Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

Quando o vinho vale ouro

Por Rui Falcão

O vinho fez, faz e continuará a fazer parte do quotidiano de muitas famílias, não só da orla norte da bacia do Mediterrâneo como, cada vez mais, do resto do mundo.

O vinho está presente à mesa e, não tendo defeitos visíveis, raramente é tema de conversa ou razão para debates acalorados. Está lá, tira a sede, faz companhia aos alimentos, lubrifica a conversa e mal se dá pela sua presença. Ou pelo menos era assim até um passado muito recente, já que uma nova onda de entusiasmo pelo vinho, embora claramente minoritária, coloca-o no centro da mesa, organizando a refeição e a conversa em seu redor.

De mero produto alimentar o vinho passou a ser celebrado por muitos como uma forma de arte muito peculiar, como uma interpretação da natureza, como uma forma erudita de olhar para a transformação da fruta em algo tão sublime como o vinho em lugar de vinagre. Passámos a beber menos vinho mas a falar mais do vinho e, pelo menos teoricamente, a beber melhor vinho. Uma transformação social e cultural que retirou o vinho do mundo eternamente desvalorizado da agricultura para o situar no mundo mais aclamado dos prazeres da vida.

De repente passou a ser socialmente apetitoso ser produtor de vinho. Mesmo para os declaradamente urbanos na educação e no trato, mesmo para os que tinham perdido a ligação à terra há muito. Ser produtor de vinho passou a ser encarado como uma excentricidade desejável e cobiçável. E o vinho começou a ficar mais caro, sobretudo quando elaborado em edições cada vez mais limitadas, assumindo o seu novo papel de estrela maior do firmamento. E o vinho ganhou novos adeptos, em Portugal e em muitas outras paragens do mundo, onde no passado raramente se bebia vinho, alargando o mercado existente e criando muitos novos nichos de consumidores desejosos de conquistar uma garrafa de um dos muitos vinhos-troféu que povoaram e continuam a povoar a paisagem vínica.

Primeiro foram os europeus a interessar-se e a popularizar este novo fenómeno, rapidamente seguido na festa pelos norte-americanos. De seguida chegaram os sul-americanos e, mais recentemente, uma parte da Ásia, continente que ainda tem muito espaço para crescer em volume à medida que o poder de aquisição se multiplica. Com o mercado a crescer continuamente, e o volume dos vinhos verdadeiramente excepcionais a manter-se relativamente estável, os preços dos vinhos mais procurados internacionalmente dispararam para valores tão estratosféricos que para muitos poderão mesmo chegar a ser considerados escandalosos.

Se as colheitas mais recentes, muitas vezes com um ou dois anos de garrafa, atingem preços desmesurados, as colheitas mais antigas, disponíveis unicamente em leilão, chegam a raiar o limite do absurdo. Claro que existe alguma especulação à mistura, o que por vezes se traduz em quebras de valor, mas, apesar dessa condição, os vinhos mais cotados e com maior pedrigree histórico têm continuado a valorizar-se exponencialmente ao longo das últimas décadas. Há mesmo quem construa carteiras de investimento financeiro baseadas na colecção de rótulos e colheitas de vinhos especialmente prestigiados com a certeza de uma valorização incessante.

Os valores passaram a ser tão elevados que recentemente começaram a despertar o interesse de duas outras classes profissionais muito particulares, a dos falsários e a dos larápios. Os falsários dedicaram-se a multiplicar garrafas e rótulos, por vezes de forma extremamente sofisticada, tendo o cuidado de criar histórias mais ou menos verosímeis para a “descoberta acidental” de mais um tesouro perdido na cave familiar de um prédio centenário que ia ser demolido. Foi desta forma milagrosa que surgiram dezenas de garrafas de vinhos excepcionais e de colheitas extremamente antigas e raras, por vezes com mais de um século de vida. Alguns desses falsificadores criaram histórias tão rocambolescas e foram descobertos através de investigações tão atribuladas que o seu embuste acabou vertido em livro e, à boa maneira de Hollywood, em provável filme de suspense e acção.

Mas a tendência global que parece ganhar mais peso é o assalto a caves, tanto de particulares como de restaurantes de fine dining. Garrafeiras com colecções excepcionais e cujo conteúdo é do domínio público. A publicação de reportagens sobre garrafeiras privadas em revistas da especialidade ou em revistas da sociedade tornou-se frequente, fornecendo pistas preciosas sobre o que se esconde em cada garrafeira. Apesar de muitas destas caves conterem colecções impressionantes pela quantidade e qualidade, a maioria dos furtos costuma reduzir-se a menos de uma centena de garrafas.

Bastam duas ou três dúzias de garrafas escolhidas a dedo para atingir valores impressionantes. Muito recentemente foi assaltada a garrafeira de um dos restaurantes mais famosos do mundo, o French Laundry, em Yountville, Napa, na Califórnia, e os larápios contentaram-se em levar 76 garrafas com um valor próximo de 270.000 euros. Do famosíssimo Château d’Yquem, em Sauternes, Bordéus, foram roubadas, ao abrigo da noite, 380 meias garrafas com um valor de mercado próximo dos 110.000 euros. Em Seattle foram roubadas 2500 garrafas de uma garrafeira particular que perfaziam um valor de 570.000 euros.

Descobriu-se mais tarde, quando apanharam os ladrões, que o vinho roubado tinha estado guardado em condições quase perfeitas dentro de um armazém climatizado. O que indicia que muitos destes roubos serão cometidos por profissionais ligados ao vinho, provavelmente com ajuda de alguém de dentro, e com comprador já assegurado. Talvez sejam mais profissionais que George Osumi, um pacato construtor civil de 65 anos que se especializou em limpar as garrafeiras dos clientes a quem fazia obras de reparação repondo as garrafas roubadas com vinhos de qualidade infinitamente inferior. Uma actividade paralela que lhe rendeu quase dois milhões e meio de euros… e cerca de dez anos de cadeia. Quando o vinho vale ouro a tentação é grande.

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