Fugas - Vinhos

O novo Alentejo visto a partir do Arrepiado Velho

Por Manuel Carvalho

A herdade do Arrepiado Velho é uma das muitas propriedades alentejanas que nas duas últimas décadas se converteram à produção de vinho. Sendo jovem, os sinais que chegam deste projecto são promissores. Dos Riesling ao Collection, um blend dominado pela Touriga Nacional, fazem-se por lá vinhos que merecem ser conhecidos.

A curta distância de Sousel, no sul do distrito de Portalegre, há uma vasta mancha cor de pastel das vinhas no Outono que se destaca na paisagem ondulante de sobreiros, azinheiras e terras arroteadas para o cultivo de cereal. Numa estrada secundária que sai da vila alentejana, encontra-se a certa altura uma placa que indica à direita o nome dessa herdade que rasga a tradição agrícola da região e fez do seu nome um novo emblema do vinho: Arrepiado Velho.

Como tantas outras empresas que nas últimas décadas tornaram o Alentejo uma potência vinhateira no plano nacional, a Herdade do Arrepiado Velho tem uma visão aberta do vinho, tem saber sobre a vinha e competência no vinho ou uma estratégia de mercado. Mas tem mais: tem uma ideia própria sobre os vinhos que quer fazer e sobre os caminhos que vai percorrendo até lá chegar. E tem também uma imagem de marca que a situa algures entre o perfil clássico e a irreverência da juventude.

O projecto do Arrepiado Velho começa por volta do ano 2000, quando uma família oriunda de Cortegaça que se dedicava ao negócio da informática decide investir numa propriedade no Alentejo. “O Alentejo sempre foi a paixão da minha mãe e muito mais do que ter uma casa no Algarve, o que ela queria era ter um monte aqui”, recorda António Antunes, o membro da família que gere a tempo inteiro a herdade em Sousel. Inicialmente, o projecto da família apontava para a compra de um terreno aí com uns 30 hectares. Mas quando chegou a hora de visitar a Arrepiado Velho, que estava na posse de uma família que vivia em Lisboa, tudo ficou decidido. A herdade tem 100 hectares, uma casa térrea tipicamente alentejana, instalações agrícolas e uma sucessão de declives que, apesar de não proporcionarem grandes variações de altitude, garantiam ainda assim diferentes exposições solares.

O negócio fez-se por “um bom preço para a época”, recorda António Antunes, que na altura não fazia ideia que teria ali o seu futuro profissional. Como a família nada sabia sobre vinhas ou vinhos, contratou o britânico David Booth para planear a plantação que queria fazer. Booth, um britânico que vivia em Portugal há alguns anos (faleceu em Abril de 2012, aos 47 anos) e que se tornara um dos mais conceituados técnicos de viticultura a trabalhar em Portugal, deitou mãos à obra. O Arrepiado tinha condições para abdicar da sua ancestral vocação cerealífera e pecuária para se dedicar ao vinho, reparou. Para lá das exposições, o solo tinha especial aptidão para acolher plantas que se dão bem com a ausência de matéria orgânica – é argiloso e xistoso e assenta sobre rocha de xisto situado dois palmos abaixo da superfície. A zona é extremamente seca no auge do Verão, mas esse problema poderia ser resolvido com a construção de uma barragem e a instalação de um sistema de rega.

Depois de tomarem posse da propriedade, os Antunes tiveram de começar do zero. “Estava tudo abandonado, nem caminhos havia. Só a casa estava em condições mínimas”, recorda António. A primeira grande questão com que David Booth se confrontou foi saber que castas deveriam ser instaladas na Arrepiado Velho. O britânico fez uma escolha que variou entre o conservadorismo e a ousadia. Nos 33 hectares de terreno que iriam acolher videiras, desenhou um plano no qual a casta hegemónica seria a Touriga Nacional (um terço da área total). Ao seu lado, plantou mais 12 hectares de castas tintas internacionais: Cabernet Sauvignon, Syrah e Petit Verdot. No domínio das variedades brancas, prosseguiu uma fórmula idêntica, colocando ao lado da alentejana Antão Vaz e da Verdelho áreas com Riesling, Chardonnay e Viognier.

No final de 2004 as plantações estavam concluídas. Estava na hora de escolher um enólogo para preparar a primeira vindima, que se anunciava logo para 2005. Inicialmente, a família proprietária pensou em recorrer a um dos consultores com nome firmado na nova geração de vinhos alentejanos, mas David Booth sugeriu que entrevistassem um jovem ousado e irreverente que estava a começar a sua carreira na região. “Depois de falar com o António Maçanita, a minha mãe ficou imediatamente convencida”, recorda António Antunes. Seria ele o dono do lugar. Ao mesmo tempo, a imagem de marca começou a ser trabalhada, ao nível do logotipo e dos rótulos, mas neste domínio as primeiras encomendas ao exterior não passaram na avaliação dos donos.

A solução acabaria por ser encontrada dentro de portas. Marta Neto, a mulher de António que tinha acabado o seu curso de design, apresentou uma ideia que acabou por ser escolhida. Arrepiado é o nome que a população local dá a um pássaro e Marta estilizou uma imagem de duas aves simulando um beijo. Os rótulos com este conceito colocaram as garrafas da Arrepiado Velho entre as mais belas e sedutoras imagens de marca do vinho nacional. A revista americana The Coolfit haveria de colocar os seus rótulos entre os 30 melhores do mundo.

Quando as primeiras 3000 garrafas da Arrepiado Velho chegaram ao mercado, o sucesso foi imediato. Até ao Natal, todas tinham sido vendidas. Este sucesso, porém, era mais aparente do que real. “Nesse ano pensámos que o negócio seria fácil”, recorda António. Não foi. Vender 3000 garrafas não é o mesmo que vender 50 mil, como muitos investidores de outras áreas de negócio que apostaram no vinho vieram a descobrir. Sob a batuta de António Maçanita, os vinhos começavam a mostrar conceito e qualidade, como ainda hoje o comprova o Collection de 2008, um tinto com um excelente aroma de fruta preta, um balanço notável, taninos finos e elegantes e uma acidez que lhe empresta uma atraente frescura. Mas havia reveses com os quais a família teria de se confrontar. Em 2011, por exemplo, um ataque de míldio quase que arrasou a produção. Para agravar o cenário, os negócios principais da família corriam mal. A Arrepiado Velho precisava de uma gestão mais permanente e presente. É então que António pega na sua família, deixa o Norte do país, esquece o surf e vai viver com a sua mulher para a herdade. Chegara a hora do tudo ou nada.

Desde então, a situação da empresa estabilizou. Os seus vinhos afirmaram uma personalidade, marcada pela elegância e pela frescura, o seu portefólio varia entre blends de reservas, varietais e propostas fora da caixa como o Brett Edition, no qual a equipa de enologia deixa desenvolver (em doses muitíssimo moderadas, note-se) um fungo que dá origem a aromas que sugerem o suor de cavalo – este vinho é um dos grandes sucessos da casa. Com António a tempo inteiro na parte comercial, na adega e na vinha (onde conta com a colaboração do viticultor Nuno Ramalho), as vendas não pararam de crescer. Este ano, foram colocadas 70 mil garrafas no mercado, das quais, entre 70 e 80% foram para o estrangeiro, com destaque para o Brasil, Angola e Canadá. Ainda em 2015, os vinhos reserva da casa estão esgotados. Os vinhos da Arrepiado foram listados numa grande central de compras no Japão, o que, a prazo, pode garantir o escoamento de 20 ou 30 mil garrafas por ano, acredita António Antunes.

Perante este cenário, a palavra de ordem é crescer e investir. O caminho traçado não inclui para já a possibilidade de uma segunda marca de vinhos mais baratos – “não é esse o nosso caminho”, diz António Antunes, que situa os preços das suas marcas no mercado nacional entre os seis e os 32 euros. Não é por uma questão de limitação - uma boa parte da produção de uvas é vendida a outros produtores, “o que é para nós um bom negócio já que nos permite ter fôlego financeiro para o nosso negócio”. É por pura opção. De resto, está na calha a intenção de fazer novas plantações no imenso espaço da herdade – só as zonas de azinho estão vedadas a essa ambição, dadas as restrições legais que condicionam o seu arranque. António não questiona as escolhas de castas feitas há mais de dez anos, mas desta vez pensa em acrescentar ao potencial produtivo uma variedade tinta que seja tipicamente alentejana. Como é óbvio, a Alicante Bouschet, a casta-emblema do Alentejo contemporâneo, está na primeira linha das escolhas potenciais. Ao mesmo tempo, estão previstos novos investimentos na adega, não para construir um edifício imponente para dar nas vistas, mas para permitir novas facilidades para a vinificação de diferentes lotes de vinhos brancos, por exemplo.

Agora que o negócio corre bem e que os resultados operacionais são positivos, António faz as contas aos projectos para o futuro e imagina uma meta para concretizar: a produção de 240 mil garrafas, mais do triplo do actual. Para lá chegar, vai precisar de mais produção, de uma equipa comercial capaz de reforçar a estratégia internacional da empresa e de novas apostas. O Collection tinto continuará a ser o baluarte da Arrepiado Velho, mas na calha está já um super-reserva que se chamará AMMA – o acrónimo dos membros da família: António, Marta e os filhos Martim e Alice. Os primeiros ensaios estão em curso e as ambições são ousadas. Ir além do Collection, um vinho sofisticado e com carácter, não há-de ser tarefa fácil.

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