Fugas - Vinhos

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O regresso triunfal da Sogrape ao “Velho Mundo” do Vinho

Por Pedro Garcias

Em 2012, em plena crise financeira e económica, a Sogrape fez uma surpreendente investida em Espanha, comprando as Bodegas LAN, uma grande companhia de vinhos sediada na Rioja e com pé também nas Rias baixas, Rueda e Ribera del Duero. Depois de se ter expandido para a Argentina, Chile e Nova Zelândia, o grupo português está de regresso ao “Velho Mundo” do vinho.

Dia perfeito de Primavera depois de uma noite rápida em cama senhorial e lençóis de linho, num hotel de estrada nos arredores de Burgos com exterior e interior de castelo medieval e personagens pícaras a servir. O céu está limpo, a luz é crua e faz um friozinho seco que o sol vai aquecendo. Burgos esconde-se sobre suaves colinas reverdecidas, mas não há tempo para visitar sequer a catedral, a principal atracção da cidade. Em uma hora estamos na Viña Lanciano, 72 hectares de pedras roladas espalhadas por bardos geométricos, uns aramados, outros em vaso. Ou, dito de outra forma, 72 hectares de vinha povoada de pedras roladas. É daqui que saem os principais vinhos das Bodegas LAN, a empresa espanhola que a Sogrape comprou a um fundo de capital de risco há cerca de três anos.

Se não houvesse videiras, podia ser o leito de um rio seco. O Ebro passa mesmo ao lado e na sua longa formação foi depositando areias, pedras e outros sedimentos nas planícies inundáveis. Vinã Lanciano é uma espectacular península criada por um meandro do Ebro, o rio mais comprido de Espanha, e onde ainda subsistem vestígios da presença romana na região. 

A localização é prodigiosa. No inverno, esta enorme mancha contínua de vinha, verdadeira excepção na Rioja, deve ter algumas semelhanças com os vinhedos da Sogrape em Mendonza e Tupungato, na Argentina. Há montanhas em toda a volta, algumas ainda com uns restos de neve. Ao longe vêem-se os Montes Cantábricos. Ainda mais distante, divisa-se a serra da Demanda, levemente nevada. Os Montes Cantábricos protegem a Rioja da influência Atlântica, filtrando a chuva que chega do mar. A Demanda protege as vinhas da influência continental e das temperaturas elevadas no Verão. Por sua vez, o rio Ebro funciona como um seguro anti-geadas e também como corredor de biodiversidade, por onde entra toda a influência mediterrânica que é visível na Rioja. 

A Viña Lanciano situa-se na Rioja Alta, a poucos quilómetros da cidade de Logronõ, capital da região autonómica da Rioja. Do outro lado, a um salto de  peixe, começa a Rioja Alavesa, já no país Basco. Rioja Alta e Rioja Alavesa são as duas sub-regiões mais prestigiadas da Rioja, que, por sua vez, é a mais famosa região de vinhos de Espanha (a denominação inclui ainda a sub-região de Rioja Baixa e umas parcelas de vinha situadas já na Região Autonómica de Navarra). Os solos variam bastante de margem para margem. Mais aluvionares e argilosos na Rioja Alta, mais calcários e menos pedregosos na Rioja Alavesa. São solos pobres que obrigam as raízes a procurar bem fundo os nutrientes de que necessitam, o que explica o carácter bastante mineral dos vinhos riojanos. 

“É muito duro tratar estas vinhas”, queixa-se José Lopes, o português de Macedo de Cavaleiros que há mais de uma década tem a gestão da Viña Lanciano a seu cargo. “Ao fim de cada lavragem, é preciso trocar as aivecas do tractor. É só pedras! Mas é por isso que o vinho é bom“. 

José anda radiante com as visitas. “Quando vem cá alguém de Portugal, fica todo contente. Aproveita para falar português e matar saudades”, diz Fernando Guedes (filho), director executivo da Sogrape. Na LAN trabalham ainda uma prima e um filho de José que foi para a Rioja com apenas 11 meses. 

É dia de enxertia na Viña Lanciano. Há trabalhadores a escavar as videiras, outros a colocar os garfos e outros a tapá-los com terra arenosa retirada junto ao rio. Desde que tomou conta da empresa, a Sogrape tem vindo a reconverter algumas parcelas de vinha que estavam instaladas com castas francesas. As variedades Tempranillo (a casta dominante da Rioja), Mazuelo, Graciano (tintas) e Viura (branco) são a base dos vinhos da LAN. A maior parte da vinha está instalada em vaso, sem qualquer tipo de aramação, como é comum na Rioja, e tem mais de 40 anos. Uma das parcelas, denominada El Rincón, terá perto de 100 anos e é daqui que saem as uvas para os tintos Lan a Mano e Culmen, os vinhos de topo da Sogrape na Rioja. Para as restantes gamas, e além das uvas próprias, a empresa conta com mais cerca de 400 hectares de viticultores locais a quem compra a produção.

O regresso à Ibéria
Depois da aposta no “Novo Mundo” do vinho, com a compra da Finca Flichman na Argentina, Los Boldos no Chile e Framingham na Nova Zelândia, a Sogrape regressou ao “Velho Mundo”- e veio para ficar. Portugal e Espanha são agora os principais focos da empresa. 

Espanha “sempre foi um objectivo da Sogrape”, diz Fernando Guedes. A companhia portuguesa já estava em Jerez com a marca Sandeman, mas com o continuado declínio desta região as atenções da empresa começaram a dirigir-se para a Rioja, o primeiro dos quatro “r” que estão a fazer andar a Espanha vinícola. Os outros são Ribera del Duero, Rueda e Rias Baixas. Com a compra das Bodegas LAN, a Sogrape fez um pocker, porque a companhia espanhola tem vinhas e adegas na Rioja nas Rias Baixas (Bodegas Santiago Ruiz, em Rosal) e marcas em Ribera del Duero (Marquês de Burgos) e Rueda (Duquesa de Valladolid). 

O grupo português chegou a Espanha com a paciência dos sábios. Depois de um primeiro namoro com as Bodegas LAN em meados da década passada, aproveitou o auge da crise para comprar a empresa por um preço muito mais baixo do que teria pago se o namoro anterior tivesse dado resultado. Antes, em 2010, ainda andou a negociar a compra da Domeq Wines, um verdadeiro colosso em Espanha e detentora de várias marcas importantes na Rioja, como Campo Viejo, Viña Alcorta e Ysios. O seu elevado custo fez abortar o negócio. 

A compra da LAN aconteceu em contraciclo, mas está a revelar-se um verdadeiro sucesso. É uma das operações da Sogrape que mais crescem. Por cerca de 50 milhões de euros - menos do que custou a compra, uns meses depois, da participação que Joe Berardo detinha na Sogrape (cerca de 30%) -, o maior grupo de vinhos português adquiriu uma empresa implantada há cerca de 40 anos na Rioja, com um posicionamento “premium” e marcas já firmadas no mercado, 72 hectares de vinha (e mais 38 hectares na Galiza) e uma adega com capacidade para elaborar mais de cinco milhões de litros de vinho e dotada de uma inovadora e assombrosa cave onde estagiam cerca de 20 mil barricas (ver texto ao lado). 

Não é a adega mais bonita de Rioja vista de fora. Não tem, por exemplo, a beleza das adegas Ysios (desenhada por Santiago Calatrava) e Viña Real (da Companhia Vinícola do Norte de Espanha e projectada pelo arquitecto francês Philippe Mazieres); também não se compara com o radicalismo estético do famoso hotel vínico de Marquês de Riscal em Elciego, idealizado por Frank Gehry; não tem sequer a patine, nem a espessura histórica das Bodegas López Heredia (Viña Tondónia). Mas há poucas que consigam ser tão eficientes. “É um relógio suíço”, assegura Fernando Guedes. O seu nível de automatização é tal que meia dúzia de pessoas bastam para assegurar a parte de vinificação e a gestão de todo o parque de barricas. No total, trabalham nas Bodegas LAN apenas 50 pessoas. Em 2014, a facturação da empresa ascendeu a 18 milhões de euros (cerca de quatro milhões de garrafas vendidas), o equivalente a 9% da facturação total do grupo Sogrape. 

Para tratar das contas da LAN, a Sogrape destacou o jovem financeiro Tiago Serra. Foi a única nova incorporação vinda de Portugal. Todos os outros trabalhadores da empresa, espanhóis na sua maioria, se mantiveram nos seus postos. Henrique Abiega continua a ser o director-geral e Maria Barua mantêm-se à frente da enologia. “É uma sorte termos um accionista que não está de passagem”, confesa Amaya, relações públicas na LAN. José Lopes é o mais entusiasmado. Os novos patrões são portugueses como ele e a admiração é mútua, como se viu durante a visita à Viña Lanciano, com direito a piquenique matinal para um primeiro contacto com os vinhos da companhia. Afinal, o vinho é o lugar e as pessoas que o fazem. A prova a sério veio a seguir.

Crianza e outras menções

Não deve haver no mundo região que cultive tanto o estágio de vinho em barricas como a Rioja. A prática decorre do próprio regulamento da denominação de origem, que associa o uso das principais menções de qualidade a estágios mínimos em barrica. O sistema pode parecer arcaico e contribuir para uma certa uniformização dos vinhos riojanos, agravada pelo facto destes assentaram basicamente numa casta, o Tempranillo (que em Portugal dá pelo nome de Tinta Roriz ou Aragonez). Mas também grandes virtudes. Impede que os vinhos saiam demasiado cedo para o mercado e protege o prestígio das três principais menções de qualidade, evitando a degradação dos preços. Encontrar um Gran Reserva a pouco mais de dois euros a garrafa, como acontece no Douro, é impossível na Rioja. No Douro, a classificação é atribuída através de avaliação sensorial. Muitas vezes, o que aos provadores oficiais é um vinho com estágio em barrica corresponde apenas a um vinho que só contactou com aduelas ou aparas de madeira.

Na Rioja, para um vinho tinto poder ostentar a classificação Crianza tem que passar pelo menos um ano em barrica e outro em garrafa. Os Reserva só podem sair para o mercado ao fim de três anos e depois de estagiarem no mínimo um ano em casco. Por fim, os Gran Reserva terão que passar, no mínimo, dois anos em barrica e três em garrafa.

Viña Lanciano, Lan a mano, Culmen e outros grandes vinhos

A ideia da prova preparada por Maria Barua, a enóloga das Bodegas Lan, era dar a conhecer a gama principal da companhia, mas o exercício permitiu também ficar com uma melhor percepção sobre o perfil e valor enológico das principais variedades tintas da Rioja. Pelas amostras de vinhos estremes de Tempranillo, Mazuelo e Graciano da colheita de 2014, uma das menos exaltantes dos últimos anos, deu para perceber, por exemplo, que existe uma grande afinidade vegetal e tânica do Graciano com o Cabernet Sauvignon; que o Mazuelo origina vinhos robustos e com grande acidez; e que o Tempranillo se destaca pela exuberância do seu aroma a fruta vermelha e a fruta do bosque. 

A prova foi também reveladora do estatuto premium das Bodegas Lan. O vinho DOC Rioja mais barato, o Lan Crianza, tem um PVP de 7,5 euros e a sua produção ascende a dois milhões de garrafas. O Lan Reserva custa 11,75 euros e o Lan Gran Reserva 17 euros. No meio situam-se o Lan D-12 (14 euros) e o Viña Lanciano (15 euros). No topo estão o Lan a mano (28 euros e uma produção de perto de 40 mil garrafas)) e o Culmen (40 euros e uma produção de cerca de 20 mil garrafas). Todos tintos. 

Como é normal, os vinhos com mais idade ou de “finca” (provenientes de parcelas especiais) são os mais empolgantes. Uma excepção é o Lan D-12 de 2012, um vinho com origem em duas parcelas diferentes de Rioja Alta e Rioja Alavesa, não é excepção. Pleno de fruta vermelha e delicadas notas florais, está cheio de nervo e frescura, com taninos firmes e sedosos e um final longo e apimentado. Outra boa surpresa foi o Viña Lanciano Reserva 2010 (agora com nova roupagem), provado na própria vinha e que se distingue pela sua singular frescura mineral e frutado suculento. A avaliar por um Viña Lanciano 1996 que provámos posteriormente à mesa, é vinho para envelhecer muito bem. 

Da prova do Lan Reserva 2008 e do Lan Gran Reserva 2007 ficou claro que um ano a mais de barrica e outro de garrafa podem fazer toda a diferença. Ambos são muito bons, mas o Gran Reserva (200 mil garrafas) é mais balsâmico e sedoso. Bastante estruturado e volumoso, tem um ataque de boca magnífico, em que mostra as garras, terminando de forma muito fresca. 

Está um pouco na linha do Lan a mano, embora o que provámos, da colheita de 2011, seja mais robusto e carnudo, com grande presença de fruta do pomar e do bosque, especiarias, notas balsâmicas e minerais. Um vinho imponente e de largo espectro sensorial, mas não tanto como o Culmen Reserva 2010. No aroma, um toque de verniz sugere acidez volátil um pouco alta (desmentida pelas análises, segundo assegurou Maria Barua), mas não é nada que comprometa o balanço geral. Se não passar do ponto, a acidez volátil aviva o aroma e torna ainda mais exaltante a prova. De resto, o que fica na memória é a grande complexidade do vinho, o seu carácter muito mineral e especiado, a sua solidez tânica e o seu frescor e final longo.

Uma cave de barricas única no mundo

Só olhando desde um ponto mais elevado é que se fica com uma ideia mais aproximada da imponência e singularidade da cave de barricas da LAN. Numa nave de 6.400 metros quadrados com tecto abobadado de madeira estendem-se cerca de 20 mil barricas geometricamente alinhadas e assentes em estruturas de ferro móveis. O sistema permite amontoar barricas em pilhas de mais de dez níveis, separadas apenas pelos carris dos dois guindastes gigantes que movimentam os cascos. É uma imagem mais apropriada a um estaleiro naval do que a uma adega, onde é raro encontrar um nível de automatização tão elevado. Concebida por dois engenheiros de Logroño, o sistema de gestão da cave de barricas da LAN é, de resto, pioneiro no mundo. A nave e toda a maquinaria instalada foram projectadas para acolher perto de 60 mil barricas. O mais extraordinário é que bastam três a quatro pessoas para fazer todo o trabalho, incluindo trasfegas e limpezas regulares de barricas. 

Na Rioja, há empresas com mais barricas do que a LAN. Campo Viejo, por exemplo, possui 80 mil barricas com vinho. Mas nenhuma se aproxima do mesmo grau de inovação e de eficiência. A LAN foi também a primeira empresa da Rioja a utilizar barricas mistas, com aduelas de carvalho americano e tampos de carvalho francês. Só na capacidade dos cascos é que a opção tem um carácter mais tradicional. Todos os cascos são de 225 litros, que é o volume exigido para os produtores poderem usar as menções Crianza, Reserva e Gran Reserva.

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