Por um fim-de-semana (27 a 29 de Junho), o Centro de Artes Culinárias, no Mercado de Santa Clara, em Lisboa, recebeu a iniciativa PPP - Pequenos Produtores em Prova, com degustação e venda de vinhos. Oportunidade para conhecer vinhos que normalmente não chegam às prateleiras dos supermercados e também um bom mote para visitarmos, em redor da capital, seis dos produtores do certame.
Dos Moinhos, o “vinho digital” da Maçussa
“Este é um vinho digital”, diz, brincando, Adolfo Henriques, apontando a impressão digital no rótulo do novo Dos Moinhos, neste momento a chegar às lojas. “É que o adegueiro não sabe escrever e por isso deixou a impressão digital.” Mais conhecido como produtor de um excelente queijo chèvre, na Maçussa, próximo do Cartaxo, Adolfo faz vinho há muito anos, mas não o engarrafava. Recorda o tempo em que na Maçussa, região produtora de vinho por excelência, existiam 226 adegas. Hoje há umas três em funcionamento.
A marca com a qual Adolfo comercializa os seus produtos é Granja dos Moinhos, mas não teve autorização para usar a palavra “granja” e por isso o seu vinho será apenas Dos Moinhos – para já, o tinto ainda repousa ainda nas barricas e apenas o branco está pronto para ser comercializado, com “uma provocação”: em garrafas de meio litro. “É um vinho ‘de lágrima’, o primeiro antes da maceração, porque queria um vinho muito directo, muito simples, com uma cor não muito acentuada e que não fosse buscar os sabores mais profundos.”
Quanto às castas, usa a sobretudo a Trincadeira para o tinto e Fernão Pires e Bual, “uma casta que se usa pouco hoje”, para o branco. Na vinha, dois homens trabalham “à antiga”, com o pulverizador às costas, aplicando o último tratamento contra o míldio e o oídio. “Isto do vinho é muito trabalhoso”, comenta Adolfo, que é também o organizador da feira no Mercado de Santa Clara. “Estamos a tentar revitalizar a aldeia”. Sorri. “Tem que começar pelos mais velhos.”
Memória, um vinho a lutar contra o estigma
Na pequena loja que vende os produtos da Quinta dos Capuchos, no interior de um viveiro de plantas, na região de Alcobaça, o vinho Memória ostenta orgulhosamente as medalhas conquistadas no Concurso Mundial de Bruxelas: ouro para o Reserva de 2009 e 2010 e prata para o de 2011. Um óptimo resultado para um vinho que teve a sua primeira vindima oficial em 2009.
Este é um projecto familiar, com José António Gomes Pereira a regressar ao negócio dos vinhos, como acontece com outros empresário persistentes, que lutam hoje pela recuperação da vinha na zona de Alcobaça, onde a produção de fruta, sobretudo pêras e maçãs, foi, nas últimas décadas, conquistando terreno à vinha. Com, no passado, as cooperativas de vinho a apostarem mais na quantidade do que na qualidade, a imagem do vinho desta região foi-se deteriorando e agora há muito trabalho a fazer para a reabilitar. “Ainda sofremos o estigma de sermos produtores de Alcobaça”, afirma o enólogo Rodrigo Martins, que está no terreno a mostrar-nos a vinha e a adega.
“Esta região está como que a renascer das cinzas”, acrescenta logo de seguida. No caso deste projecto, tudo começou em 2004, com sete hectares apenas de castas tintas. Hoje têm já 12 hectares, quatro dos quais com castas brancas – este ano vão fazer pela primeira vez o Memória branco e já sonham com um espumante. “Havia a ideia de que esta região não tinha potencial para o branco, o que não é verdade.” A proximidade do mar dá, tanto nos brancos como nos tintos, vinhos muito frescos e leves.
No que diz respeito à comercialização, sendo ainda um pequeno produtor, e porque “as grandes empresas de distribuição não querem mais marcas para o seu portefólio”, estão sobretudo na região de Alcobaça, no El Corte Inglés em Lisboa, e olham para fora do país: já exportam para Inglaterra e estão a negociar com Angola e o Brasil.
Humus, biológico e com o mínimo de intervenção
Rodrigo Filipe tem desde o início uma ideia muito clara do que quer dos seus vinhos: que sejam biológicos e que sejam muito bons. “A opção pelo biológico é uma questão de ideologia, claro, mas o objectivo é produzir melhor vinho”, explica, quando nos recebe na sua Quinta do Paço, em Alvorninha, no concelho das Caldas da Rainha, para mostrar o trabalho que tem feito com os seus vinhos, o Encosta da Quinta e o Humus.
Não fez o curso de enólogo, mas dedicou-se de corpo e alma ao vinho e percorreu workshops e seminários para aprender tudo sobre o assunto. Mas o que o ajudou realmente foi a possibilidade de experimentar na sua quinta, e nas vinhas, que começaram a ser plantadas na década de 1990 ainda pelo pai, e a partir de 2002 por ele. Aponta uma encosta sem vinhas, de onde arrancou uma casta que não se deu tão bem como ele esperava – um exemplo de como trabalha por tentativa e erro até conseguir o vinho que quer.
Aproximamo-nos de outra encosta para Rodrigo explicar que a divide em três partes e faz a vindima separadamente, porque, mesmo sendo da mesma casta, as uvas são diferentes conforme apanham mais ou menos sol ou estão na parte de cima ou na parte de baixo da encosta. Na adega, tenta intervir o menos possível. Dá-nos a provar outra experiência: vinho natural, sem adição de sulfitos. “Só se pode fazer isto nos brancos com muita acidez, os vinhos ficam muito oxidados, e ficam mais resistentes e estáveis.” Não vai ser fácil convencer os consumidores portugueses a gostar deste vinho, mas o facto é que noutros países, nomeadamente nos nórdicos, os vinhos naturais são cada vez mais procurados.
Mas Rodrigo não gosta de seguir pelos caminhos fáceis e previsíveis: “Em Portugal, mesmo o vinho biológico ainda tem uma má imagem, mas eu sou de opinião que qualquer vinho de qualidade devia ser biológico.” A medalha de ouro num concurso internacional ostentada pelo seu Humus é prova de que isso é possível. A sua quinta faz parte da rota do vinho da região e é muito visitada, sobretudo por estrangeiros. Já exporta para quatro países e em Portugal está em lojas (como a Miosótis, de produtos biológicos) e em alguns restaurantes.
António, um vinho que transporta um local
Encontramo-nos com Marta Soares no Pachá, no centro das Caldas da Rainha, por entre tábuas de queijos, croquetes de espinafres, empadas e favinhas. E, claro, o seu vinho, o António – o nome do marido, que morreu durante a vindima de 2009. Bebemos o vinho de 2012 e depois o de 2006, e enquanto ouvimos Marta contar a sua história vamos percebendo como aquele vinho é único – e inesquecível.
Marta, artista plástica de formação e professora na ESAD das Caldas, não tinha qualquer ligação com o vinho. Vinha “do betão” de Lisboa quando, à procura de um atelier temporário, conheceu o Casal Figueira e o António – e apaixonou-se “perdidamente por tudo”. A planeada ida para Nova Iorque nunca chegou a acontecer, porque aqui encontrou “raízes, a ligação à terra”. António era completamente diferente: fazia vinho (formou-se em enologia em França) e surf, percebia o que era “estar em consciência” num sítio. Ah!, e sonhava fazer grandes vinhos brancos.
Os portugueses, naquela altura, não queriam saber de vinhos brancos. Por isso, nada foi fácil neste percurso. Marta descobria o que era a relação com um lugar, mas os vinhos não se vendiam e acabaram por perder a propriedade. Não desistiram. Trabalharam segundo os princípios da biodinâmica, “coisa para bruxas em Portugal naquela altura”. Recuperaram uma casta autóctone que estava praticamente desaparecida: a Vital. Preferiam ter menos produção e uvas mais concentradas.
Depois da morte de António, foi Marta quem continuou, sem fazer cedências. Trabalha com os produtores da serra de Montejunto, usando as velhas parcelas de Vital resgatadas do esquecimento. “Recuperámos uma cultura local, trabalhamos de forma a não adulterar o carácter das vinhas”. Hoje, António é um vinho que transporta um local, é “um postal vivo de um sítio”.
Cortém, onde o terroir é a música
Nas primeiras férias que passaram em Portugal, na Foz do Arelho, o engenheiro de som inglês Christopher Price e a sua mulher alemã, montadora de som, Helga Wagner, decidiram comprar aqui uma casa. Encontraram o local ideal em Cortém, perto das Caldas da Rainha, e foi aí que, a partir de 2004, se lançaram na aventura de fazer vinhos biológicos (certificados desde 2010) e já premiados em concursos internacionais. “Não temos enólogo mas já ganhámos medalhas de ouro”, dizem, orgulhosos.
É no meio da eira, numa zona elevada, que temos a melhor vista, da casa e dos cinco hectares de videiras que se estendem à nossa frente. Todos os vinhos de Chris e Helga chamam-se Cortém – há o Jaen, Tannat, Pinot Noir, Sauvignon Blanc/Viognier, Touriga Nacional/Touriga Franca/Syrah/Cabernet Sauvignon/Merlot e o Selecção Especial.
Mas, mais do que das castas, Chris gosta de falar do terroir. “O enólogo pode dizer que faz o vinho, mas é no campo que o vinho se faz. Eu só guardo o processo.” E esta região tem características especiais, garante. “Podem dizer que é mais um Cabernet Sauvignon ou mais um Jaen, mas é injusto, porque fazê-lo aqui não é a mesma coisa que fazê-lo noutra região. As castas são a escala, mas o terroir é a música”. E, acrescenta, a região de Lisboa “tem muitas possibilidades ainda não realizadas”.
O folheto que fizeram para apresentar o projecto inclui fotografias de petiscos sobre a longa mesa de madeira da sala de provas. É aqui que Chris e Helga recebem os muitos visitantes, quase todos estrangeiros, que passam por Cortém à procura dos seus vinhos. Fazem a prova, por vezes (é preciso marcar antes) servem petiscos e vendem aí os seus vinhos. O resto é exportado para a Alemanha, a Holanda, o Reino Unido. Mas gostavam de ganhar mais visibilidade em Portugal – afinal, estes são os vinhos de Cortém, aldeia portuguesa.
Vale Zias, uma história com sabor a pimentos
Um vinho com acentuado sabor a pimentos verdes pode ser uma aposta arriscada. Vários amigos avisaram Manuel Arsénio disso. Mas o enólogo do Vale Zias não ligou e hoje acredita que foi uma aposta ganha. Estamos a falar do Vale Zias Grande Escolha, feito com Cabernet Sauvignon, “um vinho muito tinto, com laivos violetas, e marcado pelos pimentos verdes”.
O sabor podia ter sido disfarçado, claro, que hoje em dia sabe-se como se fazem essas coisas, mas Manuel Arsénio queria mesmo potenciar as características desta casta e deste vinho (que engarrafou em pequena quantidade), e está contente com o resultado: um vinho “muito gastronómico, que acompanha muito bem tanto sardinhas assadas como pratos condimentados, guisados, estufados, etc.”. O outro vinho da casa é o Vales Zias Syrah, que já tem uma produção maior, de cerca de 12 mil garrafas.
Como está a acontecer com outros jovens da região, Manuel Arsénio também pegou num projecto familiar – a família fazia vinhos há muitas décadas, mas vendia-os a granel – e modernizou-o. “Decidi começar a engarrafar.” Sabia que tinha que vencer o tal preconceito que existe em relação aos vinhos da região de Lisboa, mas isso não o assustou. “É verdade que os vinhos da Estremadura e da Região de Lisboa têm alguma dificuldade em promover-se, mas tem sido feito um trabalho de proximidade com os responsáveis pelos restaurantes e com os consumidores e a aposta tem sido ganha.”
Para aumentar essa proximidade, decidiu agora abrir o Vale Zias ao enoturismo. “Estamos na fase de arranque”, sublinha. A construção de uma sala de provas permite receber visitantes e estão a ser lançados programas que podem incluir “a partilha de vivências e do trabalho agrícola”, desde a pisa da uva à apanha da pêra rocha (de que também são produtores), tudo complementado, para quem desejar, com um passeio pela serra de Montejunto.
PPP Pequenos Produtores em Prova
Dias 27, 28 e 29 de Junho, entre as 16h e as 20h
Centro de Artes Culinárias – Mercado de Santa Clara, Lisboa
Entrada 5 euros (com direito a um copo de vidro para provas e a uma “tapa”)