Fugas - Vinhos

ADRIANO MIRANDA

Vinho natural?

Por Rui Falcão

Ao contrário do que tantas vezes se repete com convicção e exaltação, o vinho não é um produto natural, pelo menos da forma como tantas vezes o entendemos e descrevemos. Talvez seja um pouco chocante, mas o vinho não é mais que uma etapa transitória na transformação do mosto em vinagre, uma fase efémera que implica manipulação e tomadas de decisão activas.

O papel do enólogo é realizar todos os esforços para criar um vinho o mais apetecível possível com as uvas que dispõe, procurando prolongar ao máximo a vida dos vinhos que elabora antes que chegue o período de decadência que é simplesmente inevitável.

Cada vez mais gostamos de falar de vinhos naturais, de intervenções minimalistas, de adegas desenhadas e sacrificadas para trabalhar exclusivamente com a gravidade, de leveduras naturais, de ausência total ou no minimalismo absoluto na utilização de sulfuroso ou outros conservantes naturais, repetindo frases sem sentido que se apoiam no sentido poético que os melhores vinhos se fazem a si próprios por intervenção divina e sem necessidade de interferência humana.

Uma visão romântica do vinho que gostamos de alimentar na sua versão mais encantadora mas que na prática tem pouco a ver com a realidade. Esquecemo-nos com frequência que a única consequência natural da fermentação espontânea e sem regras é o vinagre. O vinho advém necessariamente da intervenção regrada e metódica do homem, podendo ser ela mais activa e impositiva ou mais relaxada e menos intervencionista, mais industrial e interventiva ou mais sensível e natural. O vinho é sempre consequência directa de um número infinito de decisões que têm de ser tomadas atempadamente, decisões que influenciam e determinam de forma peremptória o perfil e estilo de cada vinho.

Por isso é tão estranho, e ao mesmo tempo tão interessante, o debate que se instalou entre os defensores dos vinhos ditos naturais face aos que são referidos como industriais, todos aqueles que não seguem os preceitos mais ou menos empíricos do que um pequeno grupo convencionou chamar vinhos naturais. O que mais incomoda no grupo dos defensores dos vinhos naturais é a postura de superioridade moral e o proselitismo que acompanha a fé, uma crença absoluta que os vinhos naturais são os únicos verdadeiros e puros, implicando que os restantes vinhos disponíveis, 99% da produção mundial, são vinhos industriais e de perfil imoral, vinhos aborrecidos e corrompidos pela intervenção do homem.

Claro que existem vinhos de perfil industrial, vinhos que de tão manipulados e despidos do conceito de origem pouco ou nada traduzem do local onde nasceram as uvas. Claro que existem vinhos de intervenção tão marcante que conseguem acabar iguais todos os anos, independentemente das condicionantes do ano agrícola e das cambiantes do tempo. Claro que existem vinhos que resultam da mistura de uvas de tantas procedências que tentar adivinhar a sua origem seria tarefa absolutamente impossível.

Tal como a fast food é parte integrante das nossas vidas, também os fast wine, vinhos simples e directos sem qualquer prova de subtileza, fazem parte da nossa realidade. Destinam-se a consumidores menos exigentes e mais adeptos de um sabor único e global que seja de percepção fácil, sabores simples e adocicados que mostram o óbvio e escondem todos o que possa ser complicado ou diferente. Vinhos mais baratos, de produção em massa e perfis constantes e consistentes, vinhos sem alma e sem grandes quesitos para satisfazer no imediato.

Mas tal como existem vinhos industriais de perfil absolutamente asséptico, também existem vinhos auto-intitulados naturais que revelam um perfil rebarbativo e repleto de pequenos e grandes defeitos que há muito julgávamos ultrapassados. Não basta acenar com a bandeira da alegada pureza de processos para que os vinhos passem automaticamente a ser graciosos. Seria maravilhoso e poético que os vinhos naturais conseguissem ser maravilhosos só pelo conceito filosófico em si… mas infelizmente a realidade costuma ser bastante mais cruel que as boas intenções.

Sim, existem vinhos naturais excelentes, tal como existe uma maioria de vinhos que se colocam fora do guarda-chuva dito “natural” que alcançam o mesmo patamar de excelência. Mas a maioria dos vinhos naturais continua infelizmente a apresentar-se como uma montra de problemas e defeitos, cobrança natural de práticas duvidosas que só a fé pode sancionar. Defeitos e problemas que seriam suficientes para crucificar qualquer vinho “normal” mas que são automaticamente perdoados e em muitos casos até valorizados quando aplicados aos vinhos ditos naturais.

Agricultura sustentável, viticultura orgânica e demais procedimentos de responsabilidade ambiental na prática agrícola da vinha são fundamentos que não só não merecem qualquer contestação como são merecedores dos maiores louvores e entusiasmo, devendo ser incentivados. Tudo aponta para um aprofundamento dessa direcção, desde a responsabilidade que temos para com as próximas gerações como na qualidade da fruta consequente das práticas da agricultura orgânica. Cada vez mais produtores e viticultores aderem a modelos de regime de protecção e produção integrado, agricultura orgânica ou biodinâmica.

Mas a agricultura sustentável e a responsabilidade ambiental não devem ser confundidos com a produção de vinhos ditos naturais. Se a agricultura orgânica é mais que desejável ,o conceito é muito mais estrito na adega. A vinha é do domínio da natureza… mas a adega é do domínio do homem. Todas as intervenções na adega representam isso mesmo, uma intervenção humana que impede o vinho de seguir maus caminhos e de acabar em vinagre ou algo pior. O vinho é uma criação sublime da civilização, não da natureza.

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