Fugas - Vinhos

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  • Miguel Manso

Os formidáveis vinhos brancos dos Açores

Por Pedro Garcias

Vinhos criados de forma poética e heróica, nascidos com a chegada dos primeiros povoadores e que se expandiram com a aventura marítima. Com a filoxera, quase desapareceram, mas agora vivem uma segunda vida.

Quando pensamos nos Açores imaginamos logo paisagens verdejantes de tirar o fôlego, vulcões, caldeiras, vaquinhas em pastos rodeados de hortências e mar, queijo e, vá lá, cavacos e cracas. Raramente associamos as ilhas atlânticas a vinho e, no entanto, é dos seus minúsculos vinhedos de lava e de alguns campos experimentais que estão a sair alguns dos vinhos brancos mais singulares e emocionantes de Portugal.

Pico, Terceira, Graciosa, São Miguel, São Jorge, Santa Maria e Faial são as ilhas que ainda conservam alguma actividade vitícola, mas só nas quatro primeiras se produz vinhos com castas classificadas. O negócio, se se pode falar em negócio, é muito pequeno e confinado ao consumo local. Mas já houve um tempo em que o vinho chegou a ser uma fonte de rendimento muito importante para algumas ilhas. O vinho do Pico, por exemplo, era tão afamado que algumas cortes europeias o requisitavam para os seus banquetes.

Hoje, o que os viticultores açorianos fazem é uma agricultura poética, de profunda devoção à terra e de respeito pelas vinhas e saberes herdados. Há viticultores na Terceira, nas vinhas dos Biscoitos, por exemplo, que chegam a produzir apenas 20 a 30 litros de vinho por ano e, mesmo assim, insistem em manter a sua curraleta (pequenas parcelas delimitadas por muros de pedra seca). E quem vai a Santa Maria fica incrédulo com as vinhas em socalcos existentes mesmo junto ao mar. É graças a muitos heróis anónimos que algumas ilhas açorianas ainda vão mantendo as suas deslumbrantes paisagens vitícolas, que são verdadeiros monumentos culturais feitos de génio humano e de insubmissão à força dos elementos.

Essa beleza e esse esforço foram reconhecidos pela Unesco em 2004 com a classificação da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico como Património Mundial. O nome diz tudo: mais do que vinhas, a Unesco classificou uma cultura. A área classificada abrange 987 hectares e inclui um imenso e reticulado sistema de muros de pedra negra (que protegem as videiras dos ventos salgados) e todo tipo de construções relacionadas com a cultura da vinha, desde adegas a pequenos cais e ancoradouros por onde o vinho era escoado, até aos “rola pipas (caminhos traçados na pedra por onde as pipas rolavam em direcção aos cais), “rilheiras” (sulcos cravados na rocha pelos carros de bois) e poços de maré (que abasteciam de água as adegas).

Os apoios à reabilitação de vinhas abandonadas na área classificada como Património Mundial, associados aos apoios genéricos do sector, conseguiram travar o declínio da vinha do Pico e abrir caminho à restruturação de muitos hectares e ao aparecimento de novos projectos. O Pico deve ser, de resto, a única ilha açoriana onde tem crescido a área apta a vinhos DOP (Denominação de Origem Protegida) e IG (Indicação Geográfica), embora a área destinada ao chamado “vinho de cheiro”, feito com castas americanas não classificadas, ainda seja dominante.

Na actualidade existem naquela ilha cerca de 160 hectares de vinhas aptas a DOP e IG e outros 150 hectares estão em reestruturação. Parece pouco, mas é muito para o conjunto do arquipélago. A ilha que vem logo a seguir é a Terceira, com apenas 14,3 hectares. Graciosa tem 11 e São Miguel 3,5. Com castas para “vinho de cheiro”, ainda existem cerca de 300 hectares no Pico, 130 em São Miguel, outros tantos na Terceira, cerca de 50 na Graciosa, 60 em São Jorge, 30 em Santa Maria e oito no Faial.  

É em face destes números que o projecto de António Maçanita (enólogo em várias regiões do país), Paulo Machado (presidente da Comissão Vitivinícola dos Açores e proprietário dos Vinhos Ínsula) e Filipe Rocha (director da Escola de Hotelaria de São Miguel) ganha relevância. Depois de umas pequenas experiências, os três decidiram criar uma empresa para a produção de vinhos na ilha do Pico. Entre vinhas alugadas e terrenos comprados, conseguiram reunir cerca de 40 hectares. Uma parte já começou a ser reestruturada com enxertos-prontos de Terrantez do Pico, Arinto dos Açores, Verdelho, um pouco de Saborinho (variedade tinta correspondente à Tinta Negra Mole da Madeira e à Molar de Colares) e também com bacelos para replicar estas e outras castas que têm vindo a ser recuperadas.

Algumas delas, como o Terrantez do Pico (casta que não tem qualquer relação genética com o Terrantez da Madeira, que é o Folgazão do Douro), estavam quase extintas. Há meia-dúzia de anos, os Serviços de Desenvolvimento Agrário de São Miguel correram toda a ilha e só descobriram 89 plantas daquela variedade. Face ao risco de desaparecimento do Terrantez, decidiram então lançar um plano de recuperação das castas mais problemáticas através da criação de três campos experimentais: um em São Miguel para o Terrantez do Pico, outro no Pico para o Arinto dos Açores (também sem qualquer ligação genética ao Arinto do continente) e outro na Graciosa para o Verdelho (uma variedade que está ligada geneticamente à francesa Chenin Blanc, oriunda do vale do Loire).

Em 2010, Susana Mestre, a responsável pelos três campos experimentais, desafiou António Maçanita a ensaiar o Terrantez, uma casta que os viticultores se queixavam de “não amadurecer bem e de ter pouco álcool”.  O enólogo lisboeta, que tem ascendência açoriana por parte do pai, gostou do que ouviu – “Os problemas da casta eram só coisas boas”, graceja – e aceitou o repto. Nesse ano fizeram o primeiro vinho e Maçanita ficou surpreendido “com a frescura e a salinidade” do Terrantez.

A experiência voltou a ser repetida em 2011 e 2012 e em 2013 chegou ao mercado o primeiro Terrantez do Pico By António Maçanita, 646 garrafas apenas (ver caixa). No mesmo ano, Maçanita e os seus dois sócios do Pico lançaram também o primeiro Arinto dos Açores (cerca de 1500 garrafas), uma casta que dá vinhos mais robustos e potentes” do que os de Terrantez, embora esta variedade seja “mais singular”, segundo o enólogo. Na colheita de 2014, o grupo produziu brancos de Terrantez, Arinto e Verdelho, um tinto de castas estrangeiras, um rosé (chamado Rosé Vulcânico) e um espumante, no total de 10 mil garrafas.

Segundo Maçanita, os brancos estão a ser um sucesso, sobretudo na alta restauração. “Conseguimos colocar o vinho em dezenas de restaurantes com estrela Michelin da Europa”, garante.

O regresso de Anselmo Mendes aos Biscoitos

Os vinhos brancos da ilha Terceira, feitos de Verdelho, ainda não foram tão longe, mas têm o mesmo potencial, ou ainda mais, do Terrantez do Pico e do Arinto dos Açores, a avaliar pelos extraordinários Muros de Magma 2011 e 2012 lançados pela Adega Cooperativa dos Biscoitos, no concelho de Praia da Vitória. Os vinhos contaram com a assistência enológica de Anselmo Mendes e Diogo Lopes e foram o primeiro resultado palpável de uma parceria estabelecida entre os dois enólogos, aquela cooperativa e os serviços regionais de Agricultura para aumentar a notoriedade dos vinhos e incentivar os produtores a apostarem no cultivo da vinha.

Os Biscoitos são um dos lugares mais hostis para a viticultura nos Açores. As vinhas ficam mesmo situadas junto ao mar, que ali é muito bravio. Ao contrário da ilha do Pico, que é de algum modo protegida pelas ilhas vizinhas do Faial e de São Jorge, a Terceira não conta com qualquer tipo de protecção física.

Vista do alto, a paisagem de vinha dos Biscoitos é quase irreal, assemelhando-se a um campo de lava acabado de solidificar. Biscoitos é, de resto, o nome que se dá à terra queimada nascida dos vulcões.

Muitas das zonas pedregosas de basalto preto situadas junto ao mar são fajãs formadas pelas lavas provenientes de erupções vulcânicas. Por serem terras pobres e de difícil granjeio, eram utilizadas para o cultivo da vinha. Para a cultura ser viável foi necessário proteger as videiras das intempéries através da construção de curraletas. Ao crescerem entre as pedras, aproveitando as fendas existentes na camada fina de basalto, as videiras ficam protegidas dos ventos salgados do mar e vão recebendo a energia solar necessária à maturação dos cachos.

Cada curraleta pode levar entre seis a dez videiras (muitas levam menos), que crescem sem qualquer aramação junto ao solo. São suportadas por tinchões, pequenos ramos de urze que evitam o contacto dos cachos com a terra pedregosa e proporcionam uma melhor incidência da luz solar.

Não há qualquer racionalidade económica nesta luta constante contra a natureza adversa, apenas a poesia própria da luta pela subsistência e pela manutenção de uma paisagem que existe desde o início do povoamento da ilha e que tem resistido a todo o tipo de intempéries, desde sismos a ciclones.

A maior ameaça era imobiliária, o que levou o governo açoriano a criar a Área de Paisagem Protegida das Vinhas dos Biscoitos (165 hectares), incluindo-a no Parque Natural da Terceira, e a apoiar a recuperação de curraletas abandonadas e infestadas de incenso. Ao mesmo tempo, financiou a construção da Adega Cooperativa dos Biscoitos, que, com o declínio da Casa Agrícola Brum, passou a absorver a quase totalidade da produção de uvas da ilha. Em anos normais, a produção de Verdelho ronda os 10 mil litros, todos destinados ao vinho Magma, um branco fantástico face ao que custa (cerca de 7 euros). A partir de 2011, com a ajuda de Anselmo Mendes e Diogo Lopes, a cooperativa lançou o Muros de Maga, um branco de produção reduzida 2100 garrafas) que elevou os vinhos dos Biscoitos a um outro patamar.

Com as mudanças na secretaria regional de Agricultura, o projecto foi suspenso e o vinho não foi feito em 2013 e 2014. A boa notícia é que a partir desta vindima os enólogos Anselmo Mendes e Diogo Lopes vão voltar a colaborar com a adega cooperativa, nas mesmas condições de anteriormente: apenas lhes pagam as viagens de avião e a estadia. Se tudo correr bem, em 2016 vai voltar a haver Muros de Magma. E, como aconteceu com as duas primeiras colheitas, o vinho vai desaparecer num ápice.

Dois vinhos exemplares

Muros de Magma 2011
Foi o primeiro Muros de Magma, que só voltou a ser feito em 2012. Se alguém ainda conserva alguma garrafa, pode dar-se por feliz, porque poderá beber um branco muito bom e ligado a uma história e um contexto emocionantes. Incorpora os melhores lotes de Verdelho que entraram em 2011 na Adega Cooperativa dos Biscoitos e foi fermentado parcialmente em barricas novas de carvalho francês. Volumoso e sedoso na boca, é muito fresco e possui uma secura e uma salinidade fenomenais. Preço: 20 euros

Terrantez do Pico By António Maçanita 2013
Um quarto do lote fermentou e estagiou durante nove meses em barrica com batonnage semanal. Aroma com algum citrino amargo, notas iodadas e um pouco de fruta tropical. Na boca, mostra-se muito salino, terminando de forma muito fresca. Um branco não muito complexo mas realmente original.
Preço: 25 euros

O Vinhos de Portugal regressa ao Rio de Janeiro, de 22 a 24 de Maio, no Jockey Club.

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