Estará a Touriga Franca e destronar a toda poderosa Touriga Nacional, a casta bandeira da promoção dos vinhos portugueses no mercado externo? Para Dirk Niepoort, o mais consagrado e influente winemaker português, a resposta é inequívoca: “Claro que está. A Touriga Franca é muito superior, é mais equilibrada e interessante”.
Mais: na sua opinião, “a Touriga Nacional tem que passar de moda, porque está a contaminar os vinhos pelo país inteiro”. “É uma casta com muita personalidade, que marca muito os vinhos, e cada vez se nota mais a Touriga Nacional a dominar os vinhos de quase todos os produtores, a começar pelos do Douro”, sublinha.
Do Minho ao Algarve, do Dão a Lisboa e passando até pelas ilhas, não há recanto com aptidão para a produção de vinho que não tenha Touriga Nacional plantada. Tradicionalmente associada ao Dão e ao Douro, a casta esteve quase extinta nesta última região na década de 70 do século passada. No resto do país não tinha qualquer expressão.
O resgate da Touriga Nacional começou na década de 80 com o trabalho de selecção das melhores castas para a produção de vinho do Porto desenvolvido por um grupo de estudiosos, à cabeça do qual estiveram José António Rosas e o seu sobrinho João Nicolau de Almeida, da casa Ramos Pinto. Esse trabalho de avaliação enológica e selecção massal e, mais tarde, clonal das melhores videiras deu origem à eleição de cinco castas primordiais: Touriga Nacional, Touriga Francesa (recatalogada de Touriga Franca), Tinto Cão, Tinta Barroca e Tinta Roriz.
A selecção foi pensada para o vinho do Porto, mas serviu também de catalisador ao boom de vinhos DOC Douro do início dos anos 90. Na verdade, a selecção dessas cinco castas foi o elemento fundador dos vinhos DOC Douro, que, até então, eram insignificantes, maus e praticamente exclusivos das adegas cooperativas.
Com o tempo, os produtores de DOC Douro foram afunilando a escolha e, em geral, reduzindo o lote a três castas: Touriga Nacional, Touriga Franca e Roriz (agora, começou a entrar também o Sousão). E desde cedo que a Touriga Nacional se começou a distinguir das restantes, dada a sua exuberância aromática (frutos selvagens, violeta), sabor pronunciado e frescor cítrico.
O seu sucesso foi tal que, em poucos anos, se tornou omnipresente nos rótulos dos vinhos portugueses, ao ponto de virar anedota, pois, se fosse verdade o que os rótulos transmitiam, a Touriga Nacional seria a casta mais plantada no país. E não era, nunca o foi e talvez nunca o venha a ser.
O triunfo da Touriga Nacional não pode, no entanto, ser considerado um epifenómeno. No Dão, sempre foi a sua principal casta e os lendários vinhos tintos de 1963 do Centro de Estudos de Nelas, feitos à base de Touriga Nacional, eram a prova da sua verdadeira valia. O seu problema sempre esteve na vinha.
Selvagem como poucas, é uma verdadeira dor de cabeça para os viticultores, tanto durante a fase de crescimento, em que cai para todos os lados, quanto no momento da colheita, dado o reduzido tamanho dos seus cachos e a forma meio anárquica como se distribuem na videira. Como era natural, com o tempo, a opção do viticultor foi recaindo em castas mais fáceis de trabalhar e mais produtivas. Graças à modernização das vinhas e à selecção de clones mais produtivos, a Touriga Nacional começou a ser domesticada e a recuperar gradualmente a simpatia dos produtores.
À medida que os novos vinhos DOC foram ganhando reconhecimento nacional e internacional e os prémios se foram acumulando, a plantação da casta foi também crescendo, primeiro no Douro, depois no resto do país. E a sua notoriedade aumentou de tal forma que, a partir de um certo momento, a Touriga Nacional começou a ser vítima do seu próprio sucesso. Entre a crítica e alguns enólogos mais inconformistas, passou a ser démodé falar bem da Touriga Nacional.
Por outro lado, a ânsia de novidades e um maior conhecimento de outras castas tem feito emergir outras variedades e aberto caminho a novas experiências à margem da Touriga Nacional. “No Douro, sobretudo, é necessário fugir um pouco à rusticidade que ainda marca os seus vinhos e começar a pensar noutras castas, para lhes dar mais elegância e frescura”, defende Anselmo Mendes.
O enólogo minhoto, ligado aos vinhos durienses da Quinta da Gaivosa, Calheiros Cruz e Quinta dos Frades, dá como exemplo o Rufete, a Tinta Carvalha, a Tinta da Barca, a Tinta Amarela e o Alvarelhão, mas podíamos acrescentar também o Bastardo, a Tinta Francisca e o Donzelinho. Estas e outras castas faziam parte do encepamento tradicional do Douro e ainda estão presentes nas vinhas mais velhas.
De todas, a Touriga Franca continua a ser a casta mais plantada na região (ocupa cerca de 25% do encepamento total) e este domínio não é recente. Para o agricultor, é a variedade perfeita: produz bem, é fácil de conduzir e trabalhar na vinha, é pouco susceptível a doenças (menos à traça), resiste muito bem ao calor e à seca e ainda origina vinhos de grande qualidade. Mas não é tão adaptável como a Touriga Nacional, razão pela qual não se tem expandido tanto pelo resto do país. É uma casta que gosta de calor e que em zonas mais quentes ganha asas, originando vinhos potentes, complexos, altivos e com grande capacidade de envelhecimento.
A Touriga Franca encontrou no Douro, sobretudo no Douro Superior, o seu terroir. Mas mesmo aqui nunca conseguiu viver sozinha. Todos falam bem da casta, todas a adoram, mas é raro encontrar no mercado um vinho estreme de Touriga Franca.
Quando desafiado a indicar alguns dos seus vinhos que pudessem testemunhar a qualidade da Touriga Franca, Dirk Niepoort demorou alguns segundos até indicar um, o Charme, feito a partir de vinhas velhas com uma presença significativa de uvas daquela casta. Os poucos vinhos estremes de Touriga Franca que existem são do Alentejo e os melhores talvez sejam o Scala Coeli 2009 (da Cartuxa) e o Partage 2008, da Herdade do Portocarro (39 euros).
No Douro, a Touriga Franca sempre foi uma casta com vocação de lote e que ganha com a companhia de outras variedades. A excepção deu-se com o primeiro Bafarela 17, em 2014, um vinho com 17 graus de álcool e feito à base de Touriga Franca. A Touriga Nacional também gosta de companha, mas já uma há uma lista considerável de monovarietais da casta em todo o país.
No Douro, de acordo com um levantamento recente feito Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP), o número de registos de vinhos estremes de Touriga Nacional subiu de 66, em 2006, para 141, em 2013. “É surpreendente. Estava à espera que tivesse havido uma diminuição, porque tinha a ideia de que a Touriga Nacional estava a passar de moda”, diz Bento Amaral, presidente da Câmara de Provadores do IVDP.
A ideia de que a Touriga Franca está a destronar a Touriga Nacional poderá corresponder mais a uma percepção ou a uma tendência do que a um facto real. Em área de vinha, já a destronou há muito. Embora esteja a crescer todos os anos, a vinha de Touriga Nacional no Douro, por exemplo, ainda não passa dos 5% do total. Mas em termos de notoriedade a Touriga Nacional continua a ser a grande referência. “A Touriga Franca é capaz de conseguir um maior equilíbrio na vinha, mas os vinhos de Touriga Nacional são melhores. Têm mais equilíbrio na boca e são menos rústicos”, defende Bento Amaral.
Jorge Alves, enólogo da Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo e da Quinta do Tedo e produtor, junto com Celso Pereira, dos vinhos Quanta Terra e Terra a Terra, partilha da mesma opinião: “Continuo a gostar mais da Touriga Nacional por uma questão de textura. É mais sedosa na boca, enquanto a Touriga Franca é mais firme”. Já Rita Ferreira, que faz os vinhos Conceito e Contraste, não vê sentido nesta dicotomia. “Já houve a moda de que a Touriga Nacional era a melhor coisa do mundo, agora é a Franca que é a melhor do mundo.
As duas castas são super importantes e completam-se muito bem”, advoga, embora confesse preferir um vinho monovarietal de Touriga Franca. “É mais completa em termos de estrutura”. Luís Sottomayor, o enólogo chefe da Casa Ferreirinha, não concorda. “A Touriga Nacional tem mais personalidade”, defende, reconhecendo, no entanto, que a Touriga Franca “está a dar muitos bons vinhos”.
O que se começa a notar é a inversão dos contributos das diferentes castas nos lotes dos vinhos. Nos melhores vinhos da região, a participação de Touriga Franca tem vindo a crescer e a de Touriga Nacional a diminuir. “Quando for tão estudada como a Touriga Nacional, é possível que a venha a destronar. Por agora, ainda não”, acrescenta Luis Sottomayor.
São centenas os clones de Touriga Nacional que já existem. Não há outra casta em Portugal que tenha sido tão dissecada e desenvolvida. A Touriga Franca, como foi sempre mais regular, não tem merecido a mesma atenção. Por outro, também não tem a espessura histórica da Touriga Nacional. Nem podia, porque a Touriga Franca é filha da Touriga Nacional. O “pai” é o Marufo, mais conhecido por Mourisco.
Do cruzamento entre a Touriga Nacional e o Marufo nasceram também a Tinta Barroca, a Tinta Melra, a Tinta da Barca, a Tinta Aguiar e uma variedade descoberta recentemente e que tem a referência provisória de 5083-16. Dos progenitores da Touriga Nacional nada se sabe ainda. Uma tese possível é ter resultado da domesticação de uma videira selvagem, o que, a ser verdade, explicaria a forma rebelde e difícil como se comporta na vinha.
O palco ainda pertence à Touriga Nacional, mas o tempo corre a favor da Touriga Franca. Uma parte das regiões vitícolas nacionais já tem características similares a um deserto e o recurso à rega vai deixar de ser uma excepção para se tornar numa necessidade. Mas a água não resolve problemas como a insolação excessiva, por exemplo, para além de que também será um bem escasso e caro.
Mais cedo do que se pensa, os viticultores nacionais terão que voltar a “ouvir” a natureza e a praticar uma viticultura sustentável e adaptada às condições climáticas, apostando nas castas mais resistentes e, de preferência, com ligação histórica ao lugar. Ora, se há casta com capacidade para responder às exigências dessa nova ordem climática, essa é a Touriga Franca. Porque responde bem a duas necessidades básicas: produção e qualidade.
Herdade do Portocarro Partage Touriga Franca 2008
É como o Scala Coelli proveniente do Alentejo. Não causa um impacto inicial tão forte, mas talvez seja mais virtuoso, dada a sua enorme elegância e frescura.
Herdade do Portocarro, Alentejo
40€
Charme Tinto 2008
Vinho de vinhas velhas com grande predomínio de Touriga Franca, segundo o produtor. Na nossa opinião, é o melhor Charme de todos os que Dirk já fez. Além da fruta fina, o que sobressai no seu aroma é o odor a cogumelos, terra molhada, caruma, espargos selvagens. Um pouco de Primavera misturada com Outono. Envolvente e fresco, tem a carga telúrica que se associa às montanhas e vales do Douro, apesar da sua cor aberta apontar para outras paragens.
Niepoort, Douro
61,50€
Scala Coelli Touriga Franca 2009
Com 15% de Álcool, surpreende pelo seu notável equilíbrio. Possui grande estrutura e concentração, taninos muito bem trabalhados e boa frescura. Tem fruta madura, vegetal seco e excelente tosta, num registo aromático não muito exuberante mas bastante sedutor. Cresce na boca, revelando altivez e amplitude e enchendo o palato de sensações boas e gostosas. É um vinho poderoso, sem ser bruto, e muito gastronómico.
Adega da Cartuxa, Alentejo
57€