Fugas - Vinhos

MANUEL ROBERTO

Os 25 anos de um vinho que marcou o Douro

Por Manuel Carvalho

Em 1990 nasceu o Duas Quintas, um vinho que inspiraria a revolução dos DOC Douro que se seguiu. Meio século mais tarde, o seu criador, João Nicolau de Almeida, prepara-se para deixar a Ramos Pinto com um legado de vinhos que tanto se apreciam na juventude como exibem uma soberba capacidade de resistir ao tempo.

Não há-de haver muitos casos em que uma empresa dá liberdade de acção ao enólogo para arriscar, o enólogo cria uma marca e dá origem a uma fórmula que estimularia uma mudança profunda numa região. No Douro foi isso que aconteceu há 25 anos, quando a Ramos Pinto deu luz verde a João Nicolau de Almeida para avançar com a primeira edição do Duas Quintas. Num ápice, o vinho tornou-se o ícone de uma nova identidade do Douro e serviu de lastro para a moderna geração de DOC que mudaram por completo a face de uma região até então focada no vinho do Porto. Pode ser exagerado dizer que o papel de João Nicolau de Almeida foi tão revolucionário como o do seu pai, o criador do mítico Barca Velha nos anos de 1950, mas o seu Duas Quintas é sem dúvida um marco fundamental da revolução que varreu o Douro no último quarto de século.

Há vários anos que João e o seu tio José Rosas estudavam castas e faziam ensaios com o objectivo de se aventurarem nos DOC Douro. João chegara à Ramos Pinto em 1976 e boa parte do seu tempo desde então fora investido no estudo da vinha, o que contrariava a tradição dos enólogos das casas de Gaia, sempre mais atentos aos aromas das caves que ao comportamento das plantas. Quando estava tudo preparado para dar o salto nos DOC Douro, em 1990, a empresa francesa de Champanhe Louis Roederer adquire a maioria do capital da Ramos Pinto. Não seria essa mudança a parar os planos. Os franceses dão ordens de avançar.

Em 1990, as chuvas no Douro concentraram-se nos meses de Inverno, a Primavera e o Verão foram secos e os mostos ficaram com pouca acidez até que, na segunda quinzena de Setembro, o regresso da precipitação garantiu às uvas uma maturação mais equilibrada. João Nicolau de Almeida e a sua equipa escolheram o lote final do primeiro Duas Quintas nas quintas de Ervamoira e de Bons Ares. A casta eleita para dominar o lote foi a Touriga Franca (50%), uma hegemonia que duraria até 2011, ano em que, finalmente, a nova estrela da vinha duriense, a Touriga Nacional, se tornou a variedade com mais peso. Apenas 20% do lote final passou por barricas de carvalho português com dois ou três anos de uso.

O Duas Quintas de 1990 surgiu no mercado em 1992 como um relâmpago. Mas esteve quase para se tornar um desastre. “Depois do engarrafamento veio um frio terrível e o vinho congelou”, diz João Nicolau de Almeida. Foi necessário recuperar 60 mil garrafas uma a uma. Sem danos para a qualidade. O Duas Quintas teve assim uma primeira oportunidade de causar uma primeira boa impressão. Tornou-se rapidamente moda, o símbolo de um vinho complexo, sofisticado, a expressão de um Douro moderno que estava a nascer. Nos anos de 1990, quando as feiras de vinhos dos hipermercados se tornaram um acontecimento, era normal haver limites ao número de Duas Quintas que se podiam adquirir.

O sucesso da estreia alarga rapidamente o âmbito da gama, com a chegada ao mercado do branco e do Reserva. O Reserva de 1994 foi um dos grandes vinhos portugueses dos anos de 1990, pela sua elegância e complexidade. O Reserva Especial, que nasce em 1995 com uma edição memorável, procurava recuperar a velha tradição duriense de pisas prolongadas e tornou-se o emblema de um Douro opulento, com uma estrutura de taninos que exige mais de uma década a moldar – ainda hoje, quando se consegue uma garrafa nas condições ideais, constata-se que é um dos grandes tintos durienses de sempre. O Duas Quintas triunfava definitivamente. João Nicolau de Almeida é eleito em 1998 como o “homem do ano” da Wine and Spirits e considerado um dos “50 enólogos mais influentes do mundo”.

Ainda hoje essas primeiras edições de Duas Quintas impressionam. Numa prova organizada para celebrar os 25 anos da marca foi possível constatar que são vinhos com uma extraordinária longevidade, quer os tintos quer os brancos — o 1994 branco é ainda hoje um belo exemplo de frescura temperada pelo tempo. O Duas Quintas clássico de 1992, de 1994 e de 2000 estão magníficos. E sim, o reserva de 1994, provado numa magnum (garrafa de 1,5 litros) permanece extraordinário. Nota-se que ao longo do tempo houve uma evolução na escolha de castas ou no uso da madeira, mas como linha condutora o Duas Quintas conservou o seu balanço entre a elegância que os torna fáceis de beber jovens e o músculo que os faz crescer com o tempo.

Numa entrevista à Fugas em Novembro do ano passado, João Nicolau de Almeida explicava a ideia deste balanço: “Um vinho que seja bom e bem feito pode ser bebido em novo e pode envelhecer na mesma. O que é preciso é ter boas uvas, saber fazer as boas extracções. Um vinho grosso e cheio de taninos não quer dizer que vá envelhecer melhor que um vinho do qual se extraíram os bons taninos, os taninos maduros, os taninos das películas. Esse vinho vai ter longevidade e a prova que eu tenho é que os vinhos feitos assim são equilibrados no início e assim continuam. A luta da minha vida de enólogo é esta. Hoje já posso pegar num Duas Quintas Reserva de 1992, que era delicadíssimo, e dizer: provem-no.”

Um quarto de século depois do primeiro vinho-símbolo de um novo tempo no Douro, João Nicolau de Almeida fez a sua última vindima e prepara-se para entrar na reforma. O seu novo projecto, que partilha com os filhos, é o Monte Xisto. Para trás ficam décadas de grandes Porto e o testemunho de uma marca de DOC Douro que consegue exprimir muitas das melhores facetas da região. Há 25 anos, o que começou como um rasgo tornou-se hoje uma certeza. Sim, com boas empresas, bons enólogos e boas uvas, até parece fácil.

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