O programa era duro mas imperdível: uma manhã a provar os lendários vinhos brancos e tintos do Palace Hotel do Bussaco e uma tarde reservada para os melhores tintos da casta Baga produzidos pelo grupo Baga Friends. Uns e outros são do melhor que se produz em Portugal e são também dos poucos vinhos tranquilos do país que conseguem bater-se com os grandes vinhos do mundo.
A prova atraiu no passado dia 12 à fresquidão da mata do Buçaco jornalistas portugueses e estrangeiros e muitos convidados de Dirk Niepoort, que, na véspera, deu um jantar no belo e romântico Palace Hotel para celebrar os seus 49 anos. As festas de Dirk Niepoort são famosas pelos vinhos que se bebem. Desta vez, beberam-se os vinhos levados pelos convidados e um ou outro do próprio anfitrião, um dos quais, o Niepoort Porto Garrafeira 1964, nunca provado pelo próprio Dirk — um grande vinho, seco, austero e distinto.
Não se provou tudo, que as garrafas não chegavam para todos, mas ficaram na memória o Bernard Morey Chassagne Montrachet Grand Cru 1997 (um extraordinário branco da Borgonha, com notas de pólvora e calcário e uma frescura de boca formidável); o Porta de Cavaleiros Tinto 1964 (surpreendente a sua força tânica e frescura); o Pichon-Longueville 1996 (um Pauillac profundo e delicado); o Bricco Asili 1990 (um Barbaresco de grande impacto sensorial); e os tintos Gonçalves Faria 1988, Tonel 5 1990 e 1975 (três Bairrada colossais). Também se bebeu um Bussaco branco 2008, que serviu de aperitivo para a prova do dia seguinte.
Os vinhos começaram a ser preparados quase de madrugada. Algumas garrafas, de tão velhas, sugerem uma fragilidade que não augura nada de bom. Mas enganam. Começou-se pelos brancos. Primeiros com os vinhos feitos à moda antiga, estagiados em tonéis velhos, e depois com os vinhos produzidos a partir do ano 2000, já envelhecidos em barricas novas de 300 litros. Do primeiro grupo, provaram-se garrafas das colheitas de 1955,1956.1967, 1978 e 1985. Mais do que em qualquer outro lugar, no Bussaco há grandes garrafas, não grandes colheitas. Do branco 1978, por exemplo, provaram-se três garrafas e só a terceira estava boa. Boa não: extraordinária. Grande acidez, toque salgado delicioso, corpo enxuto e austero, notas meladas graciosas.
Melhor só mesmo o 1956 (notas de cola no aroma que indiciam uma acidez volátil alta, excelente corpo, final ainda cheio de nervo) e o 1967, um branco da mesma estirpe dos Sercial da Madeira: seco, áspero, vertical e supinamente fresco, graças a uma acidez quase cortante. O 1955 pareceu já caído à primeira impressão, mas com o arejamento o vinho foi ganhando vida, mostrando subtilezas inesperadas e confirmando a natureza camaleónica dos vinhos do Bussaco. São vinhos, sobretudo os mais velhos, que requerem comida e paciência para esperar pela sua metamorfose e ir desfrutando das suas virtudes.
Nos mais novos, o prazer é quase imediato. Mesmo não sendo vinhos muito aromáticos, possuem uma grande complexidade, espessura e acidez. Isso ficou bem patente no segundo lote provado, com vinhos das colheitas de 2000, 2001, 2003, 2005, 2008, 2009 e 2010 (estes dois últimos ainda por engarrafar). Sete vinhos magníficos, em particular o 2000 (muito floral e delicado, com notas florais elegantes, algum citrino exótico e um toque melado típico do Encruzado) e o 2003 (um branco da mesma linha do 1967, fresquíssimo, seco e muito mineral).
O melhor costuma ficar para o fim, mas não foi o caso. Os tintos do Bussaco, sendo bons, não causam o mesmo impacto dos brancos. São vinhos em geral austeros e duros, com taninos por vezes demasiados secos. No entanto, são raros ou simplesmente não existem os produtores nacionais que se podem dar ao luxo de, sem dar tudo a conhecer, colocar em prova vinhos ainda bebíveis de 1949, 1958, 1960, 1962 e 1964. Bebíveis e emocionantes, nomeadamente o 1960 (magro mas complexo) e o 1964 (muito químico e fresco). Mas os tintos que vale mesmo a pena conhecer e provar são o Bussaco 2000 (vibrante e estruturado), o Bussaco Vale da Mata 2005 (ainda um pouco duro, mas com uma acidez soberba) e o Bussaco 2007 (o mais civilizado, suculento e equilibrado de todos). Três vinhos herdeiros da enologia moderna e do uso de barricas novas. Resta saber se vão durar tanto tempo como os mais antigos.
A colossal garrafeira do Palace Hotel
A garrafeira do Palace Hotel do Bussaco, uma das mais extraordinárias e exclusivas do país, começou a ser constituída nos anos 20 do século passado. Inspirado nos hotéis de charme da Riviera francesa e italiana, que produziam os seus próprios vinhos, o então proprietário do Bussaco resolveu replicar o exemplo e, a partir de vinhos comprados no Dão e na Bairrada, começou a fazer os seus próprios lotes. Os primeiros ensaios remontam à década de 20 e ainda existem algumas garrafas dessas experiências, mas os vinhos mais antigos que ainda estão bebíveis são um branco de 1944 e um tinto de 1945.
Dito assim, parece coisa normal. Mas estas são idades que costumamos associar aos vinhos fortificados, como o Madeira e o Porto. Os vinhos do Bussaco são vinhos comuns, tranquilos. O que os torna lendários é precisamente essa longevidade, só ao alcance de muito poucos vinhos no mundo. Sobrevivem tanto tempo graças, sobretudo, aos seus elevados níveis de acidez (nos brancos, acima de tudo), à sua soberba estrutura tânica (nos tintos) e ao seu volume alcoólico (em média, 13% nos brancos e 13,5% nos tintos).
A composição dos lotes é determinante. Nos primeiros tempos, os tintos eram feitos com Baga da Bairrada e uma mistura de castas do Dão. Mais tarde, o lote passou a reunir apenas Baga da Bairrada e Touriga Nacional do Dão. Os brancos são feitos com Encruzado do Dão e Bical e Maria Gomes da Bairrada. Antes, o hotel comprava vinhos já feitos e lotava-os. Hoje, compra uvas na zona de Silgueiros, no Dão, e Cantanhede, na Bairrada, e vinifica-as na adega que possui na Curia, onde se situa a Vinha da Mata, o único vinhedo próprio.
Ao todo, o Palace Hotel do Bussaco possui nas suas caves cerca de 200 mil garrafas de vinho próprio (cerca de 120 mil de tinto e 80 mil de branco). É uma colecção assombrosa que, durante muito tempo, esteve apenas reservada aos clientes do hotel. Há alguns anos, o hotel começou a fazer algumas exportações directas e, mais recentemente, estabeleceu uma parceria com Dirk Niepoort para a venda em Portugal de alguns vinhos. Mas as raridades continuam guardadas para os clientes do Bussaco.
A Baga no seu melhor
Os Baga Friends não são apenas amigos da grande casta tinta bairradina, são produtores que fazem alguns dos melhores Baga da região. O grupo, de que faz parte também o Palace Hotel do Bussaco, é composto por Mário Sérgio (Quinta das Bágeiras), Luís Pato, Filipa Pato, Paulo Sousa (Sídónio de Sousa), João Póvoa (kompassus), François Chassans (Quinta da Vacariça), Dirk Niepoort (Quinta de Baixo). Juntaram-se para promover a Baga e, sobretudo, para salvar do arranque as vinhas velhas da casta que ainda existem na Bairrada.
A Baga é capaz de originar os melhores e os piores vinhos da região. Os bons são mesmo bons, únicos e duradouros, e provêm quase sempre das vinhas mais velhas, menos produtivas e bem adaptadas aos solos argilo-calcários da região. Para a prova do passado dia 12, Paulo Sousa levou os Sidónio de Sousa 1990, 1995 e 1997, três vinhos com a marca da casa, pungentes nos taninos e na acidez, sólidos e complexos. Magnífico o 1995, muito fresco e delicado. O criador do kompassus, João Póvoa, mostrou dois dos melhores vinhos que produziu quando ainda possuía a Quinta de Baixo: o 1991 e o 2003. Impressionante o primeiro, pela frescura e juventude que ainda apresenta; extraordinário o segundo, pela elegância, complexidade e nervo que demonstra. De Luís Pato foram provados o Vinhas Velhas 2001, o Vinha Pan 2001 e o Quinta do Ribeirinho Pé Franco 2003. Três vinhos excelentes, em particular o Vinha Pan, o mais civilizado e elegante, e o pé Franco, o mais complexo, longo e poderoso.
François Chassans, um francês que se apaixonou pelos vinhos da Bairrada e os coloca ao nível dos melhores de França, apresentou as suas duas primeiras colheitas, o Quinta da Vacariça 2008 e 2009. O primeiro tem uma frescura soberba, mas os taninos são demasiado secos, pelo que, nesta fase, causa mais impacto o 2009, mais maduro e equilibrado. Mário Sérgio fez-se representar pelo Bágeiras Garrafeira 1995, um dos vinhos mais originais e vibrantes da prova, um monstro de tanino e acidez. Por seu lado, Dirk Niepoort, um duriense há muito tempo rendido aos vinhos da Bairrada e que no ano passado comprou a Quinta de Baixo, perto de Cantanhede, deu a conhecer as três últimas colheitas: os Quinta de Baixo 2010, 2011 e 2012. Com estes vinhos, fresquíssimos e mais amigáveis no palato, Dirk mostra que pretende seguir por um caminho um pouco diferente do dos seus pares, produzindo vinhos estruturados e frescos mas mais delicados, com taninos menos agressivos. Uma forma mais moderna de interpretar a Bairrada.
Ainda se provaram um tinto de 1988 do Grupo dos 8 (oito produtores da Bairrada que se juntavam para fazer um vinho de Baga), ainda cheio de frescura mas um pouco seco de mais), dois vinhos fortificados e alguns brancos do grupo, dos quais merecem destaque o Bágeiras Bical 1995 (vivíssimo), o Bágeiras Garrafeira 2001 (austero, picante e interminável) e o Filipa Pato 2006 (muito aromático, fino e delicado). Demasiado vinho bom para uma prova só.