Em Dezembro de 2013 a colunista de vinhos do jornal britânico Financial Times Jancis Robinson dedicou-se a fazer um daqueles balanços que os jornalistas costumam fazer no final de cada ano que passa e entre uma abundante lista de dados sobre consumo, de exportações e importações revelou um dado surpreendente: dos inúmeros vinhos de todo o mundo que provou entre 1999 e 2012, os que obtiveram a média mais elevada (16.5 numa escala de zero a 20) foram os vinhos de Portugal, que ficaram melhor pontuados que os franceses, os italianos ou os espanhóis. Poucos meses mais tarde, em Março deste ano, Matt Kramer, jornalista da revista norte-americana Wine Spectator, avisava num artigo da sua edição on-line que se tinha mudado com a família para Portugal porque é cá que hoje se encontra com toda a probabilidade "o lugar mais excitante do vinho do planeta". Em Abril, o colunista Dave McIntyre do Washington Post iniciava um texto escrevendo assim: "As pessoas frequentemente perguntam-me quais são os países produtores de vinho que mais gosto. Eu gosto de os surpreender colocando Portugal no primeiro lugar da lista".
Mas, o que se estará a passar? Terá Portugal de um momento para o outro superado todas as suas limitações, toda a sua pequenez geográfica, e ascendido ao lugar do topo mundial dos vinhos de qualidade? Ao nível da alta crítica internacional, onde Jancis e Matt Krammer se incluem, não sobram dúvidas que sim. No ano passado, os vinhos portugueses ganharam milhares de prémios em concursos internacionais. Muitos do seus vinhos são frequentadores habituais das categorias acima dos 90 pontos nas revistas da especialidade. E, celebrando uma vindima mágica, houve três vinhos do Porto de 2011 chegaram até a obter 100 pontos numa escala de zero a… 100.
Há quem relativize a importância destas notícias e recorde que a cada passo se ouve dizer no estrangeiro que Portugal vai dar o salto no mundo do vinho, sem que o salto venha mesmo a acontecer. Há, no entanto, sinais de que começa a haver no mercado global alguns indícios de que a procura de vinhos do "Velho Mundo" está a crescer em detrimento dos vinhos padronizados do "Novo Mundo". E Portugal será um dos beneficiários dessa tendência. De 2012 para 2013, a Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV) notou que os europeus aumentaram as suas exportações em 2.4%, enquanto os novos países produtores recuaram 1%, com a Austrália e a Argentina a acusarem quebras significativas nas suas vendas. José Telles, administrador da Niepoort, lembra que esses resultados dependem das políticas cambiais que influenciam os preços, mas reconhece também que "há um certo cansaço pelos vinhos padronizados" e que "o vinho português começa a aparecer no radar".
Porquê? "O que destaca o vinho português é o facto de ser único, de apresentar características completamente diferentes", diz João Pires, o Master Sommelier português que vive e trabalha em Londres. Muitas dessas diferenças resultam de uma aliança ancestral entre as técnicas humanas e uma enorme variedade de "terroir", com regiões mediterrânicas e semiáridas, montanhas agrestes no Norte e extensas planícies no Sul. Depois, sobre esse puzzle de solos e climas, cultiva-se uma diversidade genética que torna a viticultura portuguesa numa das mais ricas do planeta.
As castas são os ingredientes fundamentais do vinho. É a sua natureza que dá a um tinto firmeza, consistência e longevidade, ou a um branco acidez, tensão e frescura. Poucos países têm uma tão grande variedade e riqueza de castas como Portugal. Enquanto o padrão de uma vinha em França ou na Austrália se expõe com três ou quatro castas, nas vinhas velhas do Douro podem ter 100 ou 200. Um projecto de investigação liderado por agrónomos, geneticistas e biólogos, o Porvid, estuda actualmente mais de 250 castas. Algumas são do conhecimento dos apreciadores mais sofisticados, de Nova Iorque ou de Londres, como a Alvarinho (que Portugal partilha com a vizinha Galiza, no Norte da Espanha), a Verdelho ou a Touriga Nacional, que se encontram aliás plantadas em muitas outras regiões do mundo. Mas, no mundo rural do interior podem-se encontrar espécies mais raras, mais exóticas e com nomes que denunciam a velha paixão dos portugueses pelas videiras. Dedo de Dama, por exemplo. Ou Amor-não-me-deixes.
Esse activo é, porém, apenas um ingrediente, por muito importante que seja. Para começar, para um mercado mundial habituado a escolher vinhos por serem provenientes de Syrah ou Cabernet Sauvignon, o facto de não conhecerem as castas portuguesas é muitas vezes visto como um obstáculo. Mais, "Portugal não é um país de vinhos de casta, é um país no qual o que conta é o blend (mistura)", diz João Pires, que não recusa a utilização pontual de variedades estrangeiras nos vinhos portugueses – "desde que sejam bem feitos", avisa. Depois, há quem duvide da dedicação de muitas empresas em fazerem vinhos de acordo com as características das suas vinhas e das suas regiões, cedendo em muitos casos à padronização imposta por Robert Parker (e muito apoiada na produção do Novo Mundo) que reclama vinhos extraídos, alcoólicos, doces e com marcas indeléveis da madeira. "Em Portugal ainda se faz muito vinho desse. O Alentejo já corrigiu essa tendência, mas o Douro nem tanto", observa Carlos Campolargo, um produtor bairradino.
Apesar de todos esses riscos, tudo indica que, lenta mas paulatinamente, os vinhos portugueses estão numa fase sólida de expansão internacional e nesse jogo todos parecem ter lugar: as empresas que produzem com os olhos postos no gosto internacional ou companhias como a Esporão que têm como preocupação "fazer vinhos em que as nossas diferenças regionais sejam acentuadas e assumidas", diz João Roquette, administrador da Esporão. A Esporão exportava 26% da sua produção em 2007 e no ano passado essa fasquia aumentou para os 62%; no seu todo, o sector do vinho português aumentou na última década as suas vendas internacionais em 85%, bastante acima do crescimento do mercado mundial no mesmo período (66%). Ainda assim, convém relativizar o sucesso. A Nova Zelândia não existia como produtor há 20 anos e hoje, por força dos seus Sauvignon Blanc frutados e volumosos, já exporta mais do que Portugal.
O problema "crónico" da marca
O problema dos produtores portugueses está na necessidade imperiosa de ter tempo para explorar no estrangeiro a falta de oportunidades que continuam a faltar no ainda apático mercado nacional, onde a maioria esmagadora dos vinhos se vende a menos de 1.50 euros. Portugal já coloca no exterior metade do que produz, mas mesmo assim as queixas sobre as dificuldades em ganhar quota lá fora repetem-se. "Não temos a notoriedade que merecemos", diz João Roquette, que acrescenta: "Temos um problema crónico com a marca Portugal". Então, sabendo-se que, como diz José Teles, "não somos capazes de competir pelo preço", como pode o vinho português procurar lá fora o músculo que perdeu no mercado interno?
É aqui que entram as novas tendências de consumo mundial. "Há uma verdadeira mudança de atitude entre aquelas pessoas que se interessam pelo vinho", reconhece Carlos Campolargo. Pessoas que querem "vinhos mais secos, menos extraídos". O produtor concorda que "isto está a mudar", mas muda apenas no "círculo mundial mais esclarecido e informado". As pessoas que lêem Matt Krammer ou Jancis Robinson. Um círculo crescente, que procura vinhos diferentes. "Temos de aproveitar esta tendência", diz José Telles, o gestor de uma empresa que na última década registou um crescimento de vendas sempre acima dos dois dígitos, com particular incidência no mercado externo. "As pessoas estão interessadas em vinhos diferentes e eu noto isso em Londres", diz João Pires, que trabalha na capital britânica há nove anos.
Com a batalha dos supermercados cada vez mais difícil pelo crescimento da produção no Novo Mundo e o consequente embaratecimento do vinho, Portugal deve "aproveitar o seu DNA muito próprio e apostar em vinhos de boutique", diz João Pires. Os Alvarinhos, os grandes Touriga da região do Dão ou do Douro ou os singelos Baga da Bairrada continuarão a valer pela diferença, pela curiosidade que suscitam. Para as empresas de gama média, o caminho passa por aí. No mundo globalizado das barricas e das castas internacionais, ser singular é um trunfo. Que Jancis Robinson, Matt Kramer, Dirceu Vianna Júnior, João Pires e muitos dos principais críticos e especialistas internacionais descobriram há muito tempo.