A bonança da natureza foi tão forte que, aliada à costumeira displicência portuguesa, acabou por conduzir ao desconhecimento. Por absurdo que tal possa parecer, a verdade é que continuamos oficialmente sem saber ao certo quantas castas nativas existem em Portugal, problema que, apesar de afectar a mensagem promocional dos vinhos portugueses, se arrasta, infelizmente, há já demasiado tempo.
Para tamanha fortuna e diversidade de castas muito contribuíram as vinhas misturadas, esse aparente anacronismo da viticultura portuguesa que, ao arrepio das regras mais ou menos universais que regem a plantação de vinhas e que determinam que cada casta deve ser plantada em talhões separados, decidiu plantar um grande número de castas misturadas na mesma vinha, plantando as videiras numa espécie de caos que poderá ser mais ou menos organizado consoante os casos.
Uma forma de plantar vinhas que, apesar do aparente contra-senso, acabou por se transformar numa das medidas mais emblemáticas, decisivas e construtivas do Portugal vitícola. Ao misturar um número alargado de castas no mesmo espaço físico, os viticultores portugueses acabaram por facilitar condições ideais de “promiscuidade” para que as diversas variedades se misturassem, proporcionando as condições ideais para que a natureza se entregasse à sua condição de facilitadora de cruzamentos acidentais. Cruzamentos espontâneos que deram origem ao nascimento de muitas castas únicas no mundo e que, juntamente com a teoria que aponta Portugal como um dos berços naturais da videira silvestre, ajudaria a explicar a abundância desusada de castas nativas em Portugal.
O que é certo é que Portugal é um dos países mais ricos em castas de todo o mundo, reunindo uma diversidade ímpar de variedades que por enquanto se mantém quase restrita ao universo geográfico do território nacional. Por ora, as castas portuguesas simplesmente não estão presentes noutros países ou regiões ou, quando já foram descobertas e alguém as decidiu plantar, costumam ser minoritárias e ainda largamente desconhecidas por parte de consumidores, crítica, enólogos, viticultores e produtores.
Mesmo aquela que foi recentemente proclamada como a casta rainha portuguesa, a Touriga Nacional, a única que pode reclamar com algum propósito o estatuto de internacionalização, continua a ser uma variedade praticamente desconhecida para a maioria dos seguidores do vinho de todo o mundo, sejam eles amadores ou profissionais. Apesar de hoje podermos encontrar pequenas parcelas de Touriga Nacional plantadas em países ou regiões tão díspares como Austrália, África do Sul, Chile, Argentina, Brasil, Califórnia, Grécia, Espanha ou França, o nome Touriga Nacional continua a ser suficientemente distante e exótico para os ouvidos de grande parte da crítica de vinhos internacional para não chegar a ser reconhecido.
Para mal dos nossos pecados, ou talvez para nossa graça, as castas portuguesas continuam a ser pouco conhecidas e a suscitar pouca curiosidade por parte da maioria dos países produtores. Enquanto algumas variedades italianas e espanholas começam lentamente a afirmar-se pelo mundo, mesmo que com maior dificuldade das últimas, as castas portuguesas mantêm-se afastadas dos holofotes de viveiristas, viticultores e produtores de todo o mundo.
O maior veículo de difusão das castas nacionais tem sido tradicionalmente o Vinho do Porto, vinho ímpar que cedo despertou a atenção internacional para algumas das castas do Douro. Este movimento tem sido especialmente visível entre os países ou regiões que mais gostam de imitar o grande vinho fortificado, nomeadamente a Califórnia, Austrália e África do Sul. Só isso poderia explicar a estranha surpresa de encontrar tanta Tinta Barroca na África do Sul e tanta Touriga Nacional, Sousão e Tinta Barroca na Austrália, a última das quais muitas vezes erradamente etiquetada como Touriga Franca.
Até mesmo o Alvarinho, de resto tal como a Tinta Roriz/Aragonez, acabaram por ser reconhecidos internacionalmente pelas sinonímias espanholas, respectivamente Albariño e Tempranillo, longe de qualquer associação com nomes de castas nacionais. Nem sequer a casta Jaen da região do Dão conseguiu apanhar a boleia da recente notoriedade da variedade Mencía, nome pelo qual o Jaen é conhecido em Espanha. Entre as castas portuguesas menos óbvias, só o Verdelho ganhou algum lugar de destaque, nomeadamente na Austrália, país onde tem honras de destaque e emancipação em diversos rótulos de vinhos monocasta. As restantes castas nacionais têm expressões internacionais ainda mais residuais, mantendo-se no recato da obscuridade quase total.
E se um dia esta realidade mudar? E se um dia algum país ou região despertar para o mundo tão particular das castas portuguesas, começando a plantar e difundir nomes como o Alvarinho, Loureiro, Encruzado, Avesso, Touriga Nacional, Touriga Franca, Alicante Bouschet, Baga ou Trincadeira? Que faremos então? Conseguiremos acompanhar esta realidade tirando partido da disseminação e vulgarização internacional dos nomes das castas, assumindo a paternidade de um nome que passou a ser popular... ou deixaremos para outros o mérito da novidade, perdendo de vez a oportunidade de afirmação da originalidade dos vinhos lusos?