Fugas - Vinhos

Dimitar Dilkoff/Reuters

Uma forma diferente de olhar para o vinho

Por Rui Falcão

Portugal é, indiscutivelmente, um dos países clássicos do mundo do vinho, um dos incontornáveis da história vínica, um dos países produtores mais antigos e com maior influência directa e indirecta na produção do vinho.

Apesar de com frequência valorizarmos em excesso o protagonismo nacional ou a nossa capacidade de influência efectiva, que são muito menores do que instintivamente pensamos, Portugal é um país onde o vinho faz seguramente parte do quotidiano, um país onde o vinho é algo tão natural que raramente sentimos necessidade ou vontade de nos debruçar sobre outras realidades.

Para muitos outros países, alguns dos quais estão hoje no centro do mundo vínico e são infinitamente mais considerados e valorizados que Portugal, países como os Estados Unidos da América, Chile, Argentina, Austrália, Nova Zelândia ou África do Sul, a história do vinho é ainda uma realidade relativamente recente quando comparada à escala europeia. Talvez por isso esses países sintam menos tabus, gozem de regras mais simples e sofram de menos preconceitos. Mas também por isso, por uma mistura de desconhecimento, falta de preconceitos e insensibilidade ao excesso de manipulação, por vezes esses países apresentam vinhos que para nós, europeus, seriam quase ofensivos de tão infelizes e artificiais.

Entre os mais useiros nesse tipo de “vinhos”, ou talvez, numa definição mais correcta, bebidas alcoólicas onde o mosto da fermentação das uvas também está presente, encontram-se os Estados Unidos da América, país que continua a privilegiar um estilo de “vinho” pouco ortodoxo, os bum wine. “Vinhos” aromatizados, doces, enriquecidos e fortificados, com teores alcoólicos que geralmente se situam algures no intervalo 13% a 20%. Apesar de tradicionalmente usarem uvas como base, embora não exclusivamente nem obrigatoriamente, esses “vinhos” contam ainda com a adição de açúcar, ácido cítrico, aromatizantes, corantes e muito álcool, mistura pouco recomendável e ainda menos apetecível.

Para além de referências de nomes românticos e categóricos como Cisco Strawberry, MD 20/20 ou Wild Irish Rose, os nomes mais sonantes no mercado são Night Train Express e sobretudo Thunderbird, um verdadeiro clássico americano, como o rótulo se encarrega de atestar. Este último, o Thunderbird, é um dos “vinhos” mais vendidos e de rotação mais rápida, um “vinho” fortificado e muito doce que é vendido a preços que raramente ultrapassam em muito os dois dólares.

Apesar de a informação não estar explícita nem implícita no rótulo do “vinho”, o Thunderbird é produzido pela E. J. Gallo, um dos maiores produtores em volume de vinho e bebidas espirituosas do planeta, uma empresa sediada na Califórnia mas que já estendeu os seus tentáculos a outros países de diferentes continentes. Não deixa de ser curioso que a segunda marca mais importante deste sector de mercado, a Night Train Express, também seja propriedade do mesmo grupo.

Na verdade, o Thunderbird é bastante antigo, tendo germinado da legítima aspiração da Gallo de se transformar num dos maiores produtores de vinho dos Estados Unidos. A ideia para o “vinho” surgiu logo após o período proibicionista, que criminalizou a venda de álcool e que tinha afundado a então ainda incipiente indústria vinícola norte-americana. Os irmãos Gallo acreditaram que o vinho passaria rapidamente a ser um produto iminente nos hábitos norte-americanos decidindo apostar na sua legitimação e popularização oferecendo vinhos baratos, simples, doces e fáceis de entender para quem se iniciava nas andanças do vinho.

Segundo os irmãos Gallo, o vinho teria de ser equiparado à fastfood, vendido em pacotes ou garrafões baratos, elevando ou degradando o vinho ao papel de um produto industrial barato que fosse possível de encontrar em qualquer balcão de mercearia, tabacaria ou bomba de gasolina. Vinhos com aromas artificiais, corantes, açúcar e muito álcool que cumprissem a sua função etílica rapidamente e sem subterfúgios ou rodriguinhos.

Um dos muitos mitos urbanos associados ao Thunderbird garantia que língua e gengivas ficariam com uma tonalidade enegrecida se consumido em excesso, fruto dos muitos aditivos químicos acrescentados ao vinho. O baixo preço base explica-se não só pelos muitos aditivos acrescentados, infinitamente mais baratos que o preço das uvas, mas também pelo tamanho demencial das vinhas, pelas práticas agrícolas muito pouco sustentáveis e pela economia de escalas que assim se conseguem obter. Basta referir que em muitas das vinhas usadas para a produção deste estilo de “vinhos” as máquinas de vindima percorrem distâncias numa só linha que se podem estender a mais de cinco quilómetros…

Não me é fácil descrever o “vinho” pontuado por uma doçura hedionda, uma textura equiparável a um xarope e onde nada mais se consegue sentir para além de notas de doce de laranja, milho doce e de um calor intenso proporcionado por um álcool desagradável e completamente divorciado do “vinho”.

Mas não se pense que este estilo de vinho é exclusivo do continente americano. Afinal, um dos produtores de maior sucesso é europeu, sendo propriedade de um mosteiro beneditino inglês, a Abadia de Buckfast. O Buckfast Tonic Wine é vendido como vinho medicinal, sendo engarrafado em formatos e garrafas diferentes consoante as distintas regiões inglesas. Mais uma vez o “vinho” é enriquecido com diversos aditivos, entre os quais cafeína e sal. Segundo algumas análises, cada garrafa de Buckfast Tonic Wine apresentava uma concentração de cafeína superior ao já de si famoso Red Bull, bebida conhecida pelo elevadíssimo teor de cafeína incluída.

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