Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

Mestres na arte da educação e envelhecimento

Por Rui Falcão

Por vezes exageramos na noção de origem e terroir, na crença que os vinhos são consumados exclusivamente pela graça e bondade da natureza.

Sim, é verdade que existem alguns vinhos, muito poucos, que se caracterizam por exprimir o terroir de forma especialmente transparente, que se celebrizaram pela frontalidade quase cândida como reflectem o local de nascença.

Mas a maioria dos grandes vinhos traduz não só o seu berço natural como equitativamente a visão do homem, a interpretação da natureza pelo enólogo ou produtor, a perspectiva conjunta que é permitida pelo local e pela acção humana. Se aceitamos que uma obra musical, uma grande sinfonia, é passível de diferentes interpretações por parte de diferentes maestros e que essa interpretação é tão fundamental como a obra em si própria, por que motivo sentimos tanta dificuldade em aceitar que o resultado material de uma vinha dependa igualmente da visão, interpretação e execução do enólogo ou produtor?

Por isso é tão importante perceber a filosofia e o sonho do produtor, a perspectiva e ideologia de cada enólogo, a visão conjunta para a sua região. Fazer vinho é muito mais que repetir uma fórmula única até à exaustão, muito mais que a repetição de um conceito universal que possa ser repisado ou que possa ser adaptado a todas as circunstâncias. Fazer vinho é saber tirar partido do que se tem, saber interpretar as vinhas e as circunstâncias, saber escolher um destino e um estilo, saber usar a natureza e ter capacidade para aceitar os compromissos que ela impõe. Entender o vinho é muito mais que provar de forma desapaixonada e cerebral, é muito mais que uma simples prova fria e analítica que esquece ou que simplesmente desconhece as circunstâncias de cada vinho.

Uma premissa que poderia até parecer não aplicável aos vinhos generosos muito velhos, aos vinhos com idades que rondam ou que por vezes ultrapassam o primeiro século de vida, vinhos fortificados de que Portugal é tão pródigo. Vinhos únicos como o Porto, Madeira ou Moscatel de Setúbal, vinhos que se encontram entre os verdadeiramente grandes vinhos do mundo. Vinhos que em muitos casos anunciam idades vetustas, vinhos que em muitos casos foram elaborados há dezenas de décadas… mas que frequentemente se apresentam como fruto da geração actual da casa.

O que poderia parecer um contra-senso ou um aproveitamento do trabalho alheio é apenas uma consequência dos processos de elaboração e envelhecimento deste grupo muito reduzido de vinhos, os vinhos fortificados de envelhecimento muito prolongado em pipa. Muito mais que os procedimentos enológicos no momento da vinificação, aquilo que determina a saúde futura, o perfil e o génio dos vinhos fortificados é a forma como os vinhos envelhecem em madeira, a forma como os vinhos são tratados e acarinhados ao longo do seu longo e lento processo de educação nas caves dos produtores.

O papel de quem tem de tratar da educação destes vinhos, o modo e subtileza como esse envelhecimento é efectuado, os cuidados, agudeza e processos empregues estabelecem de forma decisiva a evolução de cada pipa e o carácter de cada vinho. São vinhos de criação humana e não de terroir, vinhos que reflectem mais o carinho, a arte e a capacidade humana de quem os fez e de quem os educou ao longo das décadas que passaram na cave do que o local de origem, que o terroir onde nasceram e que lhes deu origem.

Seria fácil tipificar esta interpretação com exemplos de vinhos sublimes provenientes de cada uma destas regiões, vinhos do Porto como o Graham’s Ne Oublie ou o Taylor’s Colheita 1863, vinhos da Madeira como o Barbeito Mãe Manuela 40 Anos ou o Blandy’s Bual 1920, vinhos Moscatel de Setúbal como os JMF Moscatel de Setúbal Superior 1911 ou o Bacalhôa Moscatel de Setúbal 1983 20 Anos. Mas, apesar da dimensão qualitativa e sensorial quase sobrenatural de qualquer um destes vinhos, o preço muito elevado, embora inteiramente justificado, e a raridade extrema que os torna quase impossíveis de encontrar em garrafeiras, acabam por aconselhar a sugestão de exemplos mais terrenos e mais fáceis de acomodar.

Para entender o que a lenta passagem do tempo e o génio do homem podem fazer, para entender que os vinhos também podem ser a obra do homem em lugar do triunfo da natureza, basta olhar para vinhos que nos estão mais próximos e que se encontram disponíveis em grande parte das boas garrafeiras nacionais. Olhe-se para o Ramos Pinto 30 Anos, um vinho de cor ambarina alaranjada e brilho intenso. É fácil gostar do encanto do vinagrinho e da casca de laranja, da massa de padeiro e da incrível frescura que oferece. Viscoso, glicerinado e gordo, ao invés do que a idade poderia fazer pressupor, apresenta-se brilhante e viçoso, alegre e radiante, terminando fresco face a uma acidez muito bem medida. Belíssimo para final de dia ou para meditar nas grandes decisões da vida.

Admire-se igualmente o extraordinário Henriques & Henriques Terrantez 20 Anos, um Madeira de bonita cor ambarina. Profundamente iodado, transmite uma sensação salina e de maresia a que se associam os frutos secos e um leve toque de casca de laranja cristalizada. A boca confirma a elegância e sedução do nariz, acrescentando uma tensão, audácia, dimensão e volume que o conduzem a uma dimensão superior. Volumoso e poderoso, é um Terrantez gigante de travo ligeiramente amargo, num hino à casta que não deverá deixar passar ao lado sob qualquer pretexto.

Para terminar em beleza, aprecie o JMF Moscatel 20 Anos, que se anuncia numa tonalidade ambarina de ligeiros laivos avermelhados. As notas aromáticas deixam-nos muito perto da sensação de perdição num vinho simultaneamente sensual e combativo, enriquecido com apontamentos cativantes de avelã, bolacha, casca de laranja cristalizada, tabaco, caramelo e mel. A acidez estruturante dá-lhe vivacidade, alegria e um fim de boca simplesmente interminável.

 

--%>