Por vezes o universo do vinho parece assentar mais em ficções e frases feitas, em devaneios e comoções, que num realismo racional ou em factos sustentados por dados e observações científicas. A realidade, porém, é que para uma larga maioria de consumidores o vinho é simplesmente sinónimo de momentos de prazer e descontração, instantes de partilha familiar, momentos de celebração e catalisador de encontros e reencontros entre amigos, instantes que comandam paixões e emoções profundas. Mais que pela análise fria e criteriosa, o vinho arrebata pelo coração, emociona pelas sensações profundas que o acto de partilha e o vinho por si mesmo transmitem.
Talvez porque o vinho seja tão eminentemente passional e emocional o mundo do vinho encontra-se recheado de temas polémicos, de pequenas e grandes contendas que dividem enófilos de todo o mundo em diferentes credos filosóficos que, por vezes, se digladiam entre si. E poucos temas são mais fracturantes que a eterna dúvida sobre a decantação, sobre os “quandos e os porquês” da decantação, sobre as circunstâncias em que a decantação é necessária e quando é prejudicial, sobre a forma correcta como decantar, sobre a antecedência com que se deve decantar, sobre os estilo de vinhos que ganham e perdem com esta operação. Uma aparente ninharia operacional que é capaz de dividir opiniões de forma perturbadoramente incisiva.
E, afinal, o tema é tão descomplicado. De forma simplista podemos dizer que tudo se resume em verter o vinho da garrafa original para outro recipiente, por regra um decanter de vidro ou cristal. O que há de tão especial nesta operação para a tornar tão especial e contestada? Porque é que o tema é tão contestado e gera discussões suficientemente acaloradas para tamanha divisão sem nos providenciar certezas definitivas e julgamentos inquestionáveis? Quais os porquês desta técnica tão peculiar? Quando é que se deve decantar e que estilos de vinhos devem ser decantados? Estas são questões recorrentes, dúvidas permanentes que invadem o espírito de muitos enófilos nacionais e internacionais.
Na verdade existem três condições fundamentais que obrigam ou aconselham à decantação de uma garrafa de vinho, separar o vinho de um eventual depósito, das borras que por vezes surgem no fundo da garrafa, forçar um arejamento célere do vinho… ou por simples considerações estéticas e de elegância de serviço! A existência de sedimentos na garrafa, o vulgar depósito, será o primeiro fundamento para a indispensabilidade da decantação. E aqui falamos da obrigação de proceder à decantação do vinho. Os sedimentos proporcionam não só um impertinente contratempo estético como geram sabores amargos e adstringentes que irão prejudicar e reduzir o prazer do vinho. Por isso, para poder desfrutar integralmente do prazer do vinho, a sua remoção torna-se imprescindível.
Como se procede então à decantação? Já nos habituámos a ver garrafas repousar na posição horizontal de modo a manter a rolha humedecida, conservando o vinho nas melhores condições. É por isso natural que o depósito tenha tendência para assentar nas paredes laterais da garrafa. Como tal, deveremos ter o cuidado de colocar a garrafa na posição vertical com cerca de um dia de antecedência, pelo menos, dando assim tempo para que os sedimentos se possam depositar no fundo da garrafa, transferindo-se das paredes laterais para o fundo, maximizando assim a quantidade de vinho que consegue resgatar da garrafa.
O arejamento e oxigenação que a decantação proporciona, sabendo-se que essa oxigenação forçada pode encorajar a exuberância aromática e a suavização de taninos, representa a segunda razão para a prática de decantação. Convém no entanto recordar que esta operação compreende alguns riscos, já que o casamento entre ar e vinho nem sempre tem consequências proveitosas. Ao contrário do imaginário comum, são os vinhos mais jovens e imberbes que deverão ser decantados, aqueles que podem ser arejados sem receios de monta, vinhos jovens e robustos. Na prática, vinhos como alguns Bairrada, Barolo, Barbaresco e vinhos do Líbano, vinhos que por serem tão concentrados, taninosos e agressivos na juventude, poderão beneficiar com a atenuação e suavização de algumas sensações sensoriais.
Os vinhos velhos merecem cuidados redobrados e raramente deverão sofrer o processo de decantação, excepto se esta for, em casos extremos, absolutamente imprescindível. Incluem-se neste caso vinhos em que o depósito seja tão forte e pronunciado que na prática não existam alternativas válidas. O lado aromático dos vinhos velhos é tão suave, tão frágil e delicado que uma prova traumatizante como a decantação poderá significar uma morte imediata e prematura do vinho.
Se sentir necessidade de decantar um vinho velho, seja pelo excesso de depósito seja por razões estéticas, faça-o o mais tarde possível, no último momento, nos poucos segundos anteriores ao início da fruição do vinho e refeição. Infelizmente, mesmo nestes casos particulares, os resultados nem sempre são os melhores. Mas, felizmente, o mistério e a imprevisibilidade do vinho também fazem parte do seu encanto...