Fugas - Vinhos

Alentejo, terra de diversidade

Por Rui Falcão

'Caímos facilmente no erro de julgar o Alentejo como um todo uno e indivisível, como uma realidade pintada a uma só cor, como uma paisagem monótona, constante e intemporal.'

Sempre que se analisa ou se fala sobre o Alentejo, é fácil ficar refém das armadilhas dos inevitáveis estereótipos que muitos teimam em manter associados à região. Basta falar no nome Alentejo para a maioria dos portugueses criar imagens espirituais de planícies suaves ondulantes, lembranças de sobreiros e olival, imagens de uma terra plana, quente e soalheira com herdades imensas de perder a vista.

Terra quente de verões sufocantes, região de canícula prolongada e períodos de seca dilatada, terra de gente tranquila que nem nos tempos mais difíceis perdeu a dignidade.

Se a conversa reverter para o vinho mantêm-se os clichés e os preconceitos, positivos ou negativos, materializados numa espécie de imaginário colectivo que gosta de acreditar que os vinhos alentejanos mostram-se suaves, fáceis e aveludados, vinhos tendencialmente frutados e directos na abordagem, sedutores e aprazíveis embora simples, cálidos e voluptuosos com um final ardente e adubado. Caímos facilmente no erro de julgar o Alentejo como um todo uno e indivisível, como uma realidade pintada a uma só cor, como uma paisagem monótona, constante e intemporal. Muitos acreditam, do alto do seu preconceito, que os vinhos alentejanos são uniformes, elaborados num estilo homogéneo e mais ou menos equivalente, sem cambiantes no registo ou sem desvios radicais de um modelo padrão cinzentão, sem desencontros ou discordâncias assinaláveis.

Dificilmente poderíamos cometer maior erro de apreciação. O Alentejo está muito longe da uniformidade e monotonia que lhe queremos colar. Um breve instante de reflexão será suficiente para compreender que dificilmente poderia ser de outro modo, sobretudo num território que ocupa quase um terço do território continental de Portugal, superfície suficientemente ampla para facilitar cambiantes, alterações, matizes e nuances mais ou menos radicais. Dentro do território alentejano podemos encontrar climas de perfil e comportamento marcadamente continental, condições que impõem verões escaldantes e invernos por vezes gélidos, ao mesmo tempo que o Alentejo litoral beneficia da suavidade que a massa atlântica consegue imprimir, forçando uma influência atlântica que permite primaveras e verões temperados com valores de humidade substancialmente superiores, seguidos por invernos suaves e sem os picos extremos das regiões mais a interior.

No Alentejo podemos encontrar serras e vales, planícies e encostas espalhados por uma multiplicidade de solos que incluem calcário ou xisto, mármore e granito, barro ou areia. No Alentejo podemos sofrer em qualquer momento com a ardência do calor, com o tormento do tempo extremamente quente e seco ou usufruir da frescura proporcionada pela altitude das terras mais altas, com a humidade e a brisa retemperadora que o alto das serras proporciona. Podemos esbarrar com territórios ressequidos, secos e sem gota aparente de água, pelo menos superficial, terras onde a vida queda penosa e a produtividade se ressente abraçando rendimentos desoladores... da mesma forma que facilmente podemos tropeçar em territórios húmidos de terras alagadas, faixas férteis e extremamente produtivas onde os rendimentos são encorajadores.

A diversidade dentro da região é tal que, no mesmo território administrativo, podemos encontrar lavouras de sequeiro, longas planuras quase despojadas de coberto vegetal e em situação quase pré-desértica até manchas alentejanas fortemente arborizadas, ocupadas não só por montado mas também por manchas de pinhais e olivais. Em áreas mais específicas chega-se ao limite de encontrar largas tranches do território dedicadas ao cultivo do milho e arroz, duas das culturas agrícolas mais exigentes e devoradoras de água.

Sim, é verdade que é possível descobrir propriedades alentejanas de dimensão imensa na amplitude territorial, pelo menos quando apreciadas à escala nacional, herdades e montes onde em alguns locais se estendem extensões de vinhedos a perder de vista, apesar de nem todas as vinhas alentejanas se incluírem na mesma dimensão. Cada vez mais abundam as pequenas vinhas e os produtores de dimensão modesta no volume, pequenas explorações que se entregam a escalas de produção mais comedidas. Movimento que é especialmente visível nas vinhas da serra de São Mamede, em Portalegre, região onde as vinhas dispersas são a norma e onde a propriedade se encontra profundamente emparcelada.

No Alentejo existem muitas vinhas jovens e modernas na concepção, conduzidas segundo as técnicas mais recentes e por vezes radicais, envoltas numa macedónia de variedades clássicas alentejanas, castas portuguesas vindas de outras regiões e variedades estrangeiras que em alguns casos mostraram uma adaptação brilhante. Mas também avistamos pequenas parcelas de vinhas plantadas de formas mais tradicionais, algumas delas velhas ou muito velhas, pequenos vinhedos diminutos na vastidão territorial mas importantes pela preservação do património genético do passado, o único garante de um futuro ainda mais promissor.

Algumas destas vinhas e variedades continuam ainda hoje a ser desvalorizadas, apesar de se começarem a sentir os primeiros ventos de mudança numa tentativa de resgatar do esquecimento esta riqueza suspensa. Quantas castas alentejanas, quantas variações e quantos clones foram perdidos durante a malfadada campanha cerealífera do Estado Novo? E quantas castas poderíamos ainda resgatar do esquecimento se prestássemos atenção ao património genético que ainda resiste em muitas destas vinhas velhas, algumas delas em estado de relativo abandono?

Mais que um único Alentejo, deveríamos antes falar do Alentejo como uma região que se singulariza pelas múltiplas personalidades e pelas diferenças notáveis entre as sub-regiões. Os vinhos alentejanos estão muito longe de apresentar um discurso clássico e monocórdico. 

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