermelha rubi e bordo violeta. O nariz alterna entre a fruta madura e uma nítida tendência vegetal, a que se acrescem especiarias que marcam o fundo do copo. A boca confirma e enfatiza o leve pendor vegetal, anunciando um vinho fresco mas duro no fi nal de boca. Excêntrico na escolha do nome e original na escolha das castas apresenta-se o Cavalo Maluco 2008, da Herdade de Portocarro, em homenagem ao mítico chefe índio Sioux, num lote que congrega as castas Touriga Franca, Touriga Nacional e Petit Verdot, vestindo uma tonalidade quase negra que lança os primeiros sinais de alarme sobre o que se segue. Em poucos segundos sobrevém um tsunami de emoções comandadas por uma boca felina, num corrupio doido de taninos imperiais, acidez feroz, fruta bem comportada e estrutura hercúlea que o conduzem para um fi nal apoteótico. Por ora deixe-o a repousar na garrafeira que a boca ainda está demasiado bélica, mas saiba que tem vinho para os próximos 15 anos.

Talqualmente francês na escolha de castas apresenta-se o Domingos Damasceno Reserva Kol de Carvalho 2008, um lote de Cabernet Sauvignon, Merlot e Syrah que se apresenta fresco e temperado por uma fruta madura e perfumada, seguido por um leve toque vegetal e floral e um fundo de especiarias que oferecem profundidade e complexidade. A boca denuncia um fi nal fresco e prazenteiro que o situa como um vinho apelativo e a que apetece regressar.

Só é pena que cada vez menos produtores da região se interessem e invistam na casta Castelão, a imagem e identidade dos vinhos da Península de Setúbal, reservando-lhe o papel simplista e inferior de casta suavizadora empregue nos vinhos mais fáceis e económicos, sem procurar salvaguardar as melhores vinhas em engarrafamentos especiais que permitissem mostrar o Castelão na sua melhor forma, dignificando a casta para aquilo que ela consegue dar. Quem conseguir provar hoje os Periquita Clássico da José Maria da Fonseca das colheitas 1992 e 1994, infelizmente sem continuação face ao diminuto sucesso comercial deste engarrafamento especial, facilmente perceberá o quanto estamos a perder ao ignorar as vinhas velhas da casta Castelão em chão de areia da Península de Setúbal.

É que, apesar de estes vinhos serem francamente bons, Cabernet e Syrah há muitos no mundo… ao passo que Castelão é algo que nenhum outro país ou região consegue fazer como Setúbal!

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