Barcelona, primeiro sábado de Março, o calendário ainda marca Inverno mas o ambiente já sugere Primavera, faz sol, a praia está cheia de gente, a cidade relaxa, não há enchentes de turistas e o Barça joga fora. A um tiro de pedra do Mediterrâneo, uma dúzia e meia de produtores atlânticos, dois ou três de Espanha e o resto de Portugal, começa a chegar ao Addicted To Life, um edifício com ar de garagem abandonada gerido pelo francês Fabrice, um alternativo e sonhador, anfitrião e promotor de tanta coisa, de concertos a exposições, de feiras de bicicletas usadas a salão off de gastronomia ou sessões de moda.
Há lugar para tudo no Addicted To Life, com as suas paredes “insurgentes”, como escreveu Malena, que apresentaremos de seguida, e uma saída de fumo com barbecue de chiringuito.
Há lugar até para uma feira de vinho quase só português, prolongamento do Simplesmente Vinho do Porto, criado há cinco anos como salão off e alternativo à Essência do Vinho, a glamorosa e refinada feira do Porto a que nenhum dos grandes produtores portugueses pode faltar. Não ganham nada em ir, tamanha é a azafa e o afã dos visitantes em beberem tudo o que houver, mas podem perder muito se não forem. É uma espécie de côngrua pascal, um imposto para estar no radar.
No Simplesmente Vinho, o negócio também é ser falado e ser visto, receber encomendas se possível, mas o espírito é outro. Há vinho, comida e música e quase só vignerons tesos e sonhadores, gente que procura fazer vinho de forma diferente, com menos químicos e mais paixão, com alma, e que encara o vinho e a vinha como uma parte indivisível da sua vida.
Malena Fabrega, uruguaia radicada há muito em Barcelona, amante do vinho transformada quase por obrigação em importadora de garagem, perdeu-se de amores por Portugal e pelo Simplesmente Vinho Porto, ideia e obra de João Roseira e Mateus Nicolau de Almeida. E este ano juntou-se a João Roseira, e ao filho deste, Gustavo, o criativo do conceito de comunicação do evento, para fazerem o primeiro Simplesmente Vino BCN.
Jogada arriscada. Quem, a não ser uns quantos enófilos, iria perder um fim-de-semana para se enfiar num armazém a provar vinhos portugueses, biodinâmicos, naturais, amigos do ambiente ou apenas toleravelmente químicos? Pior: quantos catalães já terão ouvido falar nestes nomes?:
Quinta de Serradinha (grandes brancos e tintos orgânicos da zona de Leiria ); Humus (surpreendentes e arrriscados vinhos naturais da zona de Óbidos);
Vale da Capucha (belos brancos monovarietais provenientes de Torres Vedras);
Quinta da Palmirinha (pequeno projecto familiar de Fernanda Paiva, um professor reformado de 71 anos que é o único produtor português certificado como biodinâmico);
Apfros (outro produtor biodinâmico do Minho, Arcos de Valdezes, cuja última criação foi um palhete sem uso de electricidade no processo de elaboração);
Herdade do Arrepiado Velho (o maior, em área de vinha, de todos os produtores presentes. Cem hectares em Sousel, Alentejo, fruto de uma virtuosa reconstrução de um antigo monte);
Quinta das Bágeiras (o mais conhecido de todos, com os seus fantásticos brancos e tintos da Bairrada);
Tiago Teles (um homem da escrita de vinhos que está a fazer tintos diferentes na Bairrada a partir de uvas compradas a Carlos Campolargo);
Os Goliardos (um projecto de Nadir Bensmail, Sílvia Mourão Bastos e Manuel Beja que tem ajudado a descobrir e a promover bons e originais vinhos nacionais e estrangeiros);
António Madeira (um jovem engenheiro de logística a viver em Paris que tem vindo a recuperar vinhas muito velhas no sopé da serra da Estrela e a fazer vinhos do Dão admiráveis e de grande carácter);
Terras de Tavares (vinhos do Dão clássicos e distintos com a chancela rebelde de Tavares de Pina);
Casa de Mouraz (um dos mais sólidos projectos de vinhos biológicos do Dão e do país);
Quinta do Infantado (o primeiro produtor a engarrafar vinho do Porto a partir do Douro);
e Gouvyas (o renascido projecto duriense de Luís Soares Duarte e João Roseira).
A feira abriu ao meio-dia, hora pouco recomendável para um português, e em pouco tempo começaram a chegar sommeliers, candidatos a sommeliers, produtores, importadores, famílias com crianças, curiosos e estrangeiros de passagem por Barcelona.
E o que parecia um armazém grande ficou pequeno de mais, cheio de gente admirada com a qualidade dos vinhos portugueses, sem vontade de sair, alimentada a sushi, tacos vegetarianos, sanduíches de carne e estufado de grão-de-bico, feitos na hora por chefs locais, do prodigioso Rafa Peña, proprietário do restaurante Gresca (onde haveríamos, dois dias depois, de comer um inesquecível risotto de pimentos vermelhos e gorgonzola), aos virtuosos Atsushi Takata, Dani Rossi e Chiara Bombardi e os irmãos Sierra, do restaurante Granja Elena.
Quando as pernas já começavam a doer, de tantas horas em pé, chegou a música, jazz do melhor pelo Trakas trío. Às tantas já não se sabia bem o que aquilo era, se uma feira de vinhos, se um concerto ou outra coisa qualquer, ainda mais quando o que vinha a seguir era um jantar de porco assado, servido por Rafa Peña e aberto a gente de fora.
A feira poderia ter terminado ali que já seria um enorme sucesso. Mas ainda houve um segundo dia, menos movimentado, embora tenha voltado a juntar mais algumas centenas de pessoas, que acabaram no final embaladas pelos sons groove do uruguaio Alvaro Pérez e pela leveza e destreza da equilibrista Juana Beltrán.
Nenhum produtor sonhara com tanto entusiasmo e elogio e muito menos com tanta manifestação de compra. Se tivessem levado vinho para venda, os produtores portugueses teriam feito um belo negócio. Não facturaram, mas deixaram nome e um enorme desejo em muitos visitantes de viajar a Portugal para conhecer o país e os seus vinhos. “Além de bonito, é um país muito barato. Come-se e bebe-se muito bem por pouco dinheiro”, garantia a um casal o proprietário de uma das poucas distribuidoras catalãs que importa vinhos portugueses.
Mais tarde, Malena Fabrega resumiu tudo: “Viestes com um punhado de garrafas pelas dúvidas e quase não podíamos fazer o segundo dia por falta de vinho”, exultava, num agradecimento aos produtores, garantindo que “há um antes e um depois de Simplesmente Vinho BCN no coração dos amantes do vinho da cidade”.
Um Madeira de 1862 para celebrar Portugal no Monvínic
No rescaldo do primeiro Simplesmente Vino BCN, os organizadores promoveram uma prova de vinhos portugueses no Monvínic, o melhor wine bar-restaurante de Barcelona e, de acordo com revistas do sector, um dos cinco melhores do mundo. Para se ter uma ideia do que se trata, só a remodelação da cozinha custou, no ano passado, cerca de um milhão de euros ao seu proprietário, Sergi Ferrer, um empresário do ramo farmacêutico, produtor na região catalã do Priorato (vinhos Ferrer Bobet) e grande admirador dos vinhos portugueses e do Douro.
O Monvínic é dirigido pela francesa Isabelle Brunet, uma das mais conceituadas sommelliers a trabalhar em Espanha. Foi sommellier no lendário el Bulli, de Ferran Adrià, onde Sergi Ferrer a foi buscar, pagando-lhe três anos de ordenado até o Monvínic abrir. A troco de 50 euros, cerca de duas dezenas de catalães puderam provar 14 vinhos e ficar com uma melhor ideia do potencial e da diversidade vitivinícola de Portugal. A lista de vinhos em prova incluiu os brancos Humus 2014 Branco (Lisboa), Dominó Monte das Pratas Branco 2012 (Alentejo), Soalheiro 2009 e Quinta das Bágeiras Branco 2004 (Bairrada); os tintos Quinta do Infantado 2009 Rótulo Verde (Douro), Filipa Pato Nossa Calcário 2010 (Bairrada), Terras de Tavares Reserva 1997 (Dão), Quinta da Serradinha 1999 (Lisboa), Gouvyas Vinhas Velhas 2006 (Douro), Quinta do Mouro 2005 Rótulo Dourado (Alentejo), Quinta de Saes 2011 Estágio Prolongado (Dão) e António Madeira Moreish 2013 (Dão) e os fortificados Quinta do Infantado Porto Vintage 1997 e Barbeito Single Cask Verdelho 2000 (Madeira). Todos grandes vinhos, em especial o Bágeiras 1994 (um branco fabuloso já com 22 anos mas que ainda está vivíssimo, suportado numa grande acidez), o Nossa Calcário 2010 (um Baga muito profundo e mineral), o Terras de Tavares 1997 (com uma acidez volátil quase no limite do tolerável e uma grande austeridade, contundência e frescura), o Quinta do Mouro 2005 (potente, envolvente e espigado), o Quinta da Serradinha 1999 (um lote de Baga com 10% de branco e um vigor e uma raça tânica colossais) e o Quinta do Infantado Vintage 1997 (um vintage diferente, por levar menos álcool na fermentação, e que está no seu auge).
Pelo meio ainda foi provado, como surpresa, o Gouvyas Branco 2010, um vinho selvagem com corpo e nervo de tinto. Mas o melhor ficou para o fim. Para retribuir a forma hospitaleira como diz ser sempre recebido quando vai a Portugal, Sergi Ferrer abriu um Madeira Pereira D’Oliveira Sercial 1862. Um vinho com 154 anos, de bouquet riquíssimo e uma frescura e salinidade deslumbrantes, que deixou toda a gente a salivar.