Fugas - Vinhos

MATT TURNER/REUTERS

Uma nova estratégia para a Austrália

Por Rui Falcão

Durante anos, os 'mentideros' e os círculos mais informados do negócio do vinho do velho mundo pouco mais discutiam que a temível ameaça australiana, o pavor europeu ao avanço aparentemente imparável dos vinhos australianos no mundo.

Os argumentos sobre os méritos e deméritos dos planos a vinte anos que a indústria do vinho australiano tinha desenhado para conquistar o mundo eram analisados até à exaustão perante o medo dos países clássicos europeus… e de muitos dos países do novo mundo, para quem a Austrália era igualmente uma ameaça.

Os vinhos tinham rótulos apelativos, eram desenhados para satisfazer os desejos e gostos dos consumidores, sobretudo os emergentes, que ainda tinham pouca experiência com o mundo do vinho, eram simples, fáceis de entender, descontraídos e sem a fleuma e a pomposidade de regras complicadas que era imposta aos neófitos do vinho. Tornou-se desnecessário aprender o nome de dezenas de regiões e sub-regiões de nomes estranhos, passando apenas a ter de memorizar o nome de três ou quatro castas e uma dúzia de nomes de marcas, muitas delas associadas a animais exóticos que ajudavam na memorização.

A produção era mais ou menos coesa nos objectivos e nos fundamentos, unida e concordante na estratégia de promoção internacional dos vinhos australianos. Em poucos anos, a Austrália passou a ocupar com grande estrondo o universo dos vinhos populares, ganhando uma quota de mercado que fazia tremer de medo e inveja os produtores europeus. Tal como hoje tanto se fala da ameaça chinesa, há poucos anos, no mundo do vinho, só se falava da ameaça australiana e de como seria possível fazer face às ambições de um país que conquistava mercado numa tomada relâmpago imparável.

De uma simples ameaça intimidatória, a perspectiva transformou-se rapidamente em pesadelo, quando os vinhos australianos ganharam uma quota de mercado tamanha que os converteu no principal exportador para o decisivo mercado inglês, destronando assim a França, que ocupava esse posto durante os derradeiros três séculos. Ao mesmo tempo, produtores como a Yellow Tail, um dos símbolos mais destacados do ciclo expansionista dos vinhos australianos, multiplicava tranquilamente a sua produção de um milhão de garrafas para o incrível número de 60 milhões de garrafas no curto espaço de cinco anos, acabando por fixar-se numa produção de 145 milhões de garrafas anuais.

A estratégia global passava pela multiplicação da área plantada, pela promoção de duas ou três castas que conseguiram associar ao país, nomeadamente o Shiraz, pela simplificação das regras que permitiram aos produtores vender o nome Austrália em detrimento de qualquer regionalismo ou de terroir. Mas também pela liberalização das regras e o pragmatismo que fomentaram a criação de empresas genéricas de enorme dimensão que ofereciam prestação de serviços em dezenas de tarefas e procedimentos como engarrafamento, rotulagem, armazenagem ou fiscalidade e exportação.

Condições que permitiram não só a criação de preços extremamente competitivos como vinhos verdadeiramente homogéneos e consistentes, sem a variação qualitativa inerente ao ciclo agrícola que em cada ano revela colheitas de padrões climáticos diferentes. E foi essa estratégia aparentemente de sucesso que ditou o gigantesco trambolhão internacional dos vinhos australianos. Deixou de se dar destaque aos pequenos produtores de qualidade, deixou de se falar dos produtores que faziam vinho de enorme personalidade e carácter, deixou de se falar de outras variedades para além das duas ou três castas bandeira e deixou de se apontar as diferenças e originalidades que ajudavam a colocar a Austrália entre os grandes países produtores do mundo.

O país passou a vender preço e uniformidade, perdendo o brilho que tanto tinha custado a ganhar. Ao contrário do que os produtores acreditavam, as vendas começaram a decair e a influência australiana começou a decrescer de forma exponencial. Muitos dos colossais grupos que tinham nascido e conquistado o mundo ameaçaram falência e tiveram de ser desmantelados e vendidos em fatias mais pequenas e humanas. E a Austrália teve de mudar a agulha e desenhar um novo plano que reformasse a percepção internacional sobre os seus vinhos.

A mudança não poderia ser mais radical e é reveladora dos perigos reais que advêm da perda de identidade. Da afirmação pelo preço e por um nome genérico, Austrália, a política oficial dos vinhos australianos passou a privilegiar a afirmação e valorização do terroir, a valorização do nome das regiões, o enaltecimento de castas alternativas e, o que é inacreditável por parte de um país que sempre desvalorizou o princípio, a elogiar e a promover o conceito de lote. Ou seja, a Austrália passou a abraçar os princípios que sempre regeram os vinhos europeus e, de uma forma ainda mais pronunciada, os vinhos portugueses.

Uma boa lição para quem pretende criar e colar uma imagem de preço acessível aos vinhos portugueses, para quem quer desvalorizar o nome das regiões, para quem quer reduzir Portugal a uma dúzia de castas, para quem quer desvalorizar a ideia de lote que nos é tão querida e tão natural. Mas igualmente uma boa lição para quem não se preocupa em defender as grandes distinções que nos separam do resto do mundo, as vinhas misturadas, os lagares ou a fermentação em talhas de barro, entre tantos outros exemplos da nossa riqueza vinícola.

 

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