Fugas - Vinhos

  • Luís Ramos
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As vinhas extraordinárias das encostas de Portalegre

Por Rui Falcão

A existência de vinhas velhas plantadas em encostas de altitude ou a variedade de castas combinadas com o exclusivismo de apostas em variedades raras e exóticas como a Grand Noir são apenas duas das muitas condições que tornam Portalegre um caso raro. No Alentejo e no país. Passado um tempo de procura de novidades, as vinhas de Portalegre voltam a ser procuradas. Com justa causa.

A vida do vinho é feita de ciclos e mudanças, evoluções e revoluções. Os juízos e os valores vão-se adaptando às novas realidades, os conceitos e as prioridades vão mudando com o passar das colheitas e as tendências dos mercados, as causas e os princípios renovam-se a cada ano de acordo com os novos ditames e os novos costumes.

A realidade e o elogio de hoje podem ser o passado e o pecado do amanhã. Os exemplos destas mudanças de fé e de paradigma, por vezes provocadas ou aceleradas por constrangimentos económicos, abundam neste mundo tão peculiar do vinho.

As modas mudam ciclicamente e tudo se transforma. Se num passado muito recente se procurava realçar a madeira nos vinhos com a utilização abusiva de tostas e madeira nova, hoje foge-se desses excessos com uma aposta radical nas subtilezas e na evidência dos vinhos feitos com barricas usadas; se num passado recente se começou a valorizar e promover as castas internacionais, hoje volta-se a sentir orgulho sentido pelas variedades nacionais, apostando na afirmação da originalidade e da diferenciação em relação aos restantes países e regiões produtoras.

No Alentejo assistimos a um movimento relativamente semelhante no princípio, uma transição pacífica entre os lugares de eleição, uma mudança perceptível de destino e de estilo dos vinhos mais valorizados. Num passado muito recente, o sul do Alentejo tinha-se convertido num dos principais destinos do investimento de novos e velhos produtores. Investimento quase sempre bem pensado e bem executado, com grande sucesso factual e empresarial. Investimento que levou à nascença de novos territórios para o vinho alentejano, avançando por terras que até ao momento não contavam com qualquer tradição histórica na produção de vinho.

Foi assim que as terras quentes a sul de Beja, onde a vinha nunca antes tinha sido plantada, ganharam uma relevância e disponibilidade de que nunca antes tinham gozado. Não fora a ventura da rega e o investimento pesado em barragens e captações de água e o sul do Alentejo continuaria ainda hoje a ser terra fechada ao cultivo da vinha.

Mas o homem conseguiu conquistar esse pedaço mais quente, seco e árido do Alentejo e os resultados estão à vista, visíveis nos vinhos de sucesso que um par de produtores visionários colocou no mercado, transformando terras inóspitas em oásis de viticultura que o mercado aceitou com agrado. Muitos outros produtores rumaram ao sul e muitos outros projectos emergiram na região. Mas não é difícil perceber uma mudança na atitude e na filosofia; não é difícil perceber que as inclinações estão a mudar e que hoje já quase só se fala do norte do Alentejo, das terras de Portalegre e da Serra de São Mamede, convertidas na nova Meca do vinho alentejano.

Eventualmente a reboque das tendências internacionais que reclamam por vinhos mais frescos e ligeiros, com mais acidez e menos doçura, com mais personalidade e de espírito mais irrequieto, Portalegre transformou-se no local onde todos querem estar e onde todos procuram ter uma vinha.

Talvez pela estranha mistura de castas, talvez pelas vinhas velhas e muito velhas, talvez pelas vinhas misturadas e pela acidez dos solos graníticos, a verdade é que hoje todos ambicionam ter uma vinha em Portalegre, por pequena ou irrelevante que seja, seja por razões estéticas ou ainda por razões mais vãs de simples promoção de imagem.

Goste-se ou não, Portalegre é diferente do restante panorama alentejano e, porque não evidenciá-lo, do restante panorama nacional. Algumas das vinhas, embora poucas, chegam a atingir a cota dos 800 metros, altitudes muito elevadas que situam a região entre as detentoras de vinhas mais altas de Portugal ou Europa. Graças à altitude elevada e à protecção da Serra de São Mamede as temperaturas são mais frescas, muito mais temperadas que as restantes sub-regiões alentejanas.

A viticultura assenta numa agricultura de montanha com encostas escarpadas e propriedades muito emparceladas que dificultam ou proíbem qualquer tentativa de mecanização e racionalização económica. Tal como na paisagem duriense, abundam as vinhas velhas, algumas delas com idades bem superiores a um século de vida, muitas das quais surgem em parcelas onde se conseguem encontrar dezenas de castas misturadas sem nexo aparente entre si. Como viveiro da diversidade da vinha, Portalegre afirma-se como uma das referências essenciais que urge descobrir, estudar e catalogar.

Não só pela enorme diversidade de castas aí encontradas, algumas delas baptizadas com nomes verdadeiramente exóticos, como pela diversidade inacreditável de clones de algumas das castas mais badaladas de Portugal. Tal como no resto do Alentejo que idolatra o Alicante Bouschet, também aqui surge uma casta de referência estranha e que poucos conhecem ou compreendem fora das fronteiras naturais da região. Essa casta dá pelo nome de Grand Noir e, curiosamente, é um parente muito próximo do Alicante Bouschet, de quem descende parcialmente, tendo sido criada pelo mesmo mentor do seu irmão mais conhecido.

Tal como o Alicante Bouschet, o Grand Noir é uma variedade tintureira de perfil rude e estilo inconfundível, casta quase desconhecida internacionalmente, que encontrou o seu poiso de eleição nas terras da serra e em alguns pontos muito especiais de Reguengos de Monsaraz.

Estranhamente continuam a ser poucos os que a usam como bandeira e ainda menos os que a tentam explicar e promover como individualidade da sub-região. Mais que uma casta porém, Portalegre ficou famosa pela mistura de castas na vinha, pela existência de vinhas misturadas que completam um lote individual e único para cada vinha.

O potencial de atracção de Portalegre tornou-se tão ilustre que num ápice a sub-região passou a atrair grande parte do investimento interno e externo à região. Para além dos investimento sem vinhas ou uvas por parte de alguns produtores alentejanos a sub-região começou a empolgar gente de fora, produtores assentes em outras regiões que se sentiram tentados em ensaiar um vinho nestas condições tão particulares.

O movimento teve início há pouco mais de cinco anos e promete continuar a entusiasmar investimentos externos ou associações entre produtores alentejanos e produtores de outras paragens.

Os melhores vinhos da região mostram um carácter forte e simultaneamente subtil, num estilo fresco mas algo rugoso, tenso mas suficientemente afável para não afastar os palatos mais sensíveis.

E para quem pensa que Portalegre é uma terra de tintos fica a notícia que a região tem potencial para dar corpo a alguns dos melhores vinhos brancos nacionais, vinhos encorpados e robustos mas com uma elegância e frescura sem par que os pode elevar ao olimpo dos vinhos brancos nacionais e internacionais. Afinal, na base de um grande vinho está sempre uma vinha extraordinária… e em Portalegre não faltam vinhas admiráveis.

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