Fugas - Vinhos

  • Nelson Garrido
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Um dia de vindimas no Douro

Por Pedro Garcias

O Douro já anda em vindimas há algumas semanas. É o momento alto da principal actividade económica da região, sempre associado a festa. Mas por trás de cada cacho colhido há muito suor e miséria.

Muxagata, aldeia situada na última fronteira do Douro Vinhateiro, campos ressequidos onde só verdejam oliveiras e vinhas, o deserto habitado. Estão mais de 40 graus, não há sombras. “O calor é psicológico”, tenta convencer-se Danilo, antigo gasolineiro convertido em trabalhador agrícola.

Entre homens e mulheres, anda um grupo de 12 pessoas a vindimar. Um é menor, filho do empreiteiro agrícola. “Tem que saber o que custa a vida”, justifica. Na hora de apanhar as uvas, desafia-se tudo: o tempo, o cansaço, a lei.

Quando era menor, também ia à vindima. Um dia fui vindimar para o Armindo “Rico”. Na rua onde morava, em Alijó, havia outro Armindo, o “Pobre”. Na verdade, não era pobre, era é menos rico, e melhor pessoa, do que o outro. Recordo bem essa jornada: mais de oito horas a cortar uvas e a despejar baldes por meia dúzia de escudos e uma sopa e meia sardinha assada com pão.

Toda a gente trabalhava, desde que tivesse corpo. O dinheiro escasseava e a vindima era uma festa: cantava-se, namoriscava-se e falava-se mal de toda a gente. O trabalho da vinha sempre foi povoado de “pegas de Sintra”, como diria Almeida Garret.

A nostalgia, o romantismo e a miséria sempre suavizaram a dureza da vindima. A moça trigueira e risonha que surgia nas fotos como emblema das vindimas no Estado Novo fazia parte da propaganda do regime. Nesse tempo, era 10 a 12 horas a cortar uvas, os homens mais fortes a acarretar cestos com mais de cinquenta quilos, alguns a subir socalcos, e à noite mais quatro horas a pisar, embalados a versos e a copos de aguardente. Hoje já há tractores e inspecção do trabalho. Mas cortar uvas, sempre em genuflexão com as videiras, continua a ser um trabalho violento. Violento e, no entanto, mágico. É o fim do ciclo, a recolha do fruto semeado, a ideia de folia – cada vez mais, quase só uma ideia. Já pouco se canta e brinca.

Silêncio. Do telemóvel de um trabalhador saem sons de influência roma (cigana) que sugerem latitudes longínquas. É um dos muitos romenos que nos últimos anos têm vindo a suprir a falta de mão-de-obra nos vinhedos durienses. As rogas do Douro já não chegam das terras altas de Trás-os-Montes e da Beira. Vêm da Roménia, da Bulgária, da Moldávia, de Marrocos. Para os próximos dias, o empreiteiro agrícola anuncia a chegada de um “vagão” de búlgaros. Gente pobre e desprotegida que emula nas vinhas do Douro a epopeia dos primeiros emigrantes portugueses na França e na Suíça.

Os romenos ambientam-se bem. Alguns já comunicam em português, mas ninguém conhece a “Liberdade” e as outras cantigas de vindima. José Miguel também não. Fotógrafo profissional, com passagem pelo PÚBLICO, Visão e O Primeiro de Janeiro, antecipou a crise dos media formando-se em Agronomia. No ano passado, trocou o Porto por Vila Nova de Foz Côa. Hoje é o “senhor engenheiro”. Anda feliz e derreado. “Água, água”, clama ofegante com os rebordos da boca brancos.

As três da tarde, quando acaba a jornada, aproximam-se e o sol escalda mais do que nunca. O dia começou às 6h30 da manhã, com uma pausa de 30 minutos para comer a merenda trazida de casa. São os trabalhadores que definem o horário e as pausas. Começar cedo para chegar cedo a casa e fugir ao calor do meio da tarde, que pesa mais.

Os mais novos parecem os mais cansados. Sempre foi assim. Um rapazola vindima sentado. Entre dois cachos, pára para limpar o pó das mãos com a tesoura. “Não tens vergonha?”, indigna-se António, o encarregado na vinha.

Vindimar é um trabalho duro e mal pago. Ainda assim, não tão mal pago como no Chile, por exemplo, onde os trabalhadores ganham ao quilo. Se vindimassem o que se vindima em média no Douro, não ganhavam mais de dez euros por dia. Vindimando muito ou pouco, no Douro as mulheres ganham 35 euros e os homens 40, na maioria dos casos. Para o mesmo trabalho, salário diferente. É a lei do campo, apesar de quase sempre as mulheres trabalharem mais e melhor. O empreiteiro do “vagão” de búlgaros quis acabar com a injustiça: 38 euros para homens e mulheres. Mas a convergência é apenas formal, para acalmar o proprietário das vinhas. Na hora de fazer contas, alguns homens vão receber mais. Não é fácil mudar o mundo.

Os búlgaros chegam mesmo dois dias depois, arregimentados e geridos por uma compatriota que tem trabalhado com empreiteiros agrícolas de Foz Côa. Vieram de carrinha, milhares de quilómetros em direcção ao desconhecido. O grupo é divididos por várias vinhas. Três juntam-se a nós. Um mudo de verdade e dois que não sabem uma única palavra de português. Chegam de chinelos e sem tesoura para vindimar. “São bons”, garante o encarregado ao fim de umas horas de trabalho.

Ao fim do dia, um dos romenos conta que os búlgaros não tinham almoçado. Indignação geral. Na vindima, são todos iguais. O empreiteiro passa as culpas para a colega búlgara, a quem fizera um adiantamento para as primeiras necessidades. No dia seguinte, dois dos búlgaros já levam alguma comida, mas um deles continua sem comer. “Teve um cancro e só bebe café”, explica alguém do grupo. José Miguel vai comprar iogurtes e leite achocolatado, comida líquida que o homem bebe de um gole, deixando escapar uma lágrima. Estava cheio de fome. “Os jornais e as televisões deviam era fazer reportagens sobre isto”. É o fotojornalista a falar.

Está na hora. Há trabalhadores com o alarme ligado no telemóvel para as 15h00. O empreiteiro não paga horas extras. Toda a gente se despede com alívio. José Miguel, o encarregado e o condutor do camião ultimam a carga. Dentro de duas horas, as uvas começam a ser desengaçadas na adega da Casa Agrícola Águia de Moura, em Murça. Outra odisseia. No dia seguinte, volta a haver vindima.

No Douro, será assim até final de Outubro. Quando o vinho chegar ao copo do consumidor, vai mostrar mais ou menos fruta, mais ou menos taninos, mais ou menos acidez. Os mais esclarecidos são capazes de lhe detectarem complexidade, carácter, alma. Mas ninguém vislumbrará no copo a alegria, as dificuldades, o suor e a miséria que estão por trás de cada gota.

Este ano, a colheita no Douro Superior, onde chega a chover menos do que no deserto, promete ser extraordinária. Menos uvas mas muito boas. Dentro de algumas semanas, é preciso começar tudo de novo.

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