Fugas - Vinhos

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“As vinhas de Toro são uma coisa única”

Por Pedro Garcias

O enólogo responsável pelos vinhos do grupo de luxo Louis Vuitton-Möet Hennessy em Espanha é português. Chama-se Manuel Louzada, tem 44 anos e desde Maio de 2009 que dirige as Bodegas Numanthia, em Toro, de onde saem alguns dos melhores vinhos espanhóis.

Nasceu na Bairrada, formou-se em Espanha, começou a carreira no Douro, a fazer vinho do Porto na Rozés, passou dez anos na Argentina a elaborar espumantes, vinhos brancos e tintos e está há cinco anos à frente das Bodegas Numanthia Termes, em Toro, o pequeno diamante espanhol da Louis Vuitton-Möet Hennessy, o maior grupo de luxo do mundo.

O português Manuel Louzada foi até há pouco tempo o responsável pelo controlo qualitativo de todos os vinhos do mundo da LVMH, o que talvez explique a sua notável capacidade de comunicação e a fluência com que responde em espanhol, francês ou inglês. Desconhecido em Portugal, Manuel Louzada chegou a ser sondado para chefe de cave da casa de Champanhe Ruinart, mas acabou por se render às vinhas velhas de Toro, uma das mais pequenas e originais regiões vitícolas de Espanha (situada na bacia do Douro, entre Zamora e Valladolid), famosa pelos seus tintos concentrados e potentes.

Nesta entrevista, o neto do fundador das Caves Messias explica as razões do seu sucesso fora de portas e, apesar de não descartar um novo desafio noutro país, confessa a ambição de regressar um dia a Portugal, onde diz ser possível fazer vinhos fantásticos.

Como é fazer vinhos para um dos principais grupos de produtos de luxo do mundo, o Louis Vuitton- Möet Hennessy (LVMH)?

A exigência é extremamente alta, mas tenho todo o apoio da administração, embora não se pense que há dinheiro para tudo. Qualquer investimento tem que ser muito bem justificado. Desde o início que me disseram: ‘Manuel, fazes o que quiseres. Agora, lembra-te que o Termanthia 2004 teve 100 pontos do Robert Parker. Por isso, não te esqueças de continuar a fazer vinhos tão bons’.

No princípio falei muito com a enóloga que me antecedeu, fiz muitas provas verticais dos vinhos que havia aqui, para entender o que ela tinha feito, as decisões que tinha tomado, para saber que decisões eu próprio teria que tomar. No meu caso particular, sempre tive uma filosofia bem clara: concentrar-me no terroir. Na Argentina fazia vinhos argentinos, quando vim para aqui quis fazer vinhos de Toro, mas com uma interpretação um bocadinho mais internacional, mais em direcção à elegância. Vinhos potentes mas com mais elegância e complexidade. Foi esse o desafio que aceitei no grupo.

Consigo, os vinhos mudaram muito desde esse Termanthia 2004?

Uma pessoa vai aprendendo sempre. Aprende com as vindimas, com as condições da região, com a uva, que tem uma expressão diferente em cada ano, e acaba por levar o vinho na direcção que tem na cabeça. Até 2003, os vinhos aqui na adega eram duríssimos. Entender o 2004 e começar a estabelecer o novo caminho, na tal direcção da elegância, foi o meu desafio. Isso passou por perceber melhor as diferentes expressões da Tinta de Toro nas diferentes sub-regiões, fazer vinificações específicas, envelhecer os vinhos nas barricas também de forma específica para ajudar a expressar a diferença das vinhas e, no final, fazer o lote. No caso do Termanthia, o ponto mais importante foi ir um pouco mais longe na precisão. Nestes grandes vinhos estamos a falar de detalhes.

Como chegou a Toro?

Depois de 10 anos em Espanha, onde me formei em Agronomia com especialização em Enologia, regressei a Portugal para ir trabalhar na empresa da minha família, as Caves Messias. Ainda fiz uma vindima, mas em 1996 surgiu a oportunidade de ir trabalhar para a Rozés, no Douro, e achei que era importante explorar novas mentalidades, novas formas de trabalho, novas tecnologias, sempre com a ideia de voltar um dia a casa. Na altura, a Rozés pertencia ao grupo da Möet & Chandon e em 1999 fui convidado para ir fazer os espumantes da Chandon na Argentina e fiquei lá uma década [durante este período, assumiu a direcção da enologia e da viticultura da empresa Cheval des Andes e Terraza de los Andes, gerindo três marcas e mais de 900 hectares de vinhas].

Em 2008, fui pela primeira vez às caves Numanthia e depois de conhecer as vinhas da região e de ter participado do assemblage do Termanthia, Numanthia e Termes 2006 percebi que queria fazer aqueles vinhos extraordinários. E aqui estou. [Manuel Louzada ainda chegou a ser convidado para chefe de cave da famosa casa de Champanhe Ruinart, mas a opção Toro acabou por prevalecer].  

O que veio descobrir de novo em Toro?

Sou da Bairrada, cresci entre a bairrada e o Douro, depois fui para a Argentina, o deserto onde se fazem vinhos mais na óptica do negócio, com áreas de vinha enormes e uma grande homogeneização, e em Toro vim encontrar vinhas muito velhas, alguns com perto de 200 anos. É uma coisa única.

As vinhas de Puertas Novas que comprámos o ano passado [duas parcelas pequenas de Tinta de Toro e algum Moscatel, com vinhas em vaso e por aramar, de tronco grosso e braços a penderem para o chão] têm cerca de 150 anos. São vinhas notáveis mas difíceis. O movimento da seiva é tão irregular nestas vinhas muito antigas que num braço podemos ter uma uva madura e no outro uma uva menos madura…

Mas esse é o desafio que se coloca a qualquer enólogo perante uma vinha velha... Não é mais aliciante recorrer a esse jogo de compensação entre as diferentes castas ou, neste caso, entre os diferentes braços da mesma videira do que querer tudo maduro ao mesmo tempo?

Sim, mas nós temos que ter um mínimo de maturação na videira. O segredo nas vinhas de Toro é podar a videira de modo a distribuir a carga de forma homogénea pelos diferentes braços, para que as folhas façam a fotossíntese ao mesmo tempo e protejam as uvas do sol. De qualquer forma, as vinhas velhas já se auto-regulam. Só para ter uma ideia das condições da viticultura em Toro, entre o dia 1 de Novembro de 2011 e o dia 30 de Outubro de 2012 tivemos uma precipitação de 192,5 milímetros, metade do que as cepas precisam.

Como é que elas sobrevivem e perduram durante tanto tempo?

Uma das razões é as vinhas serem em pé franco [enraizamento directo da videira produtora, sem recurso a porta-enxerto]. O solo é de areia e a areia protegeu as videiras da filoxera. Por outro lado, a areia funciona como uma esponja. O que chove é imediatamente absorvido pelo solo. A água penetra na areia e vai directamente até à capa de argila que existe por baixo e onde a raiz da videira vai buscar a humidade. Toda a pouca água que cai é absorvida e aproveitada pela planta.

As raízes estão a que profundidade?

Depende de onde está a capa de argila. Se esta está a um metro e meio, as raízes estão a um metro e meio; se a argila está a cinco metros, as raízes estão a cinco metros.

É verdade que em existe a ideia de tentar certificar o solo de Toro, para poderem plantar em pé franco?

É verdade. Proibiu-se a plantação em pé franco por pressão dos franceses e dos italianos, mas, se nós temos aqui um solo que nunca teve filoxera e que não permite o desenvolvimento da doença [provocada por um insecto que ataca a raiz da videira e que na segunda metade do século XIX dizimou grande parte dos vinhedos europeus], não faz sentido estar a plantar com porta-enxerto.

O pé franco tem os seus desafios, não é fácil, mas a vida útil de uma vinha com pé franco é muito mais longa do que a de uma vinha com porta-enxerto. Nos países com visão de negócio, onde só se utiliza o porta-enxerto, aos 30, 35 anos já se está a arrancar a vinha para voltar a plantar. Em Toro, para o nosso vinho de entrada, o Termes, usamos uvas de vinhas com essa idade.

No ano passado disse ao Daniel [o viticólogo das Caves Numanthia] que tínhamos de plantar uma vinha e ele respondeu-me que podíamos esperar mais um ano, até porque essa vinha só iria dar uvas para o vinho Numanthia daqui a 50 anos!. ‘Não’, respondi-lhe, ‘se plantarmos para o ano que vem só daqui a 51 anos!’. Em Toro temos uma visão temporal muito diferente, é como plantar sobreiros em Portugal. Estamos a plantar para a geração dos nossos netos. Mas esse é um desafio fantástico.

Os vinhos de Toro sempre foram tintos e rústicos?

Sim. Os vinhos aqui eram para beber com tapas à base de chouriço e queijo e o vinho tinha que ter carácter para aguentar a força do chouriço e do queijo. O vinho de Toro [muito concentrado, estruturado e alcoólico] só começou a ganhar projecção internacional quando se deu uma inversão em direcção à elegância.

Para um enólogo que tem viajando tanto pelo mundo, qual é o próximo desafio?

Eu vou fazer 45 anos e não tenho problema nenhum que o meu próximo desafio seja na Nova Zelândia ou na China, desde que seja um desafio divertido e me permita continuar a aprender.

Já há algum dia sentiu o peso de ser português, apesar de ter um apelido espanhol (Louzada)?

Eu sou português, da Bairrada. O momento mais difícil da minha vida foi quando tinha 13 anos e a minha mãe me disse: ‘Manuel, vamos viver para Espanha’. Caiu-me o mundo inteiro em cima. Aos 13 anos, tens os teus amigos, as tuas rotinas, e ter que deixar o país foi como cortar todas as raízes que tinha. Mas chegou o momento em que comecei a perceber que sair do país, em vez de te limitar, te abre novos horizontes e oportunidades, te permite ganhar novas amizades.

Eu sinto ter essa vontade tão portuguesa de viajar pelo mundo e de explorar culturas diferentes. Tive muitíssima sorte de ser até este ano o responsável pelo seguimento qualitativo dos vinhos do grupo em todo o mundo [Além de Espanha, a LVMH faz vinhos na Argentina, Austrália, Estados Unidos e França, onde detém as marcas de champanhe Möet &Chandon, Veuve Clicquot, Ruinart, Krug e Dom Perignon].

Já não é responsável por esse seguimento?

Agora só controlo os vinhos das Caves Numanthia, porque é necessário viajar muito por causa da comunicação. Como é uma adega pequena, são vinhos que têm de se apresentar quase com a garrafa na mão. É preciso andar muito por fora.

Acompanha os vinhos portugueses?

Não muito. Mas quando vou a Portugal só bebo vinhos portugueses.

O que acha?

Acho que os vinhos têm tido uma evolução muito grande. Com uma visão muito mais internacional, penso que ainda podemos avançar um bocadinho mais. É importante entender o segmento de preço onde queremos colocar os nossos vinhos e a partir daí ter uma visão profissional para abastecer esses segmentos de preços. Temos regiões com condições fantásticas, só precisamos de ter uma visão mais profissional do negócio.

Como é que o mundo vê os vinhos portugueses?

Salvo algumas excepções, são vistos como vinhos acessíveis, com uma relação qualidade/preço razoável.

O caminho não terá que passar pela alta qualidade, pelas pequenas produções, por vinhos diferenciados?

Eu acho que sim. Não temos que ter receio de ser diferenciados. Nos segmentos dos 8, 9 dólares, as modas passam depressa. A moda já foi o Chile, depois a Austrália, a Argentina, amanhã vai ser outro país. Os vinhos que estão no segmento mais alto nunca passam de moda.  

De que gosta?

De vinho. De todo o mundo. Tive a sorte de ter sido exposto a vinhos de todo o mundo. O Sémillon da Austrália com 9% de álcool dos anos 70 é uma maravilha. Sou um fanático de Champanhe, gosto muito do Sauvignon Blanc de Pouilly-Fumé, de um branco aqui de Espanha, o Godelho [o Gouveio do Douro]. Gosto de tintos italianos, franceses, espanhóis..

Não gosta de vinhos portugueses?

Claro que sim. Adoro Porto Vintage. É um vinho que me emociona. Sempre gostei de vinho do Porto e uma das coisas que começamos a fazer na Rozés foi não apresentar só o vinho do Porto como aperitivo ou para o fim da refeição. Um Tawny 20 anos com foie gras grillé, por exemplo, é uma combinação incrível. Desenvolver formas de consumo diferentes tem que ser um objectivo, porque senão vamos ficar presos a um momento de consumo muito limitado.

Em Portugal é pouco conhecido. Sente falta de reconhecimento?

O mais importante é seres reconhecido onde trabalhas. Gostava de ser um bocadinho mais conhecido em Portugal apenas para poder servir de inspiração aos jovens enólogos portugueses.  

Vai querer voltar a Portugal para fazer vinho?

Isso é algo que está no meu sangue. A minha intenção foi sempre voltar a Portugal. Não sei é quando.

Em que região gostava de fazer vinho?

Há regiões que sempre me interessaram. A Bairrada, pela Baga, o Dão, para trabalhar a Touriga Nacional, o Douro, que é um lugar incrível para fazer vinho. Em Portugal há várias regiões onde é possível fazer vinhos fantásticos.

Bodegas Numanthia
Um nome que é uma metáfora de Toro

Lenda ou não, a cidade espanhola de Numância tornou-se famosa pela forma estoica como resistiu a um prolongado cerco romano no ano 133 A.C. Quando perceberem que não podiam sair vitoriosos, os seus habitantes preferiram suicidar-se a capitular e ficar a servir Roma como escravos.

Em Toro, onde talvez exista o maior legado de vinhas velhas do mundo, o exemplo de Numância serve de metáfora à forma de fazer viticultura. Apesar das condições extremas em que as videiras crescem, em solos de areia e com muitíssima pouca água e sujeitas a invernos rigorosos (as vinhas situam-se a altitude que que vai dos 600 aos 750 metros e as temperaturas descem frequentemente abaixo dos 10 graus negativos), as vinhas conseguem resistir a várias gerações de proprietários. E serviu também de inspiração aos irmãos Eguren, da Rioja, quando em 1998 criaram as Bodegas Numanthia Termes, vendidas dez anos depois, por mais de 25 milhões de euros, ao grupo LVMH.

A venda incluiu a adegas, as três marcas – Termanthia, Numanthia e Termes- e 40 hectares de vinhas. No mesmo ano, os irmãos Eguren criaram uma nova adega, Tejo la Monja, que dá nome ao vinho mais caro de Espanha: 900 euros a garrafa (são produzidas apenas algumas centenas de garrafas).  

A região demarcada de Toro (situada entre Zamora e Valladolid, na bacia do Douro) foi apenas criada em 1987 e até então os vinhos eram consumidos na região ou vendidos a granel. A mudança começou com as Bodegas Fariña, que, com o seu tinto Gran Colegiata, chamou a atenção de Robert Parker. E as altas pontuações dadas por Parker chamaram a atenção de outros homens do vinho, em especial Mariano Garcia, que na altura fazia o mítico Veja Sicília.

Em menos de uma década, instalaram-se em Toro mais de 30 novos produtores, alguns vindos de Franca, como Gérard Depardieu, François Lurton e Michel Rolland, atraídos pela possibilidade de trabalhar com vinhas centenárias. O antigo como motor da modernidade. E o que era uma região desconhecida de Espanha tornou-se em poucos anos num dos seus principais spots vitivinícolas.

Este pequeno “boom” não impediu, no entanto, que a área de vinha em Toro continuasse a encolher. A região já foi um dia mar e as transformações geológicas que se foram dando ao longo dos tempos e que levaram à formação da bacia do Douro deixaram a zona assente numa vasta camada de areia, argila e cal. Precisamente por causa da areia, as vinhas de Toro tornaram-se nas últimas décadas alvo da cobiça dos construtores. Mesmo junto à cidade de Toro são visíveis enormes crateras rodeadas de vinha onde foi extraída areia.

Hoje, a área de vinha de Toro ronda os 5500 hectares. Destes, 500 a 600 hectares são de vinhas centenárias, muitas delas pré-filoxéricas.

É de um destes vinhedos muito antigos, conhecido por Teso los Carriles (tem 4,78 hectares e terá sido plantado entre 1870 e 1890), que vêm as uvas para o tinto Termanthia, o vinho de topo das Bodegas Numanthia. O Termanthia tornou-se numa referência mundial após a revista Wine Advocate, de Robert Parker, ter dado 100 pontos à colheita de 2004. A produção deste vinho nunca passa das seis mil garrafas e cada uma custa cerca de 140 euros (cerca de metade do vinho é vendido nos Estados Unidos). A produção por hectare é de apenas 1600 quilos.

Apesar da raridade das uvas, da casta Tinta de Toro (variante local da casta Tempranillo, a nossa Tinta Roriz, e que se distingue desta por ter um bago mais pequeno, muito rico em cor e tanino), todas os cachos para Termanthia são sujeitos a uma selecção extrema, de modo a obter um calibre uniforme dos melhores bagos. As uvas são depois pisadas a pé em pequenos balseiros.

A avaliar pelas colheitas provadas, 2011 e 2012, é um vinho imponente, que ressuma a fruta negra do bosque, tabaco e especiarias, de grande espessura e profundidade na boca. É tão denso e rico que quase se mastiga. Talvez por isso não seja vinho para bebedores sedentos. Ao segundo copo já começa a pesar. O Numanthia, o segundo vinho (40 euros, 60 mil garrafas), segue na mesma linha. O 2011 é uma bomba. Para beber um pouco mais é melhor o Termes (18 euros, 100 mil garrafas anuais). Não tem a complexidade, nem a estrutura dos outros dois, mas é mais digestivo.  Muito bom o 2012.

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