Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

Moscatel de Setúbal

Por Rui Falcão

Qual é, então, o segredo dos grandes Moscatel de Setúbal?

Vivemos como que num estado de depressão colectiva crónica, suportando actos de contrição e desalento colectivo, reclamando por momentos de redenção que voltem a alimentar a alma e o brio de ser português.

Que melhor arma para nos devolver o sentimento de esperança e dignidade que a enorme alegria de possuir três dos melhores e mais representativos vinhos generosos do mundo?

Como é possível que um país tão pequeno em extensão territorial consiga oferecer vinhos tão diferentes no estilo, tão díspares no perfil, tão diversos no carácter… mas tão excepcionalmente perfeitos na qualidade ímpar que oferecem como os incríveis Madeira, Moscatel de Setúbal e Porto? Que inspiração divina terá iluminado as almas dos nossos antepassados para apresentar vinhos que ainda hoje, por vezes após mais de um século de vitalidade, continuam a anunciar-se vivos, irrequietos, jovens, frescos e monumentais?

De forma absolutamente distinta, Madeira, Moscatel de Setúbal e Porto marcam o triunvirato de ouro da enologia portuguesa. Nenhum outro vinho nacional se consegue equiparar aos três grandes generosos que marcam o destino de Portugal.

Mas se o Vinho da Madeira e o Vinho do Porto experimentam um reconhecimento universal, o Moscatel tem um reconhecimento mais empírico e caseiro, sem a projecção internacional dos dois primos que são conhecidos de forma universal.

Se Madeira e Porto poderão ser reputados como vinhos únicos e irrepetíveis, genuinamente portugueses e sem qualquer rival genérico, o Moscatel de Setúbal sofre com a competição feroz de outros vinhos Moscatel presentes em quase todos os países da bacia mediterrânica, do Sul de Espanha a Chipre, de Itália à Grécia, de França aos países balcânicos… a que ainda se somam as incursões da casta em países do novo mundo como a Austrália ou África do Sul.

O Moscatel de Setúbal continua a ser um desconhecido nos mercados internacionais, uma espécie de parente pobre, um vinho incompreendido e ainda desconsiderado. A razão principal para tal falta de reconhecimento é a matriz profundamente portuguesa do Moscatel de Setúbal. Enquanto Madeira e Porto beneficiaram de uma incontestável influência inglesa, de uma autoridade consentida pela força imperial de Inglaterra, o Moscatel de Setúbal é uma instituição e criação visceralmente portuguesa, de capitais portugueses, de famílias portuguesas, destinado a mercados de língua portuguesa. Uma diferença fundamental para explicar a ausência quase total de divulgação internacional dos vinhos Moscatel de Setúbal. O Moscatel sempre foi recatado, menos ambicioso, revendo uma divulgação caseira que raramente ultrapassou as fronteiras de Portugal ou dos seus antigos territórios ultramarinos.

Sem qualquer dose de nacionalismo exacerbado, raramente provei qualquer Moscatel oriundo de outras paragens que não a Península de Setúbal que se aproximasse em qualidade, complexidade e frescura aos melhores Moscatel de Setúbal. Concedendo algum crédito a vinhos Moscatel de outras paragens, só um outro país consegue apresentar vinhos Moscatel relativamente comparáveis ao que de melhor se faz em Setúbal. Por estranha que a ideia se apresente, esse país chama-se… Austrália.

Por regra, os vinhos Moscatel de todo o mundo, incluindo alguns oriundos da península de Setúbal, revelam uma doçura extremada. Uma doçura que, apesar de apetitosa, terá de ser acompanhada por uma acidez igualmente incisiva que desperte da modorra do mel e das laranjas. Dos Moscatel podemos sempre esperar o melhor e certamente o pior. Infelizmente, a maioria dos vinhos Moscatel nacionais são de qualidade mediana e enfadonhos pela falta de frescura e pelo peso excessivo dos torrados, do mel e da laranja cristalizada.

O Moscatel de Setúbal convive melhor com os solos calcários da Arrábida, com a frescura aportada pelos altos da serra, com a protecção extra que ela oferece dos ventos atlânticos, com a frescura proporcionada por uma estranha serra que, por um capricho da natureza, oferece encostas expostas maioritariamente a norte. Na verdade, a grandiosidade do Moscatel de Setúbal advém de um percalço da natureza, consequência de um clima de forte influência atlântica que permite uvas Moscatel de clima fresco e de baixo grau alcoólico. Característica que não representa qualquer obstáculo, já que o Moscatel irá ser fortificado com aguardente vínica.

Qual é, então, o segredo dos grandes Moscatel de Setúbal? A resposta não poderia ser mais simples, a frescura. É esse o truque e a obrigação de um bom Moscatel, uma acidez forte e quase violenta que o desperte das grilhetas do açúcar. É esse o segredo, mas é essa também a enorme dificuldade do Moscatel, a necessidade de assegurar um vinho simultaneamente sedoso, untuoso e glicerinado na boca, em conjunto com uma acidez incisiva e intransigente que acrescente tensão e nervo ao final de boca.

A falta de acidez, recorrente na maioria dos vinhos Moscatel, implica ter de lidar com vinhos xaroposos, melosos, moles, planos, sem fibra e enjoativos no excesso de açúcar e mel. A acidez é condição indispensável para a sensação de frescura, para o prolongamento do vinho na boca, para um final airoso. E acidez é precisamente o que a serra da Arrábida consegue oferecer generosamente à casta Moscatel. A proximidade do mar, aliada ao solo calcário e às constantes neblinas matinais, oferece uvas Moscatel de graduação alcoólica mediana e acidez profunda perfeitas para a produção do Moscatel de Setúbal, vinhos de vida eterna, de complexidade genial, vinhos que ombreiam com o que de melhor se faz no mundo.

 

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