Dentro de fronteiras, essa afirmação passa com um sentimento de orgulho que aceita com serenidade uma observação que, pronunciada há menos de dez anos, seria considerada quase como uma heresia ou uma extravagância. A percepção pública e publicada sobre o Vinho da Madeira mudou muito, o conhecimento interno e externo sobre o vinho aumentou exponencialmente, os vinhos começaram a ser provados e, inevitavelmente, a notoriedade e reconhecimento aumentaram.
Tal condição não resguarda que o Vinho da Madeira continua e continuará a ser um vinho de nicho, um vinho para um mercado conhecedor e cosmopolita. Muito mais que no volume, uma realidade para a qual a Madeira não tem capacidade, vocação ou aptidão, a aposta tem de ser materializada nos vinhos das categorias especiais, exaltando-os como o motor que ajudará a potenciar a região. O Vinho da Madeira tem de ser encarado e promovido como o vinho de excelência que é, um vinho versátil e capaz de se adaptar a diversos momentos dentro e fora da refeição, um vinho excepcional destinado às grandes e às pequenas conquistas.
Quando falamos, porém, nas categorias especiais do Vinho da Madeira temos tendência para pensar de imediato nos Madeira Frasqueira, vinhos quase míticos que todos reconhecem ser a representação mais fiel do potencial do Vinho da Madeira. Para além da qualidade indiscutível dos Madeira Frasqueira, a simples presença de uma data no rótulo, a presença de um ano de colheita, simboliza uma atracção magnética que frequentemente impressiona pela idade. Poder provar um vinho proveniente de outro século, por vezes com mais de cem anos de repouso e cativeiro na garrafa como acontece regularmente com os vinhos da Madeira, é algo a que ninguém, por mais fleumático e reservado que seja, por mais experiência acumulada de que disponha, consegue resistir. Tal como será irresistível poder oferecer uma garrafa com uma data de colheita identificada que permita celebrar uma data de aniversário, seja ela o ano de nascimento, casamento ou outra data qualquer que seja igualmente merecedora de celebração.
Um sentimento compreensível e natural mas que representa uma adversidade terrível para as restantes categorias do Vinho da Madeira, os vinhos com indicação de idade. Apesar de tradicionalmente esquecidos e penalizados por esta tentação humana de procurar datas nos rótulos, os vinhos da Madeira com indicação de idade conseguem ser tão maravilhosos, fascinantes, comoventes e intensos como os melhores exemplos de Madeira Colheita e Frasqueira. Inevitavelmente, o grosso da produção centra-se no universo mais familiar dos vinhos de três e cinco anos de idade, os mais acessíveis e aqueles que melhor ajudam a pagar as contas na produção.
A categoria dez anos identifica a charneira dos Madeira com indicação de idade, definindo um patamar de qualidade incontestável. Mas são as categorias subsequentes com indicações de idade de quinze, vinte, trinta e quarenta anos que verdadeiramente nos elevam ao paraíso. Neste patamar de idade, juízos de valor como carácter, intensidade, potência desmedida, frescura, elegância ou qualidade passam a ser certezas absolutas. Estas quatro indicações de idade representam, no entanto, um valor ínfimo do volume e facturação dos produtores. Tanto que se hoje se assiste a um lento mas efectivo preenchimento destas categorias superiores, incluindo os lotes sempre mais complicados de trinta e quarenta anos de idade, a verdade é que estas se tinham mantido vazias durante décadas seguidas sem candidatos interessados em ocupar um lugar nestes tão difíceis escalões.
Por que razão se encontram tão poucos vinhos nestes dois patamares superiores de idade, trinta e quarenta anos? Acima de tudo por questões financeiras, pela dificuldade em assegurar uma razoabilidade económica nestas duas categorias. Não é fácil desviar vinhos necessariamente velhos e extraordinários para uma família que oferece menor retorno financeiro que os vinhos Frasqueira. Por muito arbitrário ou injusto que tal possa parecer, o mercado global sente maior apetência por vinhos de uma só colheita, vinhos que ostentem uma data no rótulo, que por vinhos com indicação genérica de idade, vinhos de lote que reúnem vinhos de diferentes idades numa combinação de que muitos nem compreenderão o significado.
Compor e estruturar um vinho com indicação de idade de trinta ou quarenta anos obriga ao desbarato de stock, obriga à diminuição do rol de vinhos muito velhos que representam uma das maiores mais-valias do Vinho da Madeira. Um património de vinhos velhos que é sempre curto e que levou muito tempo e muitas gerações a envelhecer, vinhos que não podem ser desbaratados em aventuras ou vinhos de menor valor comercial. Stocks inestimáveis que a maioria das casas sente relutância em desaproveitar na elaboração de um vinho com indicação de idade, sabendo que o mesmo vinho poderia vir a ser eventualmente comercializado como um Frasqueira… numa operação muito mais sedutora do ponto de vista comercial e financeiro.
A principal consequência desta triste realidade é que, apesar de os vinhos serem esplendorosos, a categoria indicação de idade vive sob a opressão do velho síndrome de “pescadinha de rabo na boca”, incapaz de atingir um estatuto mediático suficiente para atingir o preço adequado a vinhos tão velhos e excepcionais, agastando assim os produtores, que sentem pouco incentivo para desenvolver a categoria. Só mesmo o orgulho e a vontade em querer mostrar vinhos singulares que expõem a arte do lote poderão servir como motivação, criando vinhos especiais que se sobrepõem à mera racionalidade económica. Felizmente ainda há gente assim, capaz de nos brindar com vinhos de sonho que desafiam a pura e dura lógica da vida económica.