O generoso incompreendido e desrespeitado, tanto pelos portugueses como pelo mercado internacional, o vinho que termina quase invariavelmente maltratado pela crítica, pelos consumidores… e pelos produtores. Que razões conduziram a tamanha discriminação, que motivos poderão justificar um divórcio tão profundo?
Infelizmente para nós, mas de realidade indisputável, a primeira razão para a falta de reconhecimento internacional é a sua raiz profundamente portuguesa, a falta de ligações internacionais do nosso Moscatel. Se o Vinho do Porto e Madeira beneficiam da preponderância da influência inglesa, de uma garantia de rigor e agressividade comercial, o Moscatel é uma criação portuguesa e de capitais portugueses, de famílias portuguesas e destinado aos mercados de língua portuguesa. Uma independência que foi e é fundamental para a quase ausência de divulgação internacional do Moscatel português.
Uma realidade pouco agradável mas que é palpável na ausência geral de divulgação e publicação internacional nas principais revistas do sector ou entre os grandes sommeliers do mundo. Não é coincidência que os vinhos de influência comercial inglesa, vinhos como o Porto, Madeira, Jerez, Bordéus ou os vinhos alemães de Rheingau, sejam os vinhos mais reconhecidos e discutidos internacionalmente. Os ingleses sempre foram os principais divulgadores e “criadores” dos vinhos de grande reputação internacional. Pelo contrário, o Moscatel sempre foi um vinho mais recatado, resumindo-se a uma divulgação caseira que raramente ultrapassou as fronteiras de Portugal ou dos seus antigos territórios ultramarinos.
Por outro lado, e ao contrário do Vinho do Porto e Madeira, que são criações absolutamente originais e de reprodução impossível, o Moscatel é um vinho de génese profundamente mediterrânica. A casta é considerada como uma das castas europeias mais antigas, uma das primeiras a ser identificada, reconhecida, isolada e propagada ao longo da bacia do Mediterrâneo. E por isso hoje são muitas as regiões e países que a reclamam como casta nacional. A diversidade de estilos não tem paralelo com nenhuma outra variedade. Uma suave anarquia que leva a que existam muitos vinhos Moscatel no mundo, muita diversidade de estilos e, infelizmente, também muitos exemplares pouco recomendáveis pelo mundo fora que ajudam a desautorizar o nome da casta.
Convém notar que, para além de Portugal, a tradição do vinho Moscatel estende-se por países tão diversos como Espanha, Itália, Grécia, Chipre, mas também África do Sul, Austrália, Brasil, Califórnia e muitos outros países. Uma multiplicação de estilos que varia entre o vinho simplesmente doce, vinhos de colheita tardia, podridão nobre, fortificado ou mesmo como vinho de palha, vindimado com as uvas em passa. Como a anarquia raramente é sinónimo de prestígio ou satisfação, ao Moscatel falta definição de estilo.
Para cúmulo, ainda temos a doçura extrema do Moscatel, uma doçura que pode ser brilhante quando acompanhada por uma acidez incisiva, mas penosa se despida desta tensão da acidez que o livre da indolência do açúcar, mel e laranja. A casta é caprichosa e não é fácil entender as suas muitas manhas, o que leva a que do Moscatel possamos esperar o melhor mas, desastrosamente, também o pior. Infelizmente, a maioria dos vinhos Moscatel portugueses são de qualidade mediana e enfadonhos pela falta de frescura e pelo peso excessivo dos torrados, do mel e da laranja cristalizada.
Em Portugal, o generoso Moscatel pode nascer em duas grandes regiões, a Península de Setúbal e o Douro, dando origem, respectivamente, ao Moscatel de Setúbal e ao Moscatel do Douro. Porém, enquanto em Setúbal o Moscatel é o centro das atenções, o vinho acarinhado a referência maior, no Douro o Moscatel não tem pretensões de fugir ao epíteto de parente pobre da demarcação face ao todo poderoso Vinho do Porto.
Se o Moscatel do Douro só muito raramente se mostra verdadeiramente empolgante, o Moscatel de Setúbal consegue com alguma assiduidade chegar ao arrebatamento vínico, mesmo se são poucos os produtores que nos aproximam do sagrado. Essa é outra das grandes dificuldades para afirmação do Moscatel, a míngua de produtores e vinhos de referência. Quase poderíamos referir que o Moscatel de excelência vive sustentado em três produtores, número demasiado escasso para sustentar um estilo e uma região. São eles a José Maria da Fonseca, Bacalhôa Vinhos e casa Horácio Simões, intérpretes de excelência do vinho Moscatel em Portugal e no mundo.
Porque é que os restantes produtores de Setúbal se quedam longe da inconfundível nobreza que o Moscatel pode proporcionar? Por falta de tempo no activo, por falta de motivação, por alguma incompreensão pelo estilo e por facilitismo. Porque a senha de identidade do Moscatel de Setúbal, aquilo que o diferencia dos restantes Moscatel do mundo, a sua originalidade, é precisamente a acidez elevada, a frescura, a irrequietude do ferrão da acidez que o tonifica e revigora, que o prolonga na boca e que lhe permite viver séculos sem sinais de desfalecimento.
Os grandes Moscatel de Setúbal são vinhos incomparáveis e insubstituíveis, vinhos de vida eterna e de uma complexidade sublime, vinhos que ombreiam com o que de melhor se faz no mundo. Sem qualquer dose de patriotismo bacoco, sem favores ou excessos de linguagem, são vinhos que estão no lote muito restrito dos grandes vinhos do mundo.