Fugas - Vinhos

Michael Hanschke/Reuters

Opinião: Os alemães conseguem ser confusos

Por Rui Falcão

Quando se pensa na Alemanha, a maioria imagina um país organizado e trabalhador, metódico e padronizado, regrado, ordeiro e profundamente racional nos gestos e nas práticas.

Predicados que intuitivamente sabemos fazerem parte do colectivo alemão e que facilmente associamos ao país, aos seus produtos, à sua cultura e às suas rotinas. Apesar de muitos de nós, especialmente os europeus do sul, sentirmos hoje alguma relutância emocional em reconhecer estes méritos alemães, não podemos deixar de perfilhar estas premissas que sabemos serem autênticas e reveladoras de uma forma diferente de modelo social.

O modelo alemão é racional, regrado e normalmente focado na funcionalidade e precisão, em detrimento da imagem ou das aparências. Uma realidade que poderá muito provavelmente ser imputada à maioria dos produtos alemães mais afamados, electrodomésticos, carros ou electrónica mas que está longe, muito longe, de poder ser aplicada aos vinhos. Na realidade, estes vivem sob os efeitos de uma legislação bizarra e pouco compreensível, irracionalidade que pode ser estendida à rotulagem confusa, quase ilegível, pouco prática e que poucos compreendem nas suas minudências ou na generalidade. A agravar a já de si confusa legislação, a obstinação na utilização de caracteres góticos não ajuda à legibilidade dos rótulos alemães.

Por comparação com o palavreado alemão aplicado ao vinho, até regiões tão difíceis e reconhecidamente confusas como a Borgonha começam a parecer simples e racionais. Qual a reacção possível de qualquer não alemão quando lê algo como Brauneberger Juffer Sonnenuhr Beerenauslese ou Graacher Himmelreich Trockenbeerenauslese, sobretudo quando se apercebe que estes nomes podem ser lidos em dezenas de marcas e rótulos de produtores diferentes? Qual a diferença entre Erdener Prälat e Erdener Treppchen e porque é que estes nomes podem ser lidos em dezenas de rótulos de produtores diferentes ou, pior, em dezenas de rótulos do mesmo produtor? Qual a diferença entre nomes tão semelhantes como Zeltinger Sonnenuhr, Wehlener Sonnenuhr ou Brauneberger Juffer Sonnenuhr, nomes em tudo semelhantes mas que representam realidades e vinhos tão diferentes? Qual a diferença entre um Auslese e um Spätlese?

Muitos produtores alemães, embora seguramente não a maioria, admitem o problema e reconhecem que a nomenclatura germânica joga contra o país e contra qualquer admiração ou tentativa de empatia internacional para com os vinhos alemães. O que é um drama, sobretudo num país que ainda hoje continua a ser maltratado e penalizado pela vaga de vinhos doces, enjoativos e insípidos que apresentou durante a revolução Liebfraumilch dos anos sessenta e setenta do século passado. Vinhos personificados pelo execrável Blue Nun, que durante anos a fio foi o vinho mais vendido em todo o mundo e que espantou para sempre gerações e gerações de consumidores para longe dos vinhos alemães.

Uma marca genérica que, seguida por outras do mesmo formato e estilo, continua a marcar a actualidade do vinho alemão, preservando no imaginário colectivo a imagem que todos os vinhos alemães são docinhos, redondos e sem alma. Sim, é verdade que muitos dos vinhos alemães retêm pequenas ou grandes doses de açúcar, mesmo que as tendências actuais do país apontem para vinhos cada vez mais secos, alguns deles mesmo excessivamente secos e duros. Como se a doçura natural e desafectada fosse um defeito, um problema ou um erro quando falamos na casta Riesling, uma das castas brancas mais refinadas e elegantes do mundo mas que necessita de um pouco de doçura residual para contrabalançar e suavizar a sua aspereza, dureza e secura naturais.

Como ler e descodificar, então, os rótulos de vinhos alemães? Primeiro é preciso saber que a legislação alemã, por o país estar tão a norte e tão próximo do limite do cultivo da vinha, assume o grau de doçura potencial das uvas, o grau de açúcar no momento em que são vindimadas, como a base da hierarquização qualitativa dos vinhos. Os vinhos que assumem ser definitivamente doces, vinhos para serem bebidos sozinhos ou no final da refeição com a sobremesa, assumem os nomes Auslese, Beerenauslese (BA), Eiswein ou Trockenbeerenauslese (TBA) numa graduação crescente de doçura. As categorias Kabinett e Spätlese representam, novamente numa graduação crescente de doçura, os dois estilos de vinhos mais secos e onde a doçura será menos aparente. Convém no entanto notar que esta classificação retrata não a doçura final do vinho mas unicamente o grau potencial no momento da vindima.

Ora, isso significa que um vinho da família Kabinett poderá ser extra seco, seco, meio seco ou ligeiramente doce… e que muitas vezes é quase impossível descortinar qual o grau de doçura até ao momento em que se prova o vinho. Claro que palavras como trocken (seco), halbtrocken (meio seco), feinherb (meio seco mas ligeiramente mais doce que halbtrocken), lieblich (meio doce) ou süß (doce) podem ajudar… mas muitos produtores simplesmente não as usam ou preferem aproveitar métodos caseiros, como a indicação de diferentes números de estrelas, diferentes tonalidades para o mesmo rótulo, cápsulas maiores nos gargalos para cada tipo de doçura ou outra forma qualquer de aumentar a confusão… no país que é reconhecido como um modelo de racionalidade e padronização.

Muito melhor que confiar na legislação é confiar nos produtores, nos nomes que dão garantias de qualidade independentemente de o vinho ser mais seco, mais doce, mais dócil ou mais encorpado. Entre os grandes nomes a reter e que vale a pena considerar na região de Mosel encontram-se Fritz Haag, Egon Müller, JJ Prüm, Heymann Lõwenstein, Selbach Oster, Wegeller, Karthäuserhof, Maximin Grünhaus ou Kerpen. Em Rheingau, Pfalz, Nahe, Franken ou Rheinessen procure por Robert Weil, Müller Catoir, Künstler, Schlossgut Diel, Pfeffingen, Wegeler, Dõnnhoff, Breuer, Koehler Ruprecht, Reichsrat Von Buhl, Wittmann ou Horst Sauer.

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