Fugas - Vinhos

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Estufagem e canteiro, uma evolução singular dos vinhos da Madeira

Por Rui Falcão

A história do vinho da Madeira está recheada de histórias, peripécias, anacronismos singulares e particularidades exóticas que o convertem em algo único em todos os sentidos.

Um vinho que teima em seguir práticas enológicas e rotinas de viticultura que seriam receita perfeita para o desastre em qualquer outra região do mundo transformam-se como que por magia em aliados inesperados e aparentemente impossíveis que desafiam a lógica universal do vinho, tal como ele é entendido e ensinado em todas os quadrantes do universo.

As temperaturas elevadas e a longa exposição oxidativa, o calor e o contacto com o oxigénio são considerados como dois dos principais inimigos do vinho, cláusulas a evitar a todo o custo por qualquer enólogo ou adegueiro minimamente conhecedor dos princípios básicos da arte de fazer vinho. Pois estas duas condições indesejadas em qualquer região do mundo actuam como aliadas perfeitos e ansiados na ilha da Madeira, providenciando vinhos únicos e de longevidade inigualável.

O calor húmido de perfil quase tropical é um dos elementos distintivos e mais marcantes do clima reinante na ilha da Madeira, apadrinhando desta forma o espírito de um dos vinhos generosos mais originais do planeta. A vantagem para a afirmação do carácter e para a enorme capacidade de guarda dos vinhos da Madeira do calor e da exposição mais ou menos prolongada às intempéries e ao oxigénio surgiu quase por acidente graças a um feliz acaso de que o universo do vinho é pródigo.

Os vinhos despachados para as possessões ultramarinas, para o importante mercado norte-americano ou para os mercados das índias ocidentais e orientais regressavam com frequência à ilha da Madeira por ausência de clientes ou por dificuldades económicas dos putativos compradores. Era tradição nessa época que os produtores enviassem os vinhos em pipas nos grandes veleiros mercantes que aportavam ao porto do Funchal para o reabastecimento de víveres sem que existisse um comprador garantido no destino da embarcação. O capitão do barco encarregava-se de fazer a venda no porto final retirando uma comissão substancial da possível transacção. Se por algum acaso os vinhos não encontrassem compradores seriam então devolvidos à procedência na próxima passagem pelo porto do Funchal.

Bastaram poucos anos para perceber que os chamados “vinhos de roda”, vinhos anteriormente despachados nos veleiros e que regressavam à ilha da Madeira sem ter logrado clientes, vinhos que em diversas ocasiões tinham ultrapassado a linha do Equador por duas vezes, estavam melhores e mais complexos tendo ganho características anteriormente desconhecidas numa notável aceleração da maturação.

Apesar de acondicionados nos porões ou mesmo na cobertura dos grandes veleiros, os vinhos melhoravam, descobrindo-se empiricamente que a passagem dos cascos pelo calor dos trópicos atribuía um envelhecimento acelerado que acrescentava características invulgares. Pouco tardou até que a prática de envelhecer vinhos por longas viagens de veleiro até às Américas e Antilhas começasse a fazer parte da rotina dos exportadores de Vinho da Madeira antes da exportação definitiva para os apetecíveis e decisivos mercados inglês e norte-americano.

O método, porém, era arriscado, moroso e extremamente oneroso, acarretando desafios demasiado elevados para a rentabilidade e prosperidade do negócio. Por outro lado, não só a qualidade aumentava exponencialmente como a procura do “vinho de roda” da Madeira aumentava significativamente, tornando-se impossível satisfazer as notas de encomenda entretanto acumuladas. Foi, pois, necessário desenvolver um avanço tecnológico decisivo que permitisse o envelhecimento e estágio precoce do grande vinho generoso da Madeira na própria ilha, de preferência a custos bem mais moderados e com risco diminuto.

A solução chegou após diversas tentativas e erros de simulação das grandes viagens oceânicas na forma de estufas, edifícios aquecidos de forma artificial e com larga exposição solar. Estufas aquecidas de forma contínua mas com temperaturas oscilantes de maneira não só a apressar a maturação do vinho como a recriar as oscilações de temperatura diárias que os vinhos sofriam nas antigas viagens nos porões dos veleiros. A primeira estufa foi erigida em 1794 por Pantaleão Fernandes e muito prontamente o conceito começou a ganhar crédito entre os diferentes produtores da época.

O princípio é tão perspicaz e eficiente no envelhecimento e evolução dos vinhos da Madeira que ainda hoje se mantém válido, mesmo que com as esperadas actualizações na forma e tecnologia do processo de estufagem, evolução que conduziu os produtores a dois métodos distintos e bem diferenciados na lógica e nos resultados, o método de “estufagem” e o método de “canteiro”. Apesar de a intenção ser análoga aos dois procedimentos as matizes e a gradação nos procedimentos, custos, celeridade e qualidade final são abismais.

O processo de canteiro, o método mais desejado e aquele que permite melhores resultados, está reservado para os vinhos mais nobres. O processo assenta no princípio de estufa passiva. As pipas de madeira velhas são arrumadas em armazéns com dois a três andares que beneficiam do clima temperado da Madeira para numa espécie de estufa natural submeter os vinhos a temperaturas elevadas. Os vinhos mais jovens são colocados nos andares superiores, descendo progressivamente de andar à medida que vão envelhecendo de forma compassada e natural. É um método simples e sem truques que dá azo a poucas manipulações e a uma intervenção humana minimalista.

O processo de estufagem, o mais habitual para as categorias de entrada, sobretudo os vinhos com indicação de idade de três e cinco anos, assenta num princípio análogo. A ideia é guardar o vinho em cubas de inox ou outros materiais inertes onde circula uma conduta de tubagens e serpentinas com água quente que mantém uma temperatura estável entre os 45º e os 55ºC durante um período de cerca de três meses. As temperaturas mais elevadas permitem um envelhecimento mais acelerado que com frequência induzem notas tostadas mais consistentes, sensações de caramelo e uma sensação oxidativa mais evidente.

 

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