Fugas - Vinhos

  • Mário Sérgio e Carlos Campolargo
    Mário Sérgio e Carlos Campolargo Adriano Miranda
  • Bairrada, Campolargo, Quinta de São M
    Bairrada, Campolargo, Quinta de São M Adriano Miranda
  • Campolargo, Rol de Coisas Antigas 2009
    Campolargo, Rol de Coisas Antigas 2009 Adriano Miranda
  • Bairrada, Quinta das Bágeiras
    Bairrada, Quinta das Bágeiras Adriano Miranda
  • Quinta das Bágeiras, Garrafeira Tinto 2008
    Quinta das Bágeiras, Garrafeira Tinto 2008 Adriano Miranda

Debate: A Bairrada vista de ângulos diferentes

Por Pedro Garcias

Carlos Campolargo e Mário Sérgio, dois reputados produtores da Bairrada, têm percorrido caminhos diferentes. Campolargo não vê na Baga o Santo Graal da região; Mário Sérgio, da Quinta das Bágeiras, mantém-se fiel às castas locais, em especial à Baga. A Fugas juntou-os e constatou que, afinal, há mais pontos a uni-los do que a separá-los.

Carlos Campolargo, advogado em pousio que lidera os destinos da casa Campolargo Vinhos, chegou à hora marcada à Quinta das Bágeiras, para um "frente-a-frente" com Mário Sérgio. Minutos antes, tinha passado por lá Filipa Pato, "Baga friend" como Mário Sérgio. Três produtores, três gerações diferentes que, de forma distinta, estão a tentar colocar de novo a Bairrada no mapa. A conversa arrancou no meio de uma das vinhas velhas das Bágeiras, em Ancas, não muito longe dos extensos vinhedos, mais novos, de Campolargo, situados no mais belo trecho da paisagem bairradina.

Mário Sérgio: Esta é uma das cinco parcelas de vinha velhas, maioritariamente Baga, de onde tiramos as uvas para o Quinta das Bágeiras Garrafeira [o vinho principal da casa]. Temos uma parcela ainda mais velha, que era do meu avô. Acredito que tenha sido plantada logo a seguir à filoxera [no final do século XIX]. O meu avô teria hoje 102 anos e ele dizia-me que se lembra de a podar quando tinha 14 anos e que nessa altura a vinha já era velha. Eu fui mantendo estas vinhas, que são muito trabalhosas, principalmente pelo potencial que elas têm.

Carlos Campolargo: Houve um momento em que as vinhas velhas desapareceram aceleradamente, quando começaram a chegar os primeiros dinheiros da União Europeia para a reestruturação da vinha. Coincidiu com uma altura em que Portugal estava a alterar a sua face, um Portugal rural que se urbanizou muito rapidamente. Essas vinhas tornaram-se quase uma impossibilidade. A última vinha velha do meu avô desapareceu no final dos anos 80. Ainda tentei preservar aquela parcela como ecomuseu, mas quem vai à frente é que traça o caminho. Há sempre aspectos que se podem discutir em relação às vinhas velhas. As videiras vão buscar em profundidade água, sais minerais e outros nutrientes. Se a videira é antiga e profunda, vai buscar tudo isso mais intensamente. Como com a idade se torna mais manhosa, regula a sua carga e consegue dar vinhos mais concentrados. Mas às vezes as vinhas novas surpreendem-nos. Há quem diga que não se volta a fazer tão bom vinho como o da segunda folha!...

Mário Sérgio: Eu prefiro ter uma vinha nova num sítio muito bom do que uma vinha velha num sítio mau. Com o vinho Pai Abel fizemos isso. Há cerca de 15 anos comprámos um terreno que tinha sido abandonado e plantámos lá uma vinha nova. Esse terreno tinha sido em tempos uma vinha e o pai dizia-me que dava um vinho muito bom. Em sítios destes também é possível produzir um grande vinho com vinhas novas. Mas se eu tiver uma vinha velha num sítio muito bom não a arranco por nada deste mundo.

Carlos Campolargo: Há dias vi num jornal uma menção à vinha que é considerada a mais antiga da França. É um monumento nacional. As uvas dessa vinha plurissecular vão para a cooperativa local porque o próprio proprietário diz que as uvas não são grande coisa!...

Mário Sérgio: Podemos entrar noutra discussão, na velha discussão sobre se a casta Baga é ou não uma grande casta. Ali ao lado desta parcela plantei uma vinha nova. Do meio para cima plantei Baga. Na parte de baixo plantei branco. Na parte de baixo, de certeza que iria ter uma Baga não muito boa. Na Bairrada, o conceito de terroir faz todo o sentido. Este terreno, por exemplo, é argilo-calcário e tem uma boa exposição e inclinação, o que é importante para a Baga. Não quer dizer que não haja terrenos mais planos, mais a sul, para Cantanhede, por exemplo, onde a Baga se possa dar bem. Aqui nesta zona, a inclinação é determinante para a Baga se dar bem.

Carlos Campolargo: É determinante para qualquer vinha. O que podemos dizer é que a Baga — reparem que eu nunca digo a ´casta Baga` [risos] —, dada a sua delicadeza, precisa mesmo desse tipo de solo e dessa boa drenagem. Num ano chuvoso, se não estiver bem instalada e cuidada, o seu destino é a podridão e a insuficiência de maturação.

Mário Sérgio: Por isso é que eu digo que é determinante. Porque havia uma ideia generalizada de que a Baga dava duas boas colheitas de dez em dez anos. Se a instalarmos no local certo, podemos ter resultados muitíssimos bons e produzir vinhos com uma identidade muito bem definida na nossa região. Aquilo que se fez durante muitos anos foi plantar Baga em todos os sítios, por ser uma casta produtiva.

Carlos Campolargo: A variedade de solos na nossa região é incrível. Em 300 ou 400 metros lineares, nós passamos de um tipo de barro para outro bem diferente, para afloramentos calcários mais nítidos, para manchas de areia à superfície. Nos cabeços, temos areias com barro e calhau rolado. Isso é bom e é mau. Se quisermos, por exemplo, ter uma área interessante de Baga em solos argilo-calcários aqui nesta zona, não existe terreno para isso. Os terrenos são pequenos. Só na zona de Cantanhede, em Ourentã Cordinhã, Outil, onde temos um plateau verdadeiramente plano, é que se encontra uma faixa de terreno com cerca de um quilómetro sem variações significativas de solo.

Mário Sérgio: Diz-se que a Bairrada é a nossa Borgonha e julgo que isso faz algum sentido. A variedade de terreno, a reduzida dimensão das parcelas e o facto de ter existido durante muito tempo apenas meia-dúzia de castas e a Baga ter uma preponderância tão grande, como o Pinot Noir tem na Borgonha, são bastante comparáveis. A importância que dão na Borgonha ao terroir também se verifica aqui.

Carlos Campolargo: Hoje fala-se de terroir como se o terroir fosse o terreno. Não é. Terroir é um conjunto de factores em que a acção do Homem é decisiva, e a acção do Homem na Borgonha em termos de vinha e vinho é muito antiga. A Borgonha tem imensos maus vinhos, mas também tem as suas locomotivas, que são de topo mundial. Nesse sentido, não somos uma Borgonha. Não temos essa história, esse trabalho feito, essa projecção mundial. Mas temos uma coisa positiva. Eu costumo dizer que o tempo corre a nosso favor. A história do consumo do vinho em Portugal é recente e o que nós sabemos é que o consumidor está a vir do Alentejo para o Douro e que mais cedo ou mais tarde vai acabar aqui e no Dão, nos vinhos mais secos e frescos, mais apropriados para comer.

Mário Sérgio: Se for só para provar, talvez os vinhos do Alentejo e do Douro impressionem mais. Mas o vinho foi feito sobretudo para se beber. Eu não tenho prazer quando cuspo o vinho. Aí fico com uma percepção do que é o vinho. O que me dá prazer é quando me sento à mesa a comer e a beber bem, seja lá o vinho que for.

Carlos Campolargo: Os meus vinhos favoritos de Portugal nascem de uma forma geral numa faixa que começa aqui junto ao mar, que vai de Figueira [da Foz] a Figueira [Castelo Rodrigo]. Há nesta faixa um grande equilíbrio climático e os vinhos, feitos de maneira tradicional, não mascarados por um mau uso da madeira, são extraordinários. São vinhos que eu gosto, que me apetecem. Na Bairrada deverá haver apenas uma marca, que é a da mão do homem, que escolhe a casta e a maneira de fazer. Não nos devemos ajustar muito às variações do mercado. Quem quer estar na moda nunca está na moda. A casta é importante? Só até certo ponto. Aqui tenho que ser um bocadinho duro em relação à Baga. Ela está em toda a região centro. Na zona de Tomar, em Porto de Mós e em Alcobaça talvez haja mais Baga do que na Bairrada. Há uma teoria que a dá como sendo mais antiga no Dão. Não estou preocupado com isso. Estou mais preocupado em fazer e em experimentar o que acho ser melhor para a minha terra. Foi isso que fizemos na nossa casa. Plantámos umas castas mais adequadas ao interesse dos clientes que nos compravam uvas, outras mais fundadas na nossa curiosidade de experimentar. Depois de fazermos o vinho dessas diferentes variedades, somos muitas vezes confrontados com provadores que, sem saberem o que estão a provar, nos dizem: ‘Se isto for português, só pode ser da Bairrada’. Porque o terreno e o clima, sobretudo, imprimem uma marca muito profunda no vinho e este não deixa de ser Bairrada só porque a casta é menos conhecida. Devo acrescentar que a preponderância da Baga na Bairrada é uma coisa muito recente, posterior à filoxera, e só tomou ascendente por causa do oídio, porque a Baga era a que mais produzia e a que mais resistia ao oídio.

Mário Sérgio: A casta Baga é a que mais nos pode identificar porque é a maioritária. Os grandes vinhos da década de 60 das Caves São João vinham do Dão, de Tázem, e uma parte significativa deles tinha Baga. Se a temos cá, devemos preservá-la. Na Bairrada é como no futebol: passa-se muito facilmente do 8 para o 80. A Baga ou é a melhor casta do mundo ou não presta rigorosamente para nada. É uma casta de opostos. E é-o porque durante muito tempo foi plantada para produzir muito, em qualquer sítio. A região não deve estar só dependente de uma só casta e há muitos lugares da Bairrada onde a Baga não devia estar. Podíamos aproveitá-los para outros vinhos. A Bairrada tem um potencial enorme para produzir vinhos brancos e tem uma história fantástica nos espumantes, que deixámos perder um bocadinho. Mas continuo a achar que a Baga é a casta emblemática da Bairrada. É uma casta que necessita muito da presença do homem. Na maior parte dos anos, faço três vindimas, para reduzir o excesso de produção. Para ser boa, a Baga não pode produzir muito. O meu avô e o meu pai costumam dizer: ‘A pessoa que tem o melhor vinho aqui da Fogueira é o fulano tal, porque tem um vinho de malandros’. O que era um vinho de malandros para eles? Era um vinho de videiras que produziam pouco, que o dono não tratava bem, que era pouco adubada. Se transpusermos isso para a actualidade, se não produzirmos tanto por hectare, podemos produzir um grande vinho de Baga, sem sermos fundamentalistas. Há outras castas que podem ter cá presença, mas a imagem da nossa região passa muito por aquilo que conseguirmos fazer com a Baga.

Carlos Campolargo: A tradição do país era misturar uma variedade de castas que correspondia a uma média de uvas verdes, maduras e mais que maduro, e daí saía o vinho do ano. Essa diversidade preservava as dificuldades de cada casta relativamente ao clima do ano. Se era pior para umas, era melhor para outras, e vice-versa. Era uma mistura ‘acautelatória’, como diria um personagem da telenovela Bem Amado. Nós tínhamos essa variedade instalada aqui de uma forma muito nítida. Eu sou muito apologista de manter essa diversidade, em nome da fazer 10 vinhos em cada 10 anos.

Mário Sérgio: Eu falo de identidade e imagem. Nas nossas vinhas velhas, a Baga ocupa 85% do encepamento.

Carlos Campolargo: Como já disse, a predominância da Baga é uma coisa moderna. A viticultura e a produção de vinho são processos dinâmicos. Só quando temos realmente um tesouro nas mãos é que não queremos mudar. E quem tem tesouros são muitos poucos neste mundo. Não é o caso da nossa região. Eu diria que a Bairrada é bastante pobre em termos gerais. A diversificação recente de castas não surgiu por as pessoas estarem contentes com a Baga, foi por estarem descontentes. Mudou-se o estatuto da região e alguns vinhos que eu tinha de declarar como Regional Beiras, e que até recebiam boas classificações, passei a poder declará-los como Bairrada. Isso não foi bom? O importante é guardar o sítio, o nosso terreno, manter lá a vinha. As castas que usamos podem ser as tradicionais ou outras, como o Chardonnay e o Pinot Noir, que vieram para Bairrada com o método champanhês, no final do século XIX. Estamos no melhor lugar para o Pinot Noir, por exemplo? Não, mas acho que com o clima fresco que temos aqui podemos fazer bons vinhos. Em relação as castas de Bordéus é diferente. Eu fui o primeiro a plantar Petit Verdot e um dos primeiros a plantar Merlot. O Cabernet Sauvignon já existia há mais tempo. Nós temos na Bairrada condições que se Bordéus as tivesse batia palmas, fazia uma festa. Se pudesse fazer o seu vinho nesta latitude e longitude, Bordéus encontrava o paraíso. Nós temos o direito de participar no que se chama o Bordeux like, o tipo Bordeux, como acontece com a Austrália, o Chile, a África do Sul, a Califórnia.

Mário Sérgio: Não tenho nada contra. Eu sou fascinado pelo Chardonnay, por exempo. É uma casta extraordinária. Mas, atendendo à nossa dimensão, que é pequena, não podemos andar trás da moda, a fazer o mesmo que os outros. Temos que apostar no que é nosso, sem medo de ir à luta. É preferível perder por 5-3 do que por 5-0. Se formos teimosos podemos estar a jogar a liga dos campeões daqui a alguns anos. Nós não temos o melhor vinho do mundo, mas temos potencial para fazer um dos melhores vinhos do mundo.

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