Fugas - Vinhos

Companhia das Lezírias

Por Rui Falcão

O espírito de empresa pública raramente soa bem aos ouvidos da maioria, raramente é merecedora de uma imagem positiva ou atraente.

Salvo os raros casos onde a presença estatal se torna absolutamente indispensável, o tecido produtivo público costuma estar associado à noção de desperdício e falta de produtividade que, com frequência, arrastam problemas como falta de motivação e imobilismo. Raramente olhamos para as empresas públicas como modelos a seguir ou a olhar com respeito, raramente delas esperamos resultados líquidos positivos. Confiamos com frequência que sejam deficitárias e, talvez ainda mais penosamente, que muitas vezes mais não sejam que um expediente para a colocação de amizades políticas.

Apesar da falta de entusiasmo mais ou menos generalizada pelas empresas públicas, facilmente se reconhece a sua necessidade em alguns dos sectores estratégicos da economia, de resto tal como em alguns dos sectores mais sensíveis da sociedade. Mas dificilmente se espera a sua presença no sector agro-alimentar, um dos mais competitivos e concorrenciais da economia portuguesa E ainda menos se espera a sua presença na produção de vinho. A expectativa de uma empresa pública assumir o papel de produtor de vinho é não só pouco expectável como algo pouco propício a boas surpresas.

E, no entanto, este produtor “entidade pública” é não só economicamente viável e capaz de gerar lucro financeiro como, o que é mais importante e surpreendente, capaz de se afirmar pela qualidade, originalidade e segurança dos seus vinhos. O produtor em causa chama-se Companhia das Lezírias e faz parte desse imenso património fundiário que começou como empresa agrícola real, acabou privatizada para após o 25 de Abril ser nacionalizada. Aquele que já foi o maior empreendimento agrícola do país conta ainda hoje, depois de ao longo de muitas décadas já ter desmembrado parte do seu enorme património histórico, com cerca de 18.000 hectares de terras férteis, parte delas exploradas indirectamente através de arrendamentos a rendeiros. Para além da produção directa de arroz, milho, carne pecuária, criação de cavalos (assumindo a responsabilidade pela Coudelaria Nacional e Coudelaria de Alter do Chão), floresta e muitas outras valências, a Companhia das Lezírias tem ainda uma área alargada de olival e, aquilo que mais interessa nesta coluna, cerca de 140 hectares de vinha.

A localização da vinha será porventura uma das principais originalidades, situando-se numa confluência geográfica e administrativa extremamente peculiar, que poderá ajudar a explicar o perfil tão diferenciado de alguns dos vinhos da Companhia das Lezírias. As vinhas foram plantadas historicamente na charneca do Catapereiro, curiosamente na mesma localização onde ainda hoje estão plantadas, nas imediações de Lisboa, a curta distância de Alcochete. Como tal, os vinhos são certificados administrativamente sob a denominação Tejo, mesmo se as vinhas se situam numa pequena língua extremada da região, uma pequena franja que faz convergência com três outras importantes denominações de origem.

Com efeito, a Companhia das Lezírias faz fronteira natural com a denominação Península de Setúbal, que se situa a escassas centenas de metros a sul, para voltar a fazer fronteira com outra denominação, desta vez com Lisboa, que se situa logo na outra margem do rio Tejo, do outro lado do Mar da Palha. O Alentejo também não fica longe, com a cidade de Vendas Novas a situar-se a pouco mais de quarenta quilómetros de distância medida em linha recta. Uma condição que acaba por tornar estas vinhas únicas e a que há que acrescentar as condicionantes da proximidade ao rio, as oscilações de temperatura elevadas que permitem dias quentes e noites muito frescas, os solos pobres e com algum stress hídrico apesar da proximidade ao Tejo, bem como a protecção às vinhas proporcionada pela floresta circundante.

Os vinhos mudaram muito ao longo destes últimos anos. A imagem dos rótulos foi refrescada de forma substancial, a gama foi racionalizada, diminuindo o número de referências propostas, e a viticultura foi reformada, passando a abraçar de forma explícita medidas de protecção ambiental, providências que são ainda mais naturais e desejáveis numa empresa de capitais exclusivamente públicos. Os vinhos mais representativos desta nova visão que está a ser protagonizada por Bernardo Cabral, o enólogo e responsável por toda a operação vinícola, chamam-se Tyto Alba.

O nome poderá até parecer misterioso num primeiro contacto mas fica mais inteligível quando se descobre que é a referência científica ao nome da coruja das torres, também conhecida como coruja branca, espécie presente nas vinhas e que se transformou no símbolo e imagem da renovada ambição dos vinhos da Companhia das Lezírias. Por ora, o Tyto Alba existe em versão branco e tinto, o último dos quais é decomposto nas versões clássica, Reserva e uma edição estrema da casta Touriga Nacional. Vinhos muito bem desenhados, equilibrados e agradáveis, redondos e de contentamento garantido.

Mas a verdadeira estrela da companhia é o 1836, o vinho porta-estandarte da Companhia das Lezírias, cujo rótulo faz referência ao ano da fundação da empresa agrícola. Por ora, a única colheita disponível é a de 2012, com o vinho a traduzir uma versão estreme das vinhas mais velhas da casta Alicante Bouschet. Não escondo que tinha ficado com uma excelente imagem deste vinho quando, há cerca de dois anos, o provei e o tinto ainda era um jovem impetuoso a entrar na barrica e a precisar da afinação do tempo. E o tempo foi muito generoso com este tinto monumental, que promete uma nova dimensão à Companhia das Lezírias, colocando-a entre os poucos que sabem domar esta casta colossal mas tão fácil de se tornar demasiado brutal se não inteiramente compreendida ou bem domesticada.

A má notícia é que são só 3200 garrafas. A boa notícia é que o Tejo ganhou um vinho de referência que ajuda não só o produtor como toda a região e os seus agentes económicos. A ambição da Companhia das Lezírias e de Bernardo Cabral não morre com este vinho e dentro de dois ou três anos poderemos vir a ser confrontados com um branco de referência que poderá vir a surpreender pela ousadia do classicismo.

 

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