Fugas - Vinhos

Rui Soares

Alentejo, terra plural

Por Rui Falcão

"O Alentejo oferece muitas esquinas, muitas personalidades e muitos feitios. Algumas dessas faces, as menos tradicionais, raramente estão representadas no estereótipo do Alentejo, um Alentejo diferente que se aparta dos chavões do costume". Crónica de Rui Falcão

Quando falamos do Alentejo costumamos refugiar-nos de imediato nos estereótipos habitualmente associados à região, imagens de terra plana e de espaços generosos, desenhos mentais de planícies suaves e ondulantes povoadas por sobreiros.

Uma representação permanente de terra soalheira com herdades imensas que se estendem até perder de vista numa região afagada por verões sufocantes e uma canícula insuportável. Para os amantes da região, o Alentejo é igualmente uma terra de gente digna e tranquila.

Quando a discussão se aproxima do vinho, os clichés tornam-se mais uma vez recorrentes no imaginário, prontos a falar sobre vinhos suaves e aveludados, quase sempre com incidência nos tintos, vinhos fáceis e frutados, sedutores e aprazíveis, cálidos e voluptuosos, embora sempre num registo fácil e guloso.

Desde cedo habituámo-nos a julgar o Alentejo como um todo indivisível, como uma realidade única e monolítica, como uma paisagem constante e imutável. Habituámo-nos a olhar para o Alentejo como uma região onde o estilo dos vinhos seria monótono, monocórdico e mais ou menos comparável, sem cambiantes ou desvios drásticos, sem divergências assinaláveis. E, no entanto, dificilmente poderíamos estar mais equivocados sobre uma região.

O Alentejo e os seus vinhos estão longe da uniformidade e monotonia que muitos lhe querem associar. Uma realidade que na verdade não carece de grande explicação e que dificilmente poderia ser justa. Basta relembrar que o Alentejo representa quase um terço do território corpóreo do continente, área mais do que suficiente para potenciar as inúmeras variantes, alterações, tonalidades, matizes e cambiantes em que se divide a geografia nacional.

No Alentejo podemos descobrir climas de matriz claramente continental, com verões extremados, quentes e secos, a par de invernos gélidos. Mas poderemos também descobrir uma orla costeira de influência marítima explícita, com verões temperados e húmidos, seguidos por invernos suaves e relativamente amenos. No Alentejo encontramos áreas de serra e vales, zonas de montanha de encostas abruptas e escarpadas e territórios dominados pelas longas planícies. No Alentejo poderemos encontrar solos calcários e de barro, muito xisto, mármore granito areia ou solos pardos muito antigos.

No Alentejo podemos sofrer com a ardência do calor inclemente, com o inferno do tempo quente e seco sem ponta de humidade… ou refrescar-nos com a frescura das terras altas, com a humidade e a brisa retemperadora do alto das serras, com as brisas marítimas que refrescam as zonas costeiras. Podemos esbarrar em regiões ressequidas e sem gota de água superficial, territórios mal povoados de vida penosa, solos pobres e produtividade quase nula ou tropeçar em zonas húmidas e alagadas, zonas férteis e produtivas que se dedicam às culturas do arroz e milho. No Alentejo avistamos a sul lavouras de sequeiro, longas planuras quase despojadas de coberto vegetal, enquanto a norte poderemos descobrir manchas arborizadas, terras de pinhal e montados que afastam o estereótipo associado à região.

Podemos encontrar herdades impressionantes na extensão, vinhas colossais que se estendem até onde a vista alcança, ao mesmo tempo que avistamos pequenas hortas, vinhas de projectos pequenos que por vezes desafiam a lógica financeira. Podemos encontrar muitas vinhas jovens conduzidas de forma moderna e segundo as tendências da moda a par de vinhas muito velhas, algumas delas sem condução aparente e dispostas individualmente em taça, mantendo o aspecto de um classicismo desmesurado.

No Alentejo podemos encontrar vinhas recheadas por uma macedónia de castas regionais e provenientes de outras paragens, variedades nacionais ou estrangeiras, a par com algumas das resistentes regionais hoje quase perdidas e frequentemente desvalorizadas. Uma diversidade notável que não esconde uma preocupação natural sobre quantas variedades alentejanas terão sido perdidas durante a malfadada campanha cerealífera do Estado Novo? Mas também uma diversidade que tem vindo a ser preservada e resgatada do esquecimento graças ao empenho dedicado de um pequeno grupo de pequenos e grandes produtores da região que não poupam esforços para defender o património genético alentejano.

Falamos do Alentejo como se fosse uma só realidade, usamos a palavra no singular quando na verdade deveríamos falar do Alentejo no plural. Referimo-nos ao Alentejo como o grande sul, esquecendo-nos que geograficamente uma parte significativa do Alentejo reside no centro de Portugal. Basta pensar que Borba se situa a norte de Lisboa ou que Portalegre se situa mais a norte que a cidade de Santarém.

O Alentejo oferece muitas esquinas, muitas personalidades e muitos feitios. Algumas dessas faces, as menos tradicionais, raramente estão representadas no estereótipo do Alentejo, um Alentejo diferente que se aparta dos chavões do costume. Existe o Alentejo das searas e dos olivais, o Alentejo fresco mas seco, o Alentejo das terras do Norte mas também o Alentejo raiano de terras recentemente desbravadas que não tinham tradição na vinha. Existe o Alentejo das montanhas, as serras de solos rochosos e paupérrimos mas de clima fresco e húmido, de água pródiga e de longa tradição na vinha. E existe ainda um Alentejo da água farta e copiosa, o Alentejo da exuberância do verde e do barro onde a vinha cresce e floresce com a vista dos arrozais a pontuar o horizonte.

Um Alentejo de concepções divergentes que alarga os conceitos e fundamentos da região ilustra a diversidade da região que garante que os vinhos alentejanos estão longe de apresentar um discurso monocórdico.

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