Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

“O Dão é das poucas regiões que resistiu à entrada de castas estrangeiras”

Por Pedro Garcias

João Paulo Gouveia é um dos rostos proeminentes da vitivinicultura do Dão. O criador do vinho Pedra Cancela considera que faltam mais marcas de renome e aplaude a chegada de novos actores, como João Portugal Ramos, Dirk Niepoort, Jorge Moreira, Jorge Serôdio Borges e Francisco Olazabal, que podem ajudar a virar os holofotes para uma das regiões portuguesas mais apáticas, apesar do seu enorme potencial.

Nas últimas eleições autárquicas, João Paulo Gouveia foi eleito vereador da Câmara Municipal de Viseu na lista do PSD, passando a ser o responsável pelas obras públicas e o desenvolvimento rural, entre outros pelouros. Suspendeu a docência no Instituto Politécnico local e diminuiu o trabalho de consultadoria enológica junto de alguns produtores do Dão, mas, em contrapartida, deu um novo rumo à sua marca de vinho, Pedra Cancela, convertida na principal bandeira da Lusovini, produtora e distribuidora de que é fundador e sócio. Nesta entrevista, João Paulo Gouveia reconhece que o Dão tem andado mais devagar do que outras regiões nacionais e lamenta que não exista um grupo do tipo Douro Boys ou Baga Friends. Mas acredita que a região se está a reconciliar com o país e que dispõe de uma vantagem competitiva importante por ter resistido à entrada de castas estrangeiras.

O que se passa com os vinhos do Dão, que todos dizem ser muito bons mas que vendem pouco?

O Dão não pode, de facto, ser apenas uma terra de promessas, não pode ter apenas o potencial. Potencialmente, potencialmente, dizemos todos, mas o efectivamente nunca acontece.

E porquê?

Por várias razões, mas a situação está a mudar um bocadinho. O vinho do Dão está a reconciliar-se com o país. A partir dos anos 80 do século passado, a região passou a contar com dois ou três protagonistas importantes. O primeiro foi a Sogrape, que veio revolucionar um pouco as coisas, ao começar a pagar as uvas de acordo com o tipo de casta. Depois apareceram a Dão Sul, a Borges, e por aí adiante. Estes players foram muito importantes, porque começaram a colocar os vinhos do Dão nos supermercados, nas grandes superfícies, que é onde se vende o grosso da produção. Com a conjuntura económica dos últimos anos, a trajectória que o Dão estava a seguir foi um pouco interrompida. Se essa trajectória de crescimento não tivesse sido interrompida, estou certo que os produtores teriam ganho outra dimensão e que as cooperativas se teriam profissionalizado mais.

No Douro, por exemplo, não foram as cooperativas que puxaram pela região. O "boom" dos vinhos do Douro coincidiu até com o apagamento das cooperativas. Não faltará sangue novo ao Dão?

A região também é mais pequena do que o Douro ou o Alentejo, por exemplo, mas faltam-lhe várias coisas. Faltam-lhe ícones, marcas com imagem forte no mercado…

Os vinhos do Centro de Estudos de Nelas, sobretudo os célebres 1963, não são um ícone forte?

São, mas não estão no mercado. É necessário mais profissionalismo e actualização dos produtores, trabalhar cada vez mais em rede e trazer gente à região. A CVR do Dão está a fazer um esforço e tem um papel fundamental, juntamente com a Viniportugal. O professor Arlindo Cunha [presidente da CVR do Dão] já anunciou que a Rota do Vinho do Dão será uma realidade. Também poderá ajudar a alavancar um pouco o crescimento…

A Rota não deveria existir há 20 anos?

Sim, nesse aspecto a região está um pouco atrasada. Quando os outros já estão noutra fase, nós ainda estamos a construir a Rota. Falta mais organização e dimensão de forma a profissionalizarmos a actividade vitivinícola.

Regressando à falta de novos actores. O sucesso da Quinta da Pellada, por exemplo, não é suficientemente inspirador para que outras pessoas comecem a olhar para o Dão como um "terroir" especial onde vale a pena investir?

O Álvaro Castro é o melhor exemplo que existe e o Dão deve-lhe muito. Mas, como dizia, se a trajectória se tivesse mantido como nós pensávamos, talvez isso hoje fosse uma realidade.

A crise também afectou as outras regiões e nem por isso caíram na apatia que se sente no Dão. Há poucos jovens enólogos a dar nas vistas…

Ou a região não tem gente ou a que tem não fica cá ou os que estão cá têm medo, não consigo saber. Muitos produtores vivem de uma primeira actividade que não é o vinho. São médicos, engenheiros, que mantêm a exploração agrícola com uma marca agregada, sob a responsabilidade de duas ou três pessoas. Falta alguma ambição, falta ir a feiras, mostrar o vinho, e não ficar à espera que os compradores apareçam. No entanto, há vários projectos muitos interessantes ainda pouco conhecidos que vão começar a ser falados. A Júlia Kemper é um deles, mas podia falar do Chão da Quinta e do Cmwines [vinhos Allgo], de um empresário português que vive na Alemanha. A própria Lusovini [produtora e distribuidora sediada em Nelas mas com filiais em Angola, Moçambique e Brasil], de que sou fundador e acionista, é uma alma nova na região. Com a Lusovini, já saem do Dão cerca de um milhão de garrafas de vinho. Há alguma renovação, mas ela ainda não é muito visível, porque estes novos produtores instalaram-se em contraciclo. O que fizeram desde o primeiro dia? Exportar, porque o Dão não está divorciado do mundo.

Mas está do país?

Eu não diria divorciado, mas as outras regiões sobrepuseram-se ao Dão e abafaram-no. Andaram mais depressa. O Dão talvez não tenha feito o seu trabalho. A tal rota, os ícones…

A vinda de Dirk Niepoort para o Dão [a Niepoort comprou vinhas no concelho de Gouveia e vai brevemente lançar um vinho novo] pode dar uma ajuda…

É importantíssimo. É a prova de que a região está a tornar-se atractiva novamente. Não é só o Dirk Niepoort. Também já estão cá o João Portugal Ramos [que arrendou as vinhas da Quinta da Bica e passou a comercializar os vinhos daquela casa histórica], o Jorge Moreira [vinhos Poeira], o Jorge Serôdio Borges [Pintas] e o Francisco Olázabal [Quinta do Vale Meão], os três com o projecto MOB. É o tal sangue novo. São pessoas com nome que podem ajudar a virar os holofotes para a região. A Bairrada, desde que o Dirk foi para lá, passou a ter os Baga Friends [formação semelhante à dos Douro Boys].

Porque não existe um grupo semelhante no Dão?

Não sei explicar. O Dão tem todas as condições para chamar a si o título de região com a melhor Touriga Nacional do mundo. Não sei se a Touriga Nacional é originária do Douro ou do Dão, embora os estudos de variabilidade genética da videira indiquem que é do Dão. Mas é no Dão que ela se comporta melhor, onde se expressa de forma soberba. É o seu "terroir". Apesar disso, nunca se fez nada em torno da Touriga Nacional. Deveria haver um Touriga Nacional Friends ou qualquer coisa do género. Era importante que um conjunto de produtores, mesmo que de forma informal, se agregasse em torno da Touriga Nacional. Devo dizer que ainda tente fazer uma coisa dessas há cerca de 10 anos, mas encontrei algumas reticências por parte de vários produtores. Podia dizer o mesmo da casta Encruzado, que está para os brancos como a Touriga Nacional está para os tintos. É uma casta soberba e igualmente bastante plástica. Já a experimentei em outras regiões e o seu comportamento é muito bom. Se temos a melhor Touriga Nacional e o melhor Encruzado, só precisamos de os promover, de ir a mais feiras e concursos, de aparecer mais em revistas e jornais.

Falta chegar ao consumidor?

Exactamente. E não me venham dizer que é um problema de quantidades, que vender para a China, para o Brasil, para os Estados Unidos, para onde quer que seja, é um problema de quantidades. Quando chegamos ao consumidor, ele compra os nossos vinhos. Os críticos estrangeiros acham os nossos vinhos esplendorosos. Mas isso não chega. Os produtores têm que fazer o seu trabalho. Se o produtor não tiver meios para o fazer, a CVR tem que se organizar e fazer essa promoção. O esforço da CVR tem sido relevante, mas pode ser ainda maior. O Solar dos vinhos do Dão, por exemplo, devia ser mais dinamizado, porque os olhos também comem. Devemos puxar por aquilo que temos de melhor. O Dão é das poucas regiões que resistiu à entrada de castas estrangeiras.

Como explica isso?

O Dão é das regiões mais antigas do país e só permite a entrada de uma ou outra casta, tipo Alicante Bouschet. Mas tem resistido às castas estrangeiras sobretudo porque se dá bem com a Touriga Nacional, com o Alfrocheiro, com o Encruzado, com o Verdelho, com a Malvasia Fina. Eu próprio já fiz experiências com castas estrangeiras. Plantei Merlot, Pinot Noir, algumas castas brancas, e vinifiquei-as, mas acabei por reenxertar tudo para Touriga Nacional e Encruzado.

Não acrescentavam nada?

Nada. Numa região como a Bairrada, que tinha cerca de 95% de Baga, era compreensível recorrer a outras castas, porque não podiam ter bons vinhos apenas de cinco em cinco anos. No Dão não há esse problema. Graças à tecnologia disponível, não temos necessidade de irmos pelo caminho mais fácil de introduzir castas estrangeiras para respondermos às alterações climáticas. Não haver no Dão praticamente ninguém com castas estrangeiras pode ser uma vantagem competitiva muito grande.

Como resume o tal potencial do Dão de que tanto se fala?

Noventa e sete por cento dos solos da região são graníticos, com PH baixos. Como os solos são pobres e rotos, com pouca retenção de água, pode chover à vontade. Por outro lado, as raízes chegam facilmente à rocha mãe e espalham-se por ela, e a cerca de dois metros de profundidade têm sempre frescura. Estes solos, associados a um clima não demasiado agreste para as videiras – a serra do Caramulo protege-nos dos ventos marítimos e a serra da Estrela dos ventos continentais -, com amplitudes térmicas elevadas nos últimos 30 dias de maturação, confere aos vinhos uma cor cintilante, elegância e frescura.

O que é que a Touriga Nacional do Dão tem que a do Douro não tem?

Ou não tem noutras regiões do país…

Sim, mas foi no Douro onde ganhou maior expressão…

Tem a característica que lhe é impressa pelo "terroi": tem mais floral, não é tão concentrada e é mais elegante. É a única casta da região que pode ir para o mercado quase sozinha. O Alfrocheiro não produz muito, mas os produtores-engarrafadores gostam muito dela. Tem um bago muito pequeno, é muito aromática e possui tanta acidez como a Touriga Nacional, ao contrário da Jaen e da Roriz, que são castas com menos acidez natural e que, por isso, envelhecem pior. A Tinta Pinheira [o Rufete do Douro] dá vinhos muitos ácidos e com pouca cor. Serão sempre vinhos de nicho, porque não se encaixam bem no padrão dos vinhos do Dão. A nossa tradição é o blend, o vinho de lote.

Os vinhos do Dão envelhecem muito bem, mas estão a sair cada vez mais novos…

Mais uma vez, a conjuntura económica tramou-nos, porque as pessoas hoje não compram vinhos para os ter em casa durante vários anos. Agora vamos ao supermercado comprar vinhos para beber daqui a bocado. Há alguns mercados, como o suíço, por exemplo, que ainda compra vinho de um ano para o consumir no ano seguinte, mas é cada vez mais difícil fazer vinhos para guardar alguns anos em casa. O aumento dos custos de produção e a pressão sobre o preço final do vinho não nos deixam muitas alternativas. Eu próprio estou a vender reservas de 2012. É a vida.

Os vinhos de João Paulo Gouveia

O objectivo era estabilizar nas cinquenta mil garrafas e, quanto muito, crescer até às 80 mil, mas, em pouco mais de um ano, fruto das circunstâncias do negócio, João Paulo Gouveia viu a produção de Pedra Cancela, a sua marca, subir exponencialmente. A saída do vinho Boas Vinhas, de Nuno Cancela de Abreu, do portefólio da distribuidora Lusovini, levou os responsáveis da empresa a apostar no Pedra Cancela, transformando esta marca na sua principal bandeira. A decisão obrigou ao arrendamento de 40 hectares de vinha, que permitiu lançar novas referências premium, como o Pedra Cancela Signatura (branco e tinto), e um novo vinho de combate que está a ser exportado para inúmeros países, o Pedra Cancela Selecção do Enólogo. Hoje, as vendas de Pedra Cancela rondam o meio milhão de garrafas.

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