Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

Perder o foco

Por Rui Falcão

Faz-se vinho em Portugal há muitos séculos. Podemos argumentar que, mais que uma bebida erudita, o vinho foi entendido ao longo da história como um alimento, como algo que estava presente à mesa e sobre a qual não haveria necessidade ou conveniência em teorizar.

Podemos sustentar que, mais que a cultura do vinho, o que sempre existiu em Portugal foi consumo, mais que o conhecimento das castas, da vinificação ou da prova. Durante séculos, os produtores de todas as regiões vinícolas nacionais preocuparam-se em produzir vinhos brancos, tintos ou rosados, com a ocasional passagem de algumas regiões em particular pelos vinhos fortificados.

Há pouco mais de um século, duas regiões nacionais começaram a investir de forma mais decidida na produção de vinhos espumantes, narrativa que, tal como a maioria das regiões, teve os seus momentos altos e os seus momentos de depressão. Ao longo dos tempos as técnicas foram variando, a atenção foi-se renovando de acordo com os preceitos e as modas de cada época, os estilos foram-se diversificando à medida que os gostos evoluíam e os conhecimentos aumentavam, mas manteve-se uma identidade e um perfil mais ou menos identificável para cada região. A maioria continuou a fazer vinhos brancos, tintos e rosados, enquanto três dessas regiões mantinham o seu estatuto de produtores de vinhos generosos, os vinhos do Porto, Madeira e Moscatel de Setúbal.

Na conclusão do século precedente, pouco depois de termos começado a importar e a glorificar castas estrangeiras, chegaram também estilos de vinhos a que não estávamos habituados, vinhos misteriosos e com os quais, salvo raras excepções, não mantínhamos qualquer tipo de familiaridade. Entre eles encontrava-se um estilo muito particular, o dos vinhos de colheita tardia, muitas vezes confundidos e mal incluídos na categoria dos vinhos referidos de “podridão nobre”. Vinhos docinhos, demasiadas vezes vinhos excessivamente doces, vinhos de gosto fácil e de empatia quase garantida que conquistaram alguns dos corações nacionais.

Pouco faltou para que alguns produtores começassem a investir na elaboração deste tipo de vinhos, mesmo sabendo que Portugal dificilmente teria condições naturais para o fazer de forma acertada e conveniente. Mesmo sabendo que o clima é pouco propício para a execução deste estilo de vinhos, mesmo sabendo que o estilo representa uma transgressão da natureza que frequentemente tem de ser combatida e condicionada para induzir as características inerentes a este estilo de vinhos. Mesmo sabendo que existem muitos outros países que beneficiam das condições naturais próprias para a criação deste tipo de vinhos, os países que deram corpo a este estilo de vinhos de forma espontânea e onde eles são produzidos há séculos de forma feliz.

Seguindo a velha máxima nacional que obriga a reproduzir o que os vizinhos fazem, sobretudo se soar a algo que venha do estrangeiro, cada vez mais produtores se deixaram seduzir pela fantasia de produzir vinhos doces, de colheita tardia. Mesmo que não compreendessem o estilo e acreditassem que bastaria o açúcar para os tornar atraentes, mesmo que pouco se tenham dado ao trabalho de provar os vinhos que criaram a reputação destes vinhos doces, mesmo que a região onde se encontram as suas vinhas não oferecesse condições naturais para a criação desta família de vinhos. Bastou que os vizinhos fizessem, bastou que soasse a ideia que os portugueses se tivessem apaixonado por estes vinhos para que uma imensa maioria se lançasse nesta aventura.

O problema é que em Portugal, um país de clima maioritariamente soalheiro e onde a maturação nunca é um problema, dificilmente podemos encontrar a acidez, a frescura indispensável para contrariar a doçura pungente e indolente dos vinhos de colheita tardia. A consequência são vinhos melosos e pesados, melífluos mas sem o brilho da acidez que possa conduzir a um final viçoso e luxuriante. Ou então, em alternativa, são vinhos que obrigam a correcções de acidez na adega que confirmam a má opção de os produzir.

A opção é ainda mais surpreendente quando Portugal é precisamente um país que se celebrizou pelos seus vinhos doces, os famosos generosos que são representados pelo Vinho do Porto, Vinho da Madeira, Moscatel de Setúbal e o quase desconhecido Carcavelos. Vinhos que reflectem não só a nossa história como as condições naturais das regiões que os produzem, vinhos únicos e que ninguém consegue imitar… mas que muitos tentam copiar de forma tão atabalhoada como nós tentamos copiar um estilo para o qual não temos vocação nem condições naturais. Tentar fazer vinhos de colheita tardia em Portugal é como esperar que um produtor de Mosel, Rust, Tokay ou Sauternes, as regiões naturalmente mais aptas para a sua produção e onde surgiram este tipo de vinhos, se lancem na peripécia de produzir um vinho generoso do estilo Porto, Madeira ou Moscatel. Seria possível mas não é difícil compreender que dificilmente teríamos os melhores vinhos do mundo.

Acima de tudo, a dispersão em demasiados estilos e em vinhos pouco consentâneos com a realidade leva a uma perda de foco naquilo que verdadeiramente interessa, produzir os melhores vinhos possíveis para cada região, para cada terroir. O que separa um grande vinho de um vinho simplesmente razoável é a soma de inúmeros detalhes, o somatório de incontáveis pequenas e grandes decisões que têm de ser tomadas no momento certo com o discernimento adequado. Não é fácil manter o carácter dos vinhos e a atenção necessária à tomada de decisão sobre todos estes detalhes se o produtor apostar numa multiplicidade de vinhos que obrigam a demasiadas distracções e à dispersão da atenção.

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