Fugas - Vinhos

Carlos Lopes

O orgulho da Madeira

Por Rui Falcão

Há que reconhecer que os vinhos da Madeira não são fáceis ou condescendentes, não são vinhos dóceis e de apelo imediato, carregados de fruta instantânea e de sabores simples ou evidentes.

Os vinhos da Madeira não são vinhos directos e de gratificação imediata, delicados e polidos, formatados para a recompensa de curto prazo. Os vinhos da Madeira personificam exactamente o oposto exprimindo-se através de uma rispidez pouco comum, apresentando-se como a imagem perfeita do vinho no seu estado mais puro, duro e tenso, acercando-se com alguma assiduidade da quase brutalidade na intensidade e veemência de carácter.

Num mundo que continua a primar por privilegiar os gostos simples e directos, fortes e óbvios, marcantes e de apreensão ou memorização fácil, sem subtilezas nem arestas, o Vinho da Madeira não pode aspirar, infelizmente, a deixar de ser uma espécie de outsider destinado a um vinho de nicho de mercado, aos conhecedores e apaixonados capazes de compreender e valorizar todas as suas particularidades e excentricidades.

Nem poderia ser de outra forma tendo em conta a dimensão exígua que a vinha ocupa na Ilha da Madeira com uma área que não ultrapassa os 500 hectares. Uma condição natural que implica que a capacidade e oportunidade de produção serão sempre limitadas. Muito mais que o volume, uma realidade para a qual a Madeira não tem nem vocação nem aptidão natural, é nos vinhos especiais que a aposta tem de ser materializada exaltando as categorias especiais como o motor que ajudará a potenciar a região.

Mas, curiosamente, e sempre que falamos de categorias especiais, temos tendência para fixar a atenção nos Frasqueira, nesses vinhos míticos que sabemos serem a melhor e mais fidedigna representação do ideário e do potencial do Vinho da Madeira. A presença de uma data, um ano de colheita, uma indicação inquestionável sobre a idade do vinho representa uma atracção imediata e insuperável. O ensejo de provar um vinho de outro século, vinhos centenários como acontece ocasionalmente com os vinhos da Madeira, é algo a que ninguém, por mais fleumático ou por mais experiência acumulada de que disponha, consegue resistir.

Uma realidade que reduz quase ao esquecimento os vinhos com indicação de idade da lista de prioridades de muitos especialistas, críticos, sommeliers ou comerciantes, mas também da lista de apetência de tantos consumidores. Desta infeliz realidade redunda uma tragédia efectiva porque, apesar de esquecidos, os vinhos da Madeira com indicação de idade conseguem ser tão maravilhosos, fascinantes e pungentes quanto os melhores Madeira Colheita ou Frasqueira.

A legislação não é simples, aparecendo segmentada entre demasiadas categorias, que se dividem entre os três, cinco, dez, quinze, vinte, trinta, quarenta e acima de cinquenta anos. O grosso da produção, como seria expectável, centra-se no mundo mais circunscrito e acessível dos vinhos de três e cinco anos, aqueles que ajudam a pagar as contas e a contornar eventuais problemas de tesouraria aos poucos produtores de Vinho da Madeira.

Se os vinhos de três anos são na sua maioria correctos, dificilmente poderão acrescentar alegria infinita aos verdadeiros aficionados do Vinho da Madeira. Mas a categoria seguinte, cinco anos, já consegue oferecer vinhos que logram espelhar a magia do vinho da Madeira. Por regra, mas não fatalmente, os vinhos das categorias três e cinco anos assentam na variedade Tinta Negra, a casta mais moldável da Madeira e aquela que melhor se presta à subdivisão tradicional dos vinhos da Madeira em quatro graus de doçura, variando entre o seco, meio-seco, meio-doce e doce, emulando o registo tradicional das quatro castas mais conhecidas da Madeira, respectivamente Sercial, Verdelho, Boal e Malvasia.

A categoria dos dez anos representa claramente a charneira nos vinhos da Madeira com indicação de idade, determinando o primeiro patamar na entrada dos vinhos de categoria superior. Embora nada o obrigue na lei, a maioria dos produtores cinge-se às castas tradicionais, prometendo as quatro castas usuais em detrimento da Tinta Negra.

Mas são as categorias subsequentes, quinze, vinte, trinta, quarenta e cinquenta anos, esta última ainda sem candidatos, que verdadeiramente nos elevam ao céu. Nestes patamares, o carácter e a qualidade são certezas mais que garantidas e absolutas. Infelizmente, mas como não poderia deixar de ser, estas graduações qualitativas representam um valor ínfimo do volume e facturação dos produtores, anunciando-se como quase irrisórias para a contabilidade dos poucos produtores de Vinho da Madeira… embora determinantes no prestígio e imagem emocional.

Não é fácil marcar presença neste escalão dos vinhos de idade avançada. Acima de tudo por razões de razoabilidade económica, pela dificuldade em desviar vinhos raríssimos para uma família que infelizmente oferece menos garantias económicas que os Frasqueira. O mercado global sente muito mais apetência por um vinho de uma só colheita e que revele uma data no rótulo que por um vinho com indicação genérica de idade. Criar o lote ideal de um vinho de trinta anos ou quarenta anos, obrigando a recorrer ao stock de vinhos muito velhos, desbaratando num lote um vinho que poderia vir a ser comercializado como Frasqueira é uma operação arriscada e financeiramente pouco atraente.

Tal realidade significa que os vinhos com indicação de idade vivem num limbo de difícil resolução, sem o estatuto de estrelato que lhes permita atingir um preço justo para vinhos excepcionais e de idades tão avançadas. Só mesmo o orgulho e a vontade explícita de criar um vinho especial poderiam servir como motivação para a sua execução. Felizmente ainda há gente assim, produtores capazes de proporcionar vinhos de sonho que desafiam a lógica empresarial pura e dura.

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