Fugas - Vinhos

Cervejaria

Cervejaria Nelson Garrido

Vinho e cerveja, duas realidades distintas

Por Rui Falcão

Portugal não se tornou conhecido por ser um país de empreendedores, por ser um país amante do risco ou por possuir delírios de aventura empresarial.

Se olharmos para a globalidade do nosso tecido empresarial, dificilmente encontramos empresas que se situem entre as grandes do mundo, entre as maiores e as mais conhecidas de cada sector.

O pequeno tamanho do país, as dificuldades de financiamento e a reduzida dimensão do mercado interno são os argumentos mais populares para explicar a permanente falta de escala e dimensão da maioria das empresas portuguesas.

Um argumento que é aparentemente razoável, mas que é infelizmente facilmente desmentido pelos factos da vida, pela capacidade que países de dimensões inferiores ou comparáveis demonstraram para criar grandes empresas que se transformaram em líderes de mercado. Basta olhar para um país como a Dinamarca, país inferior a Portugal tanto em dimensão geográfica como em população mas que foi capaz de criar empresas tão extraordinárias como a cervejeira Carlsberg, os brinquedos Lego ou a gigantesca Maersk, empresa líder internacional em energia e transporte mundial de carga por contentores.

O exemplo da cervejeira Carlsberg é especialmente provocante num momento em que o mundo da cerveja passa por convulsões e aumento de popularidade, uma revolução e subversão que se sente tanto dentro de fronteiras como em todo o mundo ocidental. De um modelo em que um conjunto cada vez menor de grandes empresas cervejeiras dominava o mercado cervejeiro, o mundo da cerveja começou a abrir espaço para a emersão de um grupo cada vez mais alargado de pequenas, muito pequenas ou mesmo minúsculas empresas cervejeiras que começam a abrir e ganhar um interessante e cada vez mais lucrativo nicho de mercado.

A cerveja artesanal produzida por empresas de “vão de escada” começou por ganhar espaço e notoriedade no mercado norte-americano, país de onde o conceito se expandiu para a Europa e restantes continentes. Algumas destas empresas cresceram, deixaram de ser pequenas empresas onde se trabalhava quase por carolice, transformando-se em actores globais que por vezes começam mesmo a arreliar e a concorrer com alguns dos monstros sagrados da indústria cervejeira. O fenómeno da cerveja artesanal atingiu proporções tão avantajadas e uma escala tão dilatada que são poucos os países que conseguiram manter-se alheados do fenómeno.

Mesmo em Portugal, país onde quase tudo chega tarde ou de forma diluída, é possível encontrar hoje mais de uma vintena de pequenos ou muito pequenos produtores de cerveja espalhados por todo o país. A maioria começou por fazer cerveja por prazer e sem qualquer expectativa de transformar essa paixão em negócio. Muitos começaram por fazer cerveja em casa, sem acesso ou necessidade de tecnologia avançada, por vezes recorrendo a simples kits já formatados, socorrendo-se de processos artesanais de fácil aprendizagem. Depois de aprender com estes processos simplificados, muitos quiseram dar o passo seguinte, enfrentando a produção de cerveja de uma forma mais sustentada e menos facilitada.

Alguns deles acabaram por evoluir para um produto mais sério e menos caseiro assegurando uma produção mais significativa que, apesar de ainda artesanal, já obriga à compra e presença de equipamento sofisticado, à compra ou aluguer de espaços destinados à produção e a uma presença e disponibilidade a tempo inteiro para a nova actividade, seja ela na vertente comercial ou na produção propriamente dita. A comercialização de pequenas produções e a criação de marcas comerciais artesanais transformaram-se em realidades novas para o mundo da cerveja.

Curiosamente, e apesar de estarmos num país intimamente ligado à produção de vinho, ninguém se lembrou de produzir ou comercializar kits para a produção de vinho caseiro, formas fáceis e agradáveis de despertar o interesse pelo vinho e pela sua elaboração. Se no mundo da cerveja passou a ser relativamente simples passar de um consumo mais empenhado para a pequena produção, mesmo que em modo caseiro, no mundo do vinho existe uma compartimentação estanque e uma falta de incentivos e meios para a sua produção caseira que não autoriza os cidadãos urbanos a passar de simples consumidor à prática de elaborar o seu próprio vinho.

O que por sua vez impede, ou pelo menos desaconselha, a que os que amantes do vinho possam materializar a sua paixão em pequenos projectos vinícolas… tal como os amantes de cerveja têm concretizado ao longo dos últimos três ou quatro anos.

Claro que a lei geral não ajuda, obrigando a que toda e qualquer adega apta à produção de vinho, independentemente do seu tamanho e produção, seja submetida exactamente às mesmas regras e etapas no processo de licenciamento. Sujeitam-se assim os novos produtores, mesmo que francamente liliputianos e com uma ambição comercial minimalista, a regras tão apertadas e agressivas como aquelas reservadas às adegas que elaboram centenas de milhar ou milhões de litros.

Estas certificações incluem etapas como testes de ruído, mesmo que as adegas estejam fisicamente isoladas no meio do nada, certificação de risco contra incêndios e planos de bombeiros, como a indústria mais perigosa do mundo, ou a garantia de construção de estações de tratamento de efluentes.

Todo este processo de licenciamento comporta todos os custos inerentes à contratação de empresas de consultoria obrigatórias para cada um destes trâmites legais, independentemente de a produção se resumir a uma mera centena de garrafas em produção artesanal.

Seria possível inverter esta desagradável tendência? Sim, muito provavelmente simplificando o licenciamento das adegas destinadas aos pequenos volumes, diferenciando aquilo que é notoriamente diferente, acarinhando e estimulando novos produtores, novos agentes económicos que apesar de nascerem pequenos poderão um dia tornar-se grandes. Talvez então a produção de vinho possa assistir a um fenómeno tão feliz como aquele que o mundo da cerveja atravessa actualmente.

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