Percorrer a história do Coroa d’Ouro ao longo de 25 vindimas é um bom caminho para se perceber a revolução dos vinhos DOC Douro no último meio século. Entre a edição de 1990 e a que está agora no mercado, de 2013, há uma enorme mudança no conhecimento das vinhas e da enologia, mas há principalmente uma grande evolução dos perfis dos vinhos produzidos pela casa Poças, uma empresa familiar que continua a centrar o essencial da sua actividade no vinho do Porto. Hoje, os vinhos são mais polidos, mais sofisticados, mais alcoólicos e volumosos, mas nem por isso se pode dizer que as edições dos primeiros anos padeciam de falta de complexidade ou de carácter. Uma prova dos Coroa d’Ouro de 1990, 1992 ou 1997 é afinal a prova de que o abandono de uma certa escola de enologia mais básica, ou mais rústica, e de uma abordagem mais empírica da vinha e da adega pode ter muitas vantagens, mas igualmente alguns inconvenientes. O futuro dirá, por exemplo, se as novas gerações dos tintos da Poças vão conservar o extraordinário potencial de envelhecimento dos seus antecessores.
Quando o Coroa d’Ouro de 1990 chegou ao mercado, aí por volta de 1993, facilmente se incluiu numa nova vaga de tintos durienses que por essa altura começavam a demolir a dedicação exclusiva da região à produção de vinho do Porto. Como os Duas Quintas ou o Esteva, a marca da Poças abria um caminho novo e comprovava um potencial que até então tinha permanecido omisso. Já há alguns anos que na Poças havia a ideia de fazer vinhos tranquilos, mas “não havia nem know how nem pré-disposição para isso”, recorda Jorge Pintão, enólogo da casa. O seu regresso de Bordéus, onde estudou enologia, era razão suficiente para se abrir essa página. “Ia ser uma aventura muito interessante e muito rica. Porque sabíamos que havia potencial na região para o fazer”, acrescenta.
Na vindima de 1990, a “aventura” começou. As uvas foram colhidas na Quinta das Quartas, no Baixo Corgo, quando estavam já num estado de sobrematuração capaz de garantir estrutura e potencial de envelhecimento ao vinho. Fizeram-se então apenas 25 mil garrafas — hoje a Poças produz cerca de 300 mil garrafas de vinhos tranquilos, o que, de acordo com Pedro Poças Pintão, da administração da empresa, representa 25% do volume de negócios. Para os padrões actuais, o Coroa d’Ouro de 1990 seria certamente um vinho algo rústico, com tanino rugoso, um corpo mais magro do que actualmente prevalece nas gamas dos DOC Douro, e um teor alcoólico que se ficava nuns surpreendentes 12% de volume. Mas essas características conferiram-lhe um extraordinário poder de crescer na garrafa. Hoje, apresenta-se ainda com notas de fruta (maçã reineta), toques vegetais, um vigor na boca admirável e uma amplitude e persistência notáveis. Está um belíssimo tinto e ainda vai durar mais uns anos na garrafeira.
Em 1992, a dedicação da Poças a esta gama de vinhos alarga-se com o lançamento do Poças Reserva. Pelo caminho, a experiência levou a equipa de enologia da empresa a procurar uvas nas zonas mais quentes do Douro para dar ao vinho mais consistência aromática, volume e complexidade. Por essa altura, a Poças já podia dispor de todo o potencial da Quinta de Vale de Cavalos, adquirida em 1989 no Freixo de Numão, Douro Superior, o que acrescentou “uma base estrutural importante” para os DOC Douro, recorda Jorge Pintão. Em 1994, a Poças tinha já iniciado a produção de vinho branco. E em 1996 a construção de uma nova adega permitiu suprir a falta de condições dos primeiros anos de produção da casa. A marca Vale de Cavalos surge em 2003.
Quer o Coroa d’Ouro de 1992, quer o de 1997, testemunham já um acréscimo de complexidade com o recurso crescente a uvas mais maduras das zonas mais quentes do vale. O 1992 está numa boa forma, com um perfil muito clássico, aromas fumados e balsâmicos, uma textura na boca interessante e uma surpreendente acidez no final de boca. O de 1997 vai ainda mais longe, apresentando um aroma fantástico, com fruta, especiaria e chá preto, embora na boca se apresente menos tenso e vibrante do que o seu par cinco anos mais velho. O seu sucessor na prova organizada pela Poças para celebrar os 25 anos das suas chancelas de DOC Douro, de 2000, estava ainda mais plano. Mas cinco anos mais tarde, a empresa consegue criar um verdadeiro monumento à excelência e à longevidade dos tintos durienses. O Coroa d’Douro de 2005 exala um aroma de enorme elegância e subtileza e na boca apresenta uma estrutura harmoniosa, com tanino polido mas firme, profundidade e uma admirável persistência. O 2007 conserva o mesmo estilo, mas sem conseguir no entanto o mesmo balanço e grandiosidade do seu antecessor que é, de facto, um belíssimo vinho.
Na prova, houve ainda oportunidade para se conhecer o estado actual dos Poças Reserva de 1992, 1997, 2000, 2005 e 2007. No geral, conservam as qualidades do Coroa d’Ouro e, como seria de esperar, amplificam até alguns dos seus atributos. O 1992 está cheio de garra, o 1997 é um vinho sisudo, fechado e austero, que exige comida forte para se apreciar, o 2000 supera de longe o Coroa d’Ouro da mesma edição e, uma vez mais, o 2005 é o caso mais sério. Na sua fase actual, mostra aromas de fruta de excelente fineza e recorte e notas florais. Na boca é prodigioso. Elegante, com sugestões de chocolate preto na prova e um final especiado e complexo, apresenta um volume de boca notável e uma persistência extraordinária. É, sem dúvida, um vinho de altíssima qualidade, a merecer reconhecimento junto de alguns dos grandes tintos do Douro.
Deixada no passado a predominância de uvas moderadamente maduras, a hegemonia da vinha tradicional ou dos lotes de Touriga Franca (que ainda assim continua a ser dominante nos DOC Douro), a Poças aposta em acompanhar os padrões da modernidade dos vinhos do Douro, mas não abdica da sua própria maneira de interpretar o potencial da região. “No Douro, por vezes os vinhos ficam muito maduros, o que os torna cansativos”, diz Jorge Pintão. Uma maior tolerância à acidez natural e uma menor abertura a uvas muito doces e maduras continuará a ser a prática corrente da casa. O Coroa d’Ouro ou o Vale de Cavalos de 2013 comprovam essa dedicação. São vinhos com poder de impacte nos sentidos, mas mais pela estrutura e pela acidez do que pela extracção de álcool e fruta. Quer isto dizer que, no futuro, há fortes probabilidades de repetirem a façanha do envelhecimento de edições como a de 1990, 1992 ou 2005.