Fugas - Vinhos

Cuidado, não poluir pode ser considerado um crime

Por Rui Falcão

Os princípios fundamentais da agricultura orgânica, tanto filosóficos como factuais, continuam infelizmente a ser mal apreendidos pela maioria, continuam a ser pouco valorizados e respeitados, tanto por consumidores como pela maioria dos próprios produtores e demais agentes económicos do vinho.

A agricultura orgânica, que pretende fugir aos produtos químicos de síntese mais agressivos respeitando a natureza e os seus ciclos, continua a ser encarada como um mundo exótico povoado por figuras estranhas e excêntricas.

Mas se a agricultura orgânica já é encarada desta forma mais ou menos depreciativa, a sua alternativa mais holística, a biodinâmica, é encarada com franco desdém e muita incompreensão à mistura com uma reacção de gozo e acusações de ridículo. Não é fácil aceitar uma agricultura que colide frontalmente com a racionalidade que sustenta o pensamento científico ocidental. Não é fácil avaliar os fundamentos da biodinâmica e da corrente filosófica e espiritual que sustenta a sua prática, a antroposofia, quando as suas ideias são tão transgressoras, simultaneamente tão clássicas e tão inovadoras. Não é fácil adoptar ou aceitar uma corrente filosófica que por vezes se aproxima mais do esotérico e do misticismo que da lógica a que estamos acostumados.

Um modelo agrícola que professa a auto-suficiência e a sustentabilidade ecológica acrescentando ainda considerações éticas e espirituais. A atenção ao detalhe, e sobretudo o respeito pelos ritmos e ciclos da natureza, a atitude interior, são condições fundamentais para as práticas agrícolas orgânicas. Poderá parecer estranho ou até exótico para quem tem uma vivência essencialmente urbana mas o respeito pela natureza, pelos solos e pela água, pela preservação da diversidade biológica, pela sustentabilidade do planeta é uma obrigação moral e patrimonial de quem detém a terra e dela vive.

Apesar de a maioria dos produtores e viticultores ainda se sustentarem em práticas agrícolas tradicionais, umas mais interventivas ou mais danosas que outras, percebe-se uma adesão cada vez mais interessada pelas práticas de uma agricultura mais sustentável com um recurso cada vez menor a produtos de síntese. A percepção social e ética da necessidade imperiosa da conservação, de preservar o planeta para as gerações futuras aumenta, tal como aumenta a percepção mais económica e material que a agricultura orgânica produz uvas de melhor qualidade que proporcionam por sua vez vinhos mais sérios e genuínos.

Apesar dos inegáveis progressos na aceitação das práticas agrícolas naturais, tanto na mudança de mentalidades como na normalização das práticas, continuam infelizmente a surgir casos de alienação da realidade, ignorância ou simples escuridão intelectual. O caso mais recente de incompreensão perante os fundamentos da agricultura orgânica ocorreu em França e levou mesmo à prisão e julgamento de um viticultor biológico da região francesa de Côte d’Or, de seu nome Emmanuel Giboulot. Tudo porque o mesmo se recusou a aplicar um pesticida “recomendado” pelo poder autárquico local para combater uma das pragas da vinha mais recentes e assustadoras para os viticultores europeus, a flavescência dourada.

Sejamos honestos, a flavescência dourada é uma praga ameaçadora e problemática, uma doença que afecta a vinha de modo especial, uma doença importada dos Estados Unidos da América provocada por um fitoplasma que pode matar uma videira, ou uma vinha inteira, num curtíssimo espaço de tempo que por vezes chega a ser de menos de três anos. Um problema real e um perigo que urge tratar e que não pode nem deve ser escamoteado. A grave doença é propagada por cicadelídeos, pequenos insectos de origem americana que hoje já se encontram disseminados pela Europa. Se a maleita começou em França, hoje os seus efeitos já se estendem a grande parte da Europa, Portugal incluído.

A melhor forma de controlar a praga é, consequentemente, tratar de eliminar ou pelo menos debelar a população de insectos que transportam a virose. Por isso, e devido à presença de flavescência dourada na região, as autoridades locais de Côte d’Or determinaram a obrigatoriedade de utilização de pesticidas para o controlo dos tais cicadelídeos. E aqui é que entra o paradoxo. O pesticida requerido mata não só os insectos prejudiciais como igualmente os restantes insectos indispensáveis para a vida de plantas e solos, chegando ao extremo de eliminar insectos tão valiosos como as abelhas.

Para quem como Emmanuel Giboulot mantém e alimenta uma vinha de dez hectares em regime orgânico há quarenta anos a proposta era não só absurda como atentatória ao seu passado, presente e desejo de futuro. Em vez do pesticida prescrito por decisão burocrática, Emmanuel Giboulot serviu-se das muitas soluções orgânicas disponíveis para combater a flavescência dourada, usando armadilhas coloridas e confusão sexual, argila em cinzas, palha seca e papel de alumínio. Ao permitir a biodiversidade na vinha, promoveu a vida dos predadores habituais dos cicadelídeos, a manutenção de aranhas e insectos benignos na vinha, os mesmos que os pesticidas recomendados iriam precisamente exterminar.

Até aqui tudo bem, não fora a visita de um fiscal agrícola do poder regional. Ao aperceber-se que Emmanuel Giboulot não tinha espargido o pesticida prognosticado, e indiferente às muitas explicações técnicas do viticultor e aos fundamentos das alternativas orgânicas, denunciou o caso ao procurador de justiça. Este não só não aceitou qualquer justificação como decidiu dar ordem de prisão imediata ao viticultor e consequente julgamento em tribunal correccional, apresentando-o como detido de delito comum junto a criminosos duros de penas agravadas.

Sim, a doença é perigosa e potencialmente destrutiva para a vinha. Mas existindo métodos alternativos de contenção da praga será lícito que o estado obrigue ao recurso de pesticidas… criminalizando em paralelo os princípios essenciais da agricultura orgânica?

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