Fugas - Vinhos

  • DR
  • DR
  • DR
  • DR
  • DR
  • Maria João Gala

Cinco variações para um grande estilo

Por Manuel Carvalho

Os últimos 30 anos do vinho do Porto sublimaram a grandeza dos Vintage e remeteram os Colheita, um estilo bem mais português, para uma certa subalternidade. Mas isso está a mudar. Os Colheita valorizam-se, as raridades do século XIX atingem valores milionários e os Vintage já não estão sozinhos no céu.

São alourados, mas não são Tawny no sentido mais tradicional, ostentam a data da sua criação no rótulo, mas não são nem Vintage nem LBV (Late Bottled Vintage). Os Porto Colheita existem desde que nas caves de Gaia existe o hábito de destinar cascos de vinho a longos períodos de maturação, mas nunca suscitaram a atenção, a curiosidade e o interesse que hoje as empresas e os consumidores mais especializados lhes concedem. A verdade é que um bom Colheita, por exemplo, dos anos de 1990, ligeiramente refrescado e servido à sobremesa com leite creme ou como entrada com foie gras é uma experiência que vale a pena.

Antigamente, eram uma mania que se praticava mais nas caves das firmas portuguesas, mas, hoje, praticamente todas as empresas olham para os Colheita com outro cuidado e atenção. Na Feitoria Inglesa, o santuário dos Porto Vintage, já há provas de Colheita. Em muitas apresentações a clientes ou a jornalistas estrangeiros não é raro verificar colheitas e vintages do mesmo ano a aparecer lado a lado. Ou seja, “as empresas começam a pôr as duas categorias no mesmo patamar de comparação”, reconhece Isabel Marrana, da Associação de Empresas do Vinho do Porto e Douro. Os números explicam porquê: nos últimos dez anos a comercialização de Colheita manteve-se na ordem das 450 mil garrafas por ano, mas no mesmo período o seu valor passou de 5.5 para 9.4 milhões de euros.

Faz sentido? Faz todo o sentido. Um Colheita de um grande ano, que foi bem acompanhado ao longo da sua vida, pode chegar aos nossos dias com uma intensidade, uma complexidade e uma sofisticação de aromas e sabores capazes de rivalizar com os grandes Vintage. A indicação de idade baseada na data da colheita em vez da média de idade do lote, como acontece por exemplo nos 10 anos ou nos 20 anos, torna a sua identidade mais atraente para o consumidor porque, bem se sabe, a referência a um ano concreto convoca imagens e acontecimentos da vida das pessoas e dos países que por vezes requerem comemoração. E, ainda em comparação com os Vintage, têm uma vantagem que não se pode menosprezar: os Colheita podem ser abertos e consumidos ao longo de alguns dias, enquanto os Vintage, que passaram toda a sua vida na garrafa, devem ser bebidos rapidamente.

Mas, afinal, o que distingue em especial estas duas categorias? A escolha de lotes, a sabedoria dos provadores e enólogos das firmas do vinho do Porto e, principalmente, o modo como evoluíram. Ainda antes da vindima, estes especialistas são já capazes de saber que vinhas ou que parcelas de vinha produzem vinhos com as características ideais para dar um Vintage ou um Colheita, mesmo que “nem sempre a mesma parcela dê o mesmo vinho”, como nota Luís Sottomayor, da Ferreira. Mas é quando os vinhos saem do Douro e passam para as caves de Gaia (no caso da Noval, uma das casas mais consagradas nas artes dos Colheita e dos Vintage, todo o ciclo de passa em Vale de Mendiz, perto do Pinhão) que as escolhas se fazem. Em primeiro lugar, distinguem-se os lotes para vinhos do Porto Ruby dos que seguem para os Porto Tawny. Como os próprios nomes indicam, os Ruby serão aqueles vinhos do Porto mais escuros, resultado do seu envelhecimento em garrafa, enquanto os Tawny ganharão com o tempo tonalidades alouradas em consequência do efeito de uma maior intensidade de trocas gasosas nos balseiros ou cascos de madeira.

Em tese, os vinhos destinados às categorias superiores destes dois estilos (no caso dos Tawny são os Colheita e no caso dos Ruby os Vintage), são escolhidos neste momento. Luís Sottomayor nota que esta selecção “deve respeitar as características do ano” e os vinhos “devem apresentar estrutura e carácter”. Um vinho mais frágil, acrescenta o chefe da enologia da Ferreira, pode propiciar “aromas queimados” após alguns anos de envelhecimento. José Manuel Sousa Soares, enólogo da Gran Cruz, dona de alguns Colheitas de topo, nota que os vinhos sujeitos a grandes macerações, que libertam mais taninos e geram mais cor, seguem para as gamas Ruby, enquanto as escolhas para os Colheita devem apresentar “aromas limpos e ter estrutura, mas não precisam da cor dos lotes que vão para os Vintage”. Não tanto por receio de uma evolução negativa no futuro, mais porque vinhos com estas características demoram muito mais tempo a adquirir a fisionomia do estilo Colheita.

Os Ruby, ao contrário dos Tawny, passam poucos anos nos armazéns das empresas. Os LBV são engarrafados entre o quarto e o sexto ano após a data da vindima e os Vintage seguem o mesmo destino ainda mais cedo, entre o segundo e o terceiro ano. Os Colheita têm, no mínimo, de passar sete anos nos cascos antes de serem engarrafados. Mas antes, as empresas têm de notificar o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto sobre os lotes que vão fazer parte dessa categoria. Lá pelo quarto ou quinto ano de vida, os enólogos e provadores têm já uma ideia muito mais precisa sobre as qualidades de certos cascos de certos anos. Pequenas quantidades destes vinhos poderão ser retirados todos os anos para entrar nos lotes dos 10 anos ou dos 20 anos. Mas para lá desses contributos, no sector há milhares de litros de vinho de colheitas distantes que podem ser engarrafados a qualquer altura com a designação de Colheita.

Depois de serem definidos como Colheita, segue-se um trabalho de acompanhamento que tanto pode demorar poucos anos como algumas décadas – ou mais de um século. Em primeiro lugar é conveniente fazer arejamentos, o que permite a “separação da borra mais grossa e manter o vinho limpo para se evitarem os aromas de torrefacção”, nota Luís Sottomayor. É igualmente necessário manter o teor de álcool exigido pela regulamentação do sector, fazendo-se pequenas adições regulares de aguardente – o álcool evapora-se mais rapidamente. E é necessário também manter os cascos atestados para evitar a superfície de contacto com o oxigénio, o que só se pode fazer com vinhos do mesmo ano – embora no sector se diga que alguns Colheita mais antigos são “refrescados”, ou seja, recebem pequenas quantidades de vinhos mais recentes para lhes manter o fulgor e frescura. A regularidade destas operações varia em função da idade dos vinhos e das tradições de cada casa. “No caso dos vinhos mais velhos, temos o cuidado de os seguir muito de perto e em muitos casos só muito espaçadamente fazemos a correcção da aguardente ou os arejamentos”, diz José Manuel Sousa Soares.

Quando uma firma decide finalmente colocar o seu vinho no mercado, tem a obrigação de mencionar a data do engarrafamento. Ao contrário dos Vintage, que foram desenhados para envelhecer em garrafa, os Colheita são de outra natureza e, diz-se numa opinião algo contestada, não evoluem no ambiente redutor. Em tese, portanto, quando mais depressa se beber um Colheita que está à venda, melhor. Mas, se os Colheita não evoluem em garrafa, não quer dizer que se estraguem. “Um Colheita aguenta quatro ou cinco anos em garrafa sem sofrer qualquer problema”, considera Luís Sottomayor. Há até mesmo especialistas, como Dirk Niepoort, que defendem a passagem dos Colheita por alguns anos de garrafa para refinarem ainda mais a sua complexidade.

A verdade é que se podem beber colheitas com 20 anos de garrafa em excelente condição. Numa prova recente experimentaram-se dois Noval de 1937, um engarrafado em 1984 e outro em 2014. Ambos estavam excelentes, embora o vinho que foi para a garrafa há menos tempo exibisse uma intensidade e um volume de boca superior, enquanto o Colheita engarrafado em 1984 deixava já aromas em sabores que se podem encontrar em Vintage com décadas de garrafa.

Por tradição, os Porto Colheita são mais cultivados nas firmas de origem portuguesa do que nas casas britânicas. Pequenas casas como a Poças, a Andresen ou a Cálem (hoje no grupo Sogevinus) tinham nesta categoria o trunfo para enfrentarem a aura dos Vintage. Hoje o seu património é altamente cobiçado e, para muitas empresas, tornou-se o caminho seguro para poderem reclamar para si os louros da excelência que os seus Vintage jamais lhes permitiram disputar.

A Gran Cruz, por exemplo, lançou nos últimos anos alguns vinhos magníficos, com destaque para os Brancos Colheitas de 1952 e 1963. O património de colheitas acumulado ao longo de gerações pela Wiese & Krohn, uma companhia de origem norueguesa, esteve base da sua compra pela Fladgate Partnership, em 2013. A Rozés não comercializa Colheita, mas há alguns anos, numa apresentação privada, deu a provar um 1947 fora de série. Nos últimos anos, o grupo Symington começou a olhar com outro interesse para o seu imenso potencial de vinhos com data de colheita e colocou no mercado vinhos desta categoria de enorme qualidade. Mas é impossível falar neste estilo de vinho do Porto sem mencionar duas das suas marcas de referência: a Niepoort e a Noval. Curiosamente, no grupo Sogrape (que inclui gigantes como a Sandeman ou a Ferreira), só a Offley tem concedido atenção a esta categoria.

Por regra, as companhias disponibilizam no mercado três a quatro colheitas por ano. A obrigação de engarrafar estes vinhos apenas após sete anos de casco é geralmente acolhida como uma indicação, já que na maior parte dos casos os Colheita são considerados prontos pelos provadores aos dez anos, ou mais, de vida. Há também oportunidades comerciais que não são descuradas. Por exemplo, começa a estar na moda a venda de colheitas com 50 anos de idade – estão aí, por exemplo, os 1965 da Cálem. As efemérides são também comemoradas com edições especiais, como o Kopke de 1974 destinado a celebrar os 40 anos do 25 de Abril. Há três anos a Graham´s lançou no mercado um extraordinário Colheita de 1952 para celebrar o início do reinado de Isabel II.

Algumas companhias começaram entretanto a elevar a fasquia, tornando os seus Colheita mais raros e antigos em objectos da procura internacional por parte dos coleccionadores de preciosidades. A Taylor’s abriu caminho, ao lançar no mercado um Colheita de 1858, o Scion, que descobrira numa adega de um lavrador do Douro, na aldeia da Prezegueda. A Quinta do Vallado apresentou depois o seu Adelaide Tributa, de 1866. E a Graham’s entrou nesse desafio com o Ne Oublie, um vinho criado em 1882, o ano em que o primeiro Symington chegou a Portugal. Como seria de esperar os seus preços são muito elevados (5500 euros por garrafa para o Ne Oublie e 2800 para o Scion). Mas por vinhos desta raridade, antiguidade e excelência, não seria de esperar algo muito diferente. O facto de haver clientes espalhados pelo mundo para os adquirir são afinal mais uma prova do extraordinário potencial dos Colheita para disputar aos Vintage o lugar cimeiro no estatuto do vinho do Porto.

Messias Colheita de 1963
O ano de 1963 foi prodigioso no Douro e se há muito que os Vintage desse ano se tornaram lendários este Messias apenas serve para o sublinhar. Um vinho intenso, explosivo até, cheio de mistérios, gordo, com uma acidez notável, nariz com sugestões de chá preto, casca de laranja cristalizada e alperce maduro. É um daqueles Porto que deixa um rasto de prazer interminável no palato e que é capaz de encher uma sala com os seus aromas. É um Colheita prodigioso. 250 euros  (Na garrafeira Nacional)
 

Poças Colheita de 1997
Os Poças Colheita são característicos pela sua intensidade e na boca e pela presença de aromas de laranja cristalizada e amêndoa torrada. No geral, são compras seguras, ainda por mais a preços absolutamente notáveis. É um vinho com uma enorme amplitude de sabores na boca que acaba com sensações apimentadas muito atraentes. Numa outra dimensão (e preço), o 1967 é um vinho admirável. 27 euros (na winehouseportugal.com)
 

Quinta do Noval Colheita 2000
Os colheitas da Quinta do Noval variam apenas entre o excelente e o magnífico. Este 2000, o mais recente da casa no mercado, está naquele ponto em que a frescura e a acidez se equilibram de uma forma mais evidente com as notas de frutos secos do envelhecimento. É uma excelente opção, mas quem quiser ir á procura das vizinhanças da perfeição terá de viajar no tempo, passar por 1976 e, obrigatoriamente, parar em 1964. Este Colheita, objecto de devoção, é uma obra prima e um vinho do Porto capaz de se bater de igual para igual com o genial Vintage de 1963 que esta casa fez. 45 euros na Garrafeira Tio Pepe
 

Kopke Colheita 1965
Um Colheita absolutamente notável a um preço muito aceitável (para a sua idade e qualidade, obviamente). Nos seus aromas já se detecta um prenúncio de vinagrinho que lhe dá tensão e vestígios de iodo que lhe emprestam exotismo e complexidade. Na boca é todo ele um hino à elegância e à sofisticação. Sedoso, o que deixa sublinhar o impacte de notas de pimenta, com uma frescura notável, acaba com um rasto de aromas de avelã na boca. Um vinho extraordinário. Preço: 180 euros
 

Dalva Colheita de 1985
Um vinho com uma magnífica consistência e uma harmonia extraordinária. Untuoso na boca, com uma nota de acidez ampliada por sensações de pimenta que lhe acentuam a profundidade de boca, aromas de frutas secas que provocam sensações retronasais deliciosas. Um Colheita de grande classe a um preço muito interessante. Entre 35 e 50 euros

--%>