Fugas - Vinhos

Martine Saunier: “Acredito que o futuro dos vinhos vai ter de passar por Portugal”

Por Sérgio C. Andrade

Uma francesa que se radicou na Califórnia na década de 1960 e ensinou os americanos a beber os bons vinhos do seu país decidiu depois levar também além-Atlântico os vinhos portugueses. Começou pelo Douro, e é sobre esta região que está a fazer um filme, que quer mostrar que Portugal não tem só vinho do Porto.

"Quem é esta francesa que vende vinho do Porto na América!?" Esta pergunta, Martine Saunier ouviu-a algures, no final dos anos 1980, quando iniciava em Portugal um trabalho que a levaria a apostar nos vinhos portugueses e a comercializá-los nos Estados Unidos, a partir da pequena empresa pessoal que tinha fundado em São Francisco, em 1979.

Entre nós, começou a trabalhar com a Quinta de la Rosa, tendo depois passado para a Niepoort e, nos anos seguintes, foi-se tornando uma visita frequente das caves em Vila Nova de Gaia e das quintas no Douro. Na última semana, Martine Saunier esteve no Porto a ultimar a rodagem do documentário que fez ao longo do ano sobre o vale do Douro.

Um Ano no Douro poderá vir a ser o título do filme, seguindo a lógica de Um Ano na Borgonha [A Year in Burgundy, 2012 – estreado em Portugal no último festival Douro Film Harvest, em Setembro] e Um Ano em Champagne [A Year in Champagne, 2013], que a empresária francesa fez em parceria com David Kennard, um realizador e documentarista conhecido pela sua carreira de 25 anos na BBC, onde assinou séries como Cosmos, com Carl Sagan.

O conhecimento dos vinhos do Douro e a crença de que, com eles – e também com os de outras regiões, como a Bairrada –, Portugal pode vir a fazer a diferença no mercado internacional do sector levou Martine Saunier a propor ao produtor dos seus documentários apostar, desta vez, numa região vitivinícola portuguesa, depois das duas francesas abordadas. Todd Ruppert, CEO da empresa de investimentos T Rowe Price, que Martine conheceu, por acaso, num jantar de amigos comuns numa quinta do Tennessee, aceitou o desafio. E desde o início de 2013, seguindo o fluir das estações do ano e o ciclo da vinha, a equipa de David Kennard e Martine Saunier tem registado a paisagem e as quintas, os trabalhos e as personagens do Douro.

"Conheço bem os trabalhos da vinha, mas o que me espanta mais no Douro é que se trata verdadeiramente de um trabalho de titãs, além, claro, da beleza da paisagem", disse Martine Saunier à FUGAS, no final da semana passada, numa conversa na Ribeira portuense com vista sobre o rio Douro.

Dirk Niepoort, Ruppert Symington ou Ricardo Nicolau de Almeida, em quintas da Ramos Pinto e outras de menor dimensão, são algumas das figuras seguidas e inquiridas para este documentário, cuja estreia deverá acontecer no Outono do próximo ano, em local ainda a decidir.

Será o terceiro capítulo decorrente do encontro de Saunier com David Kennard, que aconteceu um dia, em 2009, numa "situação absolutamente extraordinária". A empresária estava a dirigir uma degustação no consulado francês na Califórnia para uma recolha de fundos destinados a uma escola franco-americana: "Um senhor veio ter comigo, disse-me que era cineasta, que queria fazer um filme sobre quatro importadores de vinhos que mudaram a opinião e o gosto dos consumidores americanos, mas que lhe faltava o nome da quarta pessoa. ‘Sou eu’, respondi-lhe" [risos].

O projecto desse filme não chegaria a concretizar-se, porque não foi possível reunir o milhão de dólares necessário. Mas, um ano depois, David Kennard voltou a contactá-la, para a desafiar a fazer (e a arranjar o dinheiro para) um documentário sobre a Borgonha. Essa verba, Martine Saunier acabaria por consegui-la no tal jantar em que foi apresentada a Tod Ruppert, que, depois de conhecer David Kennard, e aconselhado pelo famoso crítico norte-americano Robert Parker, viria a patrocinar a sequência dos três filmes.

Uma história de família

Os vinhos fazem parte da história de Martine Saunier desde a infância, literalmente. Nascida em Paris na década de 1930, passava os três meses do Verão na Borgonha, na quinta duma tia em Prissé, perto da cidade de Mâcon, na margem do rio Saône. "Ao domingo, no almoço de família, o meu pai servia sempre bom vinho, e eu chorava se não tivesse direito a um bocadinho de tinto no meu copo. O vinho começou, muito cedo, a fazer parte da minha vida", recorda.

O casamento com um americano levou Martine Saunier a radicar-se na Califórnia, em 1964. E por que levava consigo todo um capital de conhecimento e de contactos com as gentes dos vinhos da Borgonha, decidiu estabelecer-se por conta própria nessa área. Com o tempo, tornou-se uma embaixadora dos vinhos do seu país na América. Todos os anos, regressava por três meses a França, e com o seu Citroen 2C – o mesmo que podemos vê-la ainda usar no filme Um Ano na Borgonha – percorria as quintas familiares, para experimentar e comprar as marcas – desde as mais conhecidas, como Beaujolais, Côtes-du-Rhône ou Châteauneuf-du-Pape, mas também Mâcon, Pouilly-Fuissé, Château Rayas ou Henri Jayer –, que depois apresentava e "ensinava" os americanos a beber.

Criou assim a sua marca própria, a Martine’s Wines. Inc, que começou com apenas uma secretária, mas depois foi crescendo até se tornar, como se lhe referiu uma vez a famosa crítica de vinhos Jancis Robinson, "a importadora extraordinária".

Passados quatro décadas de actividade, Martine Saunier vendeu a sua empresa no final do ano passado a um antigo cliente de pequena dimensão – "não queria vender o meu nome a uma grande companhia", justificou na altura –, mas continua ligada a ela como consultora.

Tem agora mais tempo para se dedicar a apresentar aos consumidores americanos novos vinhos, e está apostada em continuar a fazê-lo com os vinhos portugueses, e não só com os Porto. "Acredito que o futuro dos vinhos passa verdadeiramente por Portugal", assegura a especialista, chamando a atenção para a aposta que os homens do Douro, e não só, vêm fazendo, nos últimos anos, nos vinhos de mesa, incluindo neles também os verdes – como o Alvarinho.

Martine Saunier destaca, em particular, a acção da Niepoort. "O Dick fez um excelente trabalho a incitar as pessoas a fazer bons vinhos. Há muitos jovens que tenho encontrado e que estão a desenvolver o potencial das vinhas".

O Vinho do Porto continua a ser, naturalmente, o principal cartão-de-visita dos vinhos portugueses na América. Já não apenas através dos Vintage, mas também dos Colheita e dos Tawny, que têm a vantagem, sobre aqueles, de não terem de ser bebidos mal se abre a garrafa, o que faz com que ocupem um lugar cada vez maior nas casas dos consumidores, e nos restaurantes.

"Há actualmente na América uma verdadeira disponibilidade para os vinhos portugueses – mesmo para o Vinho Verde. Mas "o que verdadeiramente pode salvar os vinhos em Portugal é a aposta na qualidade", assegura a empresária, notando que os americanos começam a ficar fartos da "mediocridade dos vinhos técnicos" que lhes chegam da Argentina, do Chile e da Austrália.

Martine Saunier dá como exemplo o encontro que teve na feira anual em São Francisco, Wine & Spirits – onde este ano teve dois vinhos seus nos cinco melhores: um Niepoort e um Muscadet –, com um cliente australiano, que a não conhecia, e lhe disse: "O meu pai tem uma vinha de 300 hectares e vende milhões de toneladas de uvas todos os anos; mas é tudo feito mecanicamente, e eu já estou farto disso; do que verdadeiramente gosto é dos vinhos franceses da Martine Saunier". "Sou eu!" [risos].

E a "importadora extraordinária" fala da evolução do mercado, cada vez mais no sentido da atenção à qualidade. "Até aqui havia muita gente que não bebia vinho, depois começou a fazê-lo, mas pelos vinhos doces, muito marcados pela madeira; agora, tudo isso começou a passar de moda e há muitos americanos que já não podem ouvir falar no sabor a madeira", nota Martine Saunier, realçando também a importância de os restaurantes começarem a incluir nas suas equipas escanções "que gostam de explicar os vinhos aos clientes". "Se vocês lhes apresentarem bons vinhos de Portugal, isso vai intrigá-los; é uma missão: é preciso bater o terreno, mostrar, dar a provar. Mas vão chegar lá".

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