As enormes manchas de vinhas que dão cor à paisagem amena e ondulada entre Reguengos de Monsaraz e a margem esquerda do Alqueva são a primeira página de uma história que não conta apenas os 40 anos da Herdade do Esporão; na sua geometria encontra-se também um capítulo de uma aventura que, em poucas décadas, transformou a paisagem da planície e colocou o Alentejo no mapa dos vinhos portugueses.
Numa prova comemorativa realizada na semana passada, revisitou-se o passado dos Esporão depois de 1996, confirmou-se que a casa continua a produzir vinhos com todos os ingredientes para cativar um largo espectro de apreciadores, tirou-se o certificado de que muitas das experiências com monocastas estão entre as mais interessantes do país e, principalmente, ficou-se com a certeza de que o tempo em garrafa lhe confirma uma identidade. "Temos criado um estilo da casa, tanto nos brancos como nos tintos que é identificável. São vinhos com potencial para envelhecer mas que podem ser bebidos logo após dois ou três anos do lançamento", explica David Baverstock, o rosto da enologia da casa desde 1992.
Particularmente impressivas foram as provas dos brancos, cuja edição mais antiga na prova remontava a 1996. Ao contrário do que alguma mitologia continua a alimentar, os brancos alentejanos, ou pelo menos os brancos do Esporão, podem crescer em garrafa. Quer a colheita de 1996 quer a de 2004 revelam uma acidez que lhes confere tensão e frescura, ambos, embora com natural do destaque para o primeiro, revelam uma excelente evolução das frutas originais para aromas de alperce, fruta cristalizada e resina. São brancos vivos, com graça e personalidade, que farão as delícias de todos os que, contra o senso comum, foram capazes de conservar alguns exemplares.
O mesmo se pode dizer dos tintos. As gamas superiores, Reserva ou Private Sellection estão há décadas cotados entre os melhores tintos nacionais, mas a sua estrutura redonda, condicionada pelo calor da fruta jovem e viva e pelo tempero da madeira poderia deixar dúvidas sobre a sua capacidade de evolução. Desenganem-se, uma vez mais, os cépticos. Um Esporão Reserva de 1996 apresentou-se em grande forma, com notas do envelhecimento a sugerir couro e tabaco e uma estrutura que lhe dá ainda garra e profundidade. Um tinto com enorme riqueza e complexidade com tempo ainda pela frente.
Nenhum dos oito tintos escolhidos deslustrou nesta prova. O Torre de 2007 é ainda um vinho adolescente, o Aragonez de 2007 estava excelente ("Quando Aragonez é bom, é a melhor casta que temos na vindima", considera David Baverstock) e o Alicante Bouschet do mesmo ano está ainda impenetrável, o que ajuda a explicar a longevidade dos tintos da casa.
Na prova não estiveram as marcas de combate do Esporão (Alandra, Vinha da Defesa e, principalmente, o campeão de vendas Monte Velho, do qual se comercializam todos os anos cinco milhões de garrafas). Estes vinhos fazem o grosso da actividade de uma empresa que facturou no ano passado quase 40 milhões de euros, que exporta mais de metade da sua produção para mais de 50 países, que explora mais de 1150 hectares de vinha (não incluindo os 48 hectares da Quinta dos Murças, no Douro, adquirida pela Esporão em 2008) e que, ainda assim, tem de recorrer a vários produtores de todo o Alentejo para suprir as suas necessidades.
Por estes dias em que a Esporão celebrou 40 anos, José Roquette, o gestor que fundou a empresa em conjunto com Joaquim Bandeira, olha para trás e reconhece que a sua aventura chegou a uma dimensão que jamais pensou ser possível: "Acreditava numa janela de oportunidade, mas as dificuldades eram muitas. Em Portugal, as zonas da raia parece que não fazem parte do nosso ADN como povo, são zonas de saída", diz o empresário. Em 1973 era difícil chegar às imediações do Guadiana, as castas e os vinhos alentejanos permaneciam desconhecidos, mas o primeiro desafio a ser vencido não resultou da agronomia mas da política. Em 1974 a herdade é nacionalizada e José Roquette preso durante quatro meses, seguindo-se o exílio no Brasil. As terras seriam finalmente devolvidas em 1984.
Os primeiros vinhos, de 1985, produzidos a partir dos 100 hectares de vinhas plantados em 1973, surpreenderam a crítica e mobilizaram de imediato uma legião de adeptos, mas só depois de 1992, com a chegada de David Baverstock, um australiano que dava os primeiros passos da sua carreira no Douro, é que a Esporão consolidou o seu projecto. "A capacidade criativa e de liderança do David é um activo absolutamente extraordinário que aqui temos", reconhece José Roquette. Na década em que o vinho português se modernizou, nos anos 90, a Esporão tornou-se um símbolo dessa vaga.
Com um peso decisivo na evolução geral do sector, mas principalmente do Alentejo. A Esporão "foi o projecto âncora a partir do qual vieram depois outras iniciativas, as quais, alías, sempre apoiámos", diz José Roquette.
A chegada da segunda geração da família à liderança da empresa aconteceu em 2006. João Roquette, 39 anos, funciona como um estímulo às tendências anteriores. Novos vinhos (Duas Castas ou os monocastas) são lançados, novos equipamentos construídos, a internacionalização acelera. Nada se faz com rupturas. "O que estava na nossa preocupação na origem deste projecto era fazer os melhores vinhos possíveis. É isso que temos vindo a fazer", diz João.
A continuidade é a nota dominante. "As empresas familiares têm uma enorme vantagem que permite gerir e perceber o que vai acontecer no prazo de uma geração", diz José Roquette. O fundador que ousou criar um Alentejo verde no coração do sequeiro olha o futuro e relaxa. "Daqui a 40 anos não vou cá estar, mas sinto hoje uma enorme tranquilidade sobre o futuro da Esporão".
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Herdade do Esporão