Há coisas que só com o tempo se tornam mais afinadas e requintadas, e essa bem pode ser uma das razões para a evidente preferência dos portugueses pelos espumantes da Bairrada. É certo que estão também cada vez mais finos e apelativos, mas o facto de as técnicas o conhecimento sobre a elaboração de vinhos espumantes ter chegado à região ainda no séc. XIX pode explicar essa supremacia.
Sendo uma das mais pequenas regiões vitivinícolas, a Bairrada representa cerca de 65% da produção oficial de vinhos espumantes em Portugal. E falamos de produção oficial, porque àqueles números poder-se-ia juntar ainda mais um milhão de garrafas anuais, que é o número estimado da produção clandestina em adegas e casas particulares da região.
Outra das razões que contribuem grandemente para a qualidade diferenciadora dos espumantes bairradinos tem a ver com as características da região. A acidez é fundamental e mais do que em qualquer outro lugar pode-se aqui obter vinhos de elevada acidez mesmo com boas maturações. O resultado são espumantes com maior estrutura e envolvência de boca, o que, a par do reforço e diversificação das componentes gustativas, lhes confere uma inigualável aptidão gastronómica.
“É a frescura e acidez marcada do vinho de base que faz com que os espumantes da Bairrada sejam muito frescos e nada enjoativos. Mesmo que não sejam Bruto Zero [sem qualquer adição de açúcar] não são enjoativos”. O presidente da Comissão de Viticultura Regional (CVR) da Bairrada, Pedro Soares explica que isso se deve em grande parte “à proximidade do Atlântico que faz com que, mesmo no pico do Verão, haja sempre uma brisa fresca e maturações moderadas”.
No mesmo sentido vai o entendimento de José Carvalheira, o responsável técnico pela Estação Vitivinícola da Bairrada e que, enquanto enólogo, assina também alguns dos mais importantes espumantes da região. “Há uma maior frescura gustativa, que resulta de vinhos base mais ricos e das características climáticas de frescura atlântica”, assinala, explicando que os conhecimentos técnicos de que a região há muito beneficia potenciam também essa diferenciação qualitativa.
Isso traduz-se em “extracções cuidadas para criar vinhos base orientados para a refermentação em garrafa”, características que vão depois determinar “a frescura e cremosidade da espuma” que claramente distingue os espumantes da bairrada. Afinal, sublinha ainda José Carvalheira, “há 125 anos de história e o saber de gerações sucessivas na elaboração de espumantes”.
E isto num enquadramento específico propício à criação deste tipo de vinhos, tal como logo perceberam o técnicos franceses vindos da região de Champanhe que, nos finais do séc. XIX, foram contratados para o efeito. “Havia uma frescura e finura aromática idêntica à de Champanhe e a prova disso foi o rápido sucesso, com o primeiro vinho a ser engarrafado logo no ano seguinte às primeiras experiências”, conclui Carvalheira.
Mas mesmo com vinhos e condições naturais privilegiadas, a região nem sempre pautou a produção pelos melhores critérios. “Antes os espumantes eram aromaticamente sujos”, reconhece o presidente da CVR, que aponta duas razões principais para a grande melhoria da qualidade e posterior refinamento com uma grande variedade de estilos e características.
A primeira “decorre fundamentalmente das importantes alterações ao nível da produção e das empresas engarrafadores ocorridas no final dos anos 90, quando as empresas que eram fundamentalmente compradoras de vinhos a granel incorporaram técnicos e passaram a produzir os seus próprios vinhos”. Pedro Soares explica que com isto a produção de espumantes passou a ser pensada, programada e orientada logo a partir da vinha. “E a qualidade dos vinhos é claramente a grande mais-valia para os espumantes da Bairrada”, garante.
Um segundo momento de afirmação de qualidade diferenciadora acontece com a crescente adopção da casta Braga como base para os espumantes. O presidente da CVR entende que “além de ser a casta típica da Bairrada, tem características aromáticas claramente diferenciadoras e proporciona vinhos que se distinguem também pela frescura e cremosidade”.
Mesmo com vinhos menos cuidados no passado, José Carvalheira constata que “nunca chegou a haver um sentimento depreciativo em relação aos espumantes da Bairrada”, concordando também com a ideia de que a Braga aporta aos espumantes uma cremosidade que os torna únicos. “E essa é a diferença entre o vinho com gás e o espumante. E isto na Bairrada interpreta-se muito bem”, conclui, assinalando que a produção de espumantes tende a ser maioritariamente com Baga, se bem que a sua utilização seja ainda recente.
A evolução começou há pouco mais de dez anos com produtores como Luís Pato (com um rosé) e as Caves Primavera, “mas está rapidamente a criar escala”, confirma Pedro Soares. Também produtores como a Adega de Cantanhede (Marquês de Marialva), as Caves S. Domingos, Aliança, Montanha estão a usar a Baga em grande escala. Nas Caves S. João prepara-se igualmente o lançamento de um espumante exclusivamente a partir desta casta e as Caves da Montanha acabam de por no mercado o seu “Grand Cuvée”, claramente distintivo em relação ao que atá agora faziam.
Pedro Soares garante que este tipo de vinhos tem tido grande aceitação no mercado e que produtores como a Adega de Cantanhede ou as Caves Primavera – que já faz mais de 80 mil garrafas por ano – têm já dificuldade em responder à procura durante todo o ano.
Para procurar fazer dos espumantes com Baga o produto-bandeira da região, a CVR está já a pensar num símbolo distintivo para as garrafas, um selo específico para a certificação e o futuro pode até trazer uma garrafa e um copo ou flutes próprios para os espumantes de Baga.
Num lote alargado de espumantes provados pela Fugas (ver lista) ficou evidente o salto qualitativo da generalidade dos espumantes bairradinos. Mas o que é agora mais surpreendente é a diversidade de estilos e características.
Para lá da capacidade e do conhecimento técnico instalado, José Carvalheira considera que a heterogeneidade é outra das riquezas da região. “Tem muito a ver com os diferentes tipos de solos. Os argilosos tendem a dar vinhos mais minerais, enquanto os franco-arenosos tendem a acentuar as características frutadas.
Além disso obtêm-se diferentes expressões cromáticas decorrendo da maior ou menos extracção das uvas”, explica, para concluir: “A Bairrada é um território pequeno mas tem uma diversidade impressionante. Muitas vezes até dentro da mesma vinha”. Há que saborear.
Mais de 6,5 milhões de garrafas e a “praga” dos clandestinos
Na Bairrada existem actualmente 32 produtores de espumantes, produzindo uma média de três marcas cada ao que corresponde cerca de uma centena de novos produtos que todos os anos são lançados no mercado. Em termos de consumo, a região representa cerca de 65% das vendas de espumantes. São mais de 6.5 milhões de garrafas, das quais apenas uma pequena parte (1.2 milhões) ostenta o selo de certificação.
Os restantes têm apenas o selo do IVV (Instituto da Vinha e do Vinho) o que os converte num produto legal, mas sem a garantia de qualidade de origem. Na falta de controlo, a responsabilidade é do produtor, mas sem a garantia da análise sensorial e físico-química ou de que é feito com uvas da região.
Um problema que a Comissão Vitivinícola Regional (CVR) diz que se tem vindo a atenuar com o crescente prestígio do espumantes Bairrada, cuja genuinidade só é garantida com o selo de certificação.
Bem mais complicada, no entanto, é “a praga dos clandestinos”, que as autoridades acreditam atingir anualmente à volta de um milhão de garrafas. Um problema que a CVR diz não estar a ser encarado pelas autoridades.
“O IVV empurra para a ASAE e esta argumenta que não pode entrar em casas particulares, mas o que parece é que ninguém quer ver que há aqui também uma actividade económica ilegal à qual todos parecem fechar os olhos”, acentua Pedro Soares.
E o problema para a região nem é tanto o prejuízo económico ou a concorrência desleal, mas antes uma questão de qualidade, que prejudica a imagem do produto. Com o conhecimento centenário instalado na região, muitos começam até por brincadeira ou vaidade a fazer em casa o seu espumante, mas os pedidos de amigos e conhecidos depressa levam a que vire negócio.
O presidente da CVR garante que “há já quem faça 30 ou 40 mil garrafas por ano, que todos sabem de onde vêm e para onde vão e que até se chegam a ver expostas em estantes, mas só as autoridades parecem desconhecer o fenómeno”.