Quando esses produtores persistem em manter uma estrutura familiar que sobreviveu ao passar ao tempo enfrentando com sucesso o desgaste natural da inevitável erosão patrimonial de partilhas e heranças, a admiração é ainda superior. Sobretudo quando essas mesmas empresas familiares são capazes de prosseguir a vida com ânimo, reinventando-se e renovando-se, superando com sucesso os duros obstáculos que o tempo vai colocando.
Tem sido esse o paradigma da Blandy’s, hoje integrada no nome mais genérico da Madeira Wine Company, um dos símbolos por excelência da nobreza do Vinho da Madeira. Apesar de estar longe de ser o maior produtor de Vinho da Madeira em volume, a Blandy’s ocupa um assento muito especial na história rica do grande vinho generoso da ilha da Madeira.
De forma assumidamente provocatória, quase se pode confundir o Vinho da Madeira com a própria Blandy’s ou a Madeira Wine Company e o seu vasto portefólio de marcas, que engloba ainda os nomes respeitados da Cossart Gordon e Miles. O percurso histórico é complexo e cativante resultado de junções e fusões intricadas, de uniões de vontade ou casamentos forçados pelas circunstâncias. Conhecendo a biografia da empresa, percebe-se de imediato que seria possível traçar o enredo de uma notável ficção portuguesa com traços ingleses num empresa que reúne condições para arquitectar uma trama épica de cinema.
Instituída em 1913 então sob a designação Madeira Wine Association, a empresa permitiu a associação de um conjunto de empresas históricas de Vinho da Madeira. Sob este guarda-chuva genérico foram agregadas companhias de maior e menor dimensão de forma a rentabilizar as capacidades de exportação numa época de crise em que o negócio de Vinho da Madeira sofria momentos de amargor. Uma concentração de marcas e companhias que implicou fusões e cedências, já que contava com um número quase desproporcionado de rótulos e etiquetas, de lotes e relações comerciais complexas capazes de confundir o gestor mais paciente.
Nos anos oitenta, na sequência de uma reestruturação interna, reduziu-se o número de referências para um núcleo de nove nomes, Blandy’s, Cossart Gordon, Ferraz, Freitas Martins, Gomes, Leacock, Lomelino, Miles e Power Drury que paulatina mas conscientemente começou a ser reduzido a duas grandes referências históricas, Blandy’s e Cossart Gordon, embora subsistam mercados onde os nomes Leacock e Miles ainda gozam de prestígio e capacidade de atracção.
Por amor ao vinho, por terem as suas raízes e o seu coração na ilha da Madeira, a família Blandy decidiu empenhar-se no romantismo do vinho sustentando uma participação activa no negócio. Provavelmente não será do conhecimento comum, mas o vinho representa uma parte ínfima no universo de negócios da família Blandy, que se dedica ainda à banca, construção e reparação naval, transporte marítimo, seguros, agências de viagem, imobiliário, hotelaria, imprensa e orquídeas, actividades que representam as outras faces da actividade económica deste produtor de vinho.
Uma das características extraordinárias da Blandy’s é a capacidade natural para conciliar tradição com modernidade, prática visível na adega, que por ora ainda se mantém no centro do Funchal. Se muitas das práticas continuam a manter-se fiéis à tradição, a verdade é que a Madeira Wine Company revolucionou alguns dos conceitos essenciais do Vinho da Madeira, nomeadamente aquando da introdução dos Madeira Colheita, uma das categorias mais importantes para o presente e futuro do Vinho da Madeira.
O Alvada foi outra das grandes revoluções do sector, ao apostar numa imagem forte e de cores berrantes e irreverentes que contrastaram com a imagem clássica que até à época povoava os rótulos dos vinhos da Madeira. Rótulos de cores fortes e garridas que chocaram mas rejuvenesceram um mercado que até muito recentemente estava conotado com consumidores de idades mais maduras e em risco de extinção. Mas a renovação não se reduziu ao rótulo, inovando e rompendo tradições também ao associar duas castas (Boal e Malvasia) de forma proporcional no mesmo vinho, uma originalidade no Vinho da Madeira que remeteu contra a corrente tradicionalista que dominava o mercado.
Não é difícil comentar que a introdução dos Madeira Colheita foi uma das reformas mais importantes do século para a sobrevivência e recuperação de imagem dos Madeira, ao assegurar uma nova categoria que quebrou a enorme distância que separava os vinhos com indicação de idade com os tradicionais e extraordinários Frasqueira, vinhos de edição esporádica e produção muito limitada. Vinhos necessariamente caros e raros que eram comercializados a conta-gotas e sem uma logística que permitisse manter acesa a chama e apelo jornalístico dos vinhos da Madeira.
Por isso foi tão decisiva a instituição da categoria Colheita no Vinho da Madeira, vinhos de uma só vindima como os Frasqueira mas passíveis de serem lançados muito mais cedo no mercado, com uma constância e regularidade sem paralelo no passado histórico do Madeira. Pela primeira vez na história do Vinho da Madeira, os produtores dispuseram de um argumento convincente para que os jornalistas e críticos de vinho pudessem regressar vezes sem conta ao prazer do Madeira, oferecendo colheitas jovens e recentes com uma periodicidade palpável.
A Blandy’s está bem, anuncia vinhos de sonho e renova-se constantemente. Basta olhar para a presença da nova geração ao comando da Madeira Wine Company, adoptando Chris Blandy como CEO num passo que representa a entrada da sétima geração na condução dos destinos da casa. Uma renovação que indica muito sobre o futuro de sucesso dos vinhos da Blandy’s.