Terá sido pouco anos antes de os navegadores portugueses se terem feito à tarefa de dar novos mundos ao mundo que na Escócia alguém se aventurou a dar novos sabores ao palato. Com frades metidos ao barulho, como sempre acontece com tudo aquilo que são os prazeres da boca.
Quando hoje abordamos as prateleiras de uma garrafeira, na área dedicada aos whiskeys, deparamo-nos com uma imensidão de marcas, distintas na forma, na idade, na origem. Todas elas capazes de nos proporcionarem momentos de prazer intenso ou de montarem a base para um agradável espaço de convívio. Mas nada como um single malt para nos conduzir à essência da bebida, para nos pôr em contacto com o Rolls-Royce dos whiskeys.
Os estudos dedicados à noticia da criação do primeiro whisky— de malte, no caso — remontam a 1494. E há trabalhos que apontam mesmo a data de 8 de Agosto desse ano da graça como o momento em que um tal Frei John Cor se atirou à tarefa de criar aquilo que na altura foi denominado como uisge beatha, o que, traduzido do gaélico, significa água da vida.
Quem diria que uma imposição real, de Jaime IV, determinando que o tal frade produzisse VIII bolls of malt (400 garrafas por dia) iria lançar para o mundo uma bebida que se tornou incontornável e que tem uma legião fiel de seguidores espalhados pelos quatro cantos do mundo? Basicamente, porque um verdadeiro single malt é uma experiência que nos agarra para o futuro. O cristalino tom de mel no copo, a explosão de um certo picante na boca, ao primeiro trago, o cocktail de flores e frutos ao longo da degustação e o final prolongado em que os sabores adquirem novas dimensões acabaram ditar uma longa jornada para o tal spirit que conseguiu garantir para o seu nome algo que é fundamental para todos nós, a vida.
A técnica da destilação não foi descoberta na Escócia, mas a descoberta do malte como a base para a construção de uma bebida alcoólica é uma conquista escocesa. Traduzida para lei, no início do século XVI, através da criação do organismo que iria regular a produção da bebida, ainda então pela importância das suas propriedades medicinais.
Mas nunca como neste caso se foi tão longe na arte de combinar sabores e na forma de equilibrá-los com a potência do álcool, como acontece com outras bebidas. Nunca, como neste caso, se conseguiu um tipo de alquimia em que um pequeno trago da bebida consegue espalhar-se na boca como uma nuvem que a preenche. E permanece.
Vinicius de Moraes costumava dizer que "o whisky é o melhor amigo do homem. É o cachorro engarrafado". Para quem se lembra dos famosos espectáculos em que o compositor brasileiro "destilava" uma garrafa ao longo de hora e meia de canções, será fácil perceber o alcance da frase e, porventura, a importância que o whisky que Vinicius bebia acabou por ter na obra que deixou como legado.
Porque a famosa água da vida criada na Escócia é uma bebida fácil e, no entanto, de uma forte complexidade. Fácil, porque se bebe a qualquer momento, misturada com um pouco de água, on the rocks, ou mesmo simples. Funciona como aperitivo, na perfeição, ou, então, como um magnífico digestivo que potencia uma conversa e torna uma noite mais conjuntiva. Principalmente agora, que o frio voltou a ganhar terreno e o convívio em casa conquistou novos argumentos, contra os de uma saída até um bar ou mesmo uma esplanada à beira-mar implantada.
Um whisky bebe-se e pronto. Está lá tudo. Funciona por si mesmo. E então quando falamos de um belo single malt, feito com as finíssimas águas da Escócia e a saborosa cevada (primeiro maltada e, depois, seca com a turfa que lhe injecta o toque fumado e apimentado) a experiência não ganha uma dimensão sobrenatural, mas assume toques de divino.
A matéria prima do malte escocês é, de facto, um dos segredos da bebida inventada pelo famoso frade. Embora, actualmente, haja malt de outras proveniências que disputam o terraço dos deuses com os Rolls-Royce das ilhas britânicas. É o caso de algumas marcas japonesas que se batem, de igual para igual, com os ícones escoceses nos concursos internacionais.
No filme Lost in Translation, Bill Murray vai ao Japão gravar anúncios de um whisky local. Numa das cenas, antes de o spot começar a ser rodado, Murray prova o spirit e, pelo olhar, percebe-se que quer dizer algo do tipo: "Que grande zurrapa". Podia ser o caso, mas não é a regra. Os japoneses dão actualmente ao mundo maltes de grande qualidade.
Acontece, todavia, que os whiskeys japoneses, apesar da excelência, não apresentam fortes características distintivas entre si, o que é uma imagem de marca escocesa. Há, na terra onde a bebida foi concebida, whiskeys para todos os gostos, desde logo, incorporando a tradição que se foi vincando em cada região onde as destilarias estão a funcionar. E, depois, aproveitando o melhor que a natureza de cada local pode dar. Um malte de Islay é muito diferente do de Speyside, como um das Islands se demarca claramente do das Highlands.
Em Islay, por exemplo, há abundância de turfa, uma espécie de terra com propriedades combustíveis que é usada para secar o malte após a segunda germinação. Este ingrediente confere à bebida uma cor mais pronunciada e um toque fumado que muitas vezes insinua tons de iodo.
Já os maltes produzidos na zona de Speyside, mercê das propriedades da água utilizada nas destilarias, surge com um final mais doce, onde notas de caramelo podem sobressair, e uma componente acentuada de frutos.
Com o frio a apertar e o Natal à porta, o momento para um single malt está criado. Um whisky que é proveniente de uma mesma destilação e que, por isso, tem uma identidade própria, impossível de repetir no futuro. Um blend, que tem igualmente diferentes expressões de excelência, pode apresentar resultados mais próximos ao longo dos anos, mercê de uma gestão inteligente dos diversos lotes que são utilizados para compor a mistura.
Há quem defenda que um single malt é um músico que se apresenta sozinho. Um solista. Amanhã, ele pode ter outros músicos a acompanhá-lo, mas o resultado final não é o mesmo, é diferente.
No fundo, o mesmo acontece com os vinhos. Cada Barca Velha tem a sua identidade, o seu carácter, os seus sabores próprios, melhores ou piores do que os de outro ano, mas irrepetíveis. Com o single malt, é a mesma coisa.
Balvenie Single Malt 12 Anos. O segredo dos dois cascos
O single malt que convocamos para uma prova é um belo exemplar da região de Speyside, o Balvenie. No fértil vale banhado pelo famoso rio Spey, sucedem-se as destilarias, de marcas tão sonantes como o Glenfiddich, o Cardhu, o Glenlivet, o Macallan e, claro, o Balvenie.
Como sempre acontece na Escócia, a história do Balvenie tem como antepassado territorial um famoso castelo que, no final do século XVIII, deixou de cumprir as funções para que fora criado. Aí tinha vivido, rezam as crónicas, The Fair Maid of Galloway, Margareth Douglas, que pagava de renda anual, a um frei seu admirador, uma singela rosa vermelha.
Ao lado da antiga construção fortificada, surgiu um imóvel mais moderno, mais adequado às necessidades da época, que foi baptizado como a Balvenie New House. Foi aqui, no final do século XIX (Maio de 1893), que se começou a produzir whisky.
O verde domina a propriedade onde o Balvenie é todos os dias destilado. As águas puríssimas da região e a cevada cultivada nos próprios terrenos da destilaria acabam por estar na base de um produto de excelência. O primeiro andar do edifício está transformado no chamado malting floor, onde o cereal é transformado em malte de acordo com a velha tradição da casa Balvenie.
Os whiskeys da região de Speyside serão talvez os menos fumados da Escócia. Isso faz com que o produto final seja mais delicado, num registo mais pontuado pelos toques florais e pelo efeito dos frutos no palato.
O Balvenie Single Malt DoubleWood 12 anos é apenas uma das criações da casa. O carácter muito próprio que evidencia resulta do facto de ter feito uma primeira maturação em cascos de carvalho tradicionais, a que se seguiu uma passagem por cascos onde já tinha estagiado xerês.
Destilados em alambiques de cobre, que são objectos de regular e atenciosa manutenção, os whiskeys da Balvenie têm uma cor pronunciada, longe de outros exemplares da região, que apresentam uma transparência mais acentuada. Na prova, o primeiro momento é a de uma delicada explosão do álcool, à qual se segue a formação de uma espécie nuvem que se espalha pela boca. Como um champanhe, mas sem a bolha. Destacam-se então, no aroma, notas de mel e baunilha (muito comum nos whiskeys da região) e evidências de fruta fresca conferidas pela passagem pelo casco de xerês. O final deste whisky, longo e suave, convoca tons de amêndoa e um pouco de coco. O Balvenie 12 anos é distribuído pela Primedrinks e custa aproximadamente 36 euros.