Apesar de uma dimensão geográfica que se pode considerar razoável, será difícil encontrar regiões nacionais onde a vinha não marque presença, regiões insulares incluídas, onde a vinha não represente ou tenha representado uma parte substancial da vida. Em Portugal é quase impossível dissociar sociedade, cultura e vivência do universo simbólico do vinho.
Mas apesar de tamanha cumplicidade o que leva alguém a plantar vinhas num local em detrimento de outro? Porque é que algumas regiões ou vinhas parecem mais naturais que outras? Uma pergunta que em Portugal, graças ao registo histórico da produção de vinho e às características climáticas gerais, apresenta uma resposta quase intuitiva para uma parte substancial do território. Simplesmente porque seria um contra-senso tentar cultivar qualquer outra coisa nesses espaços.
Muito provavelmente seria possível criar cabras no Douro com algum sucesso mas muitos séculos de sucesso na vinha e na criação da espantosa família dos vinhos do Porto provaram que a vinha é seguramente a solução mais certeira para a região. Mas em outras partes muito especiais do Douro que ficam fora de denominação ou nos arredores da região já não seria descabido investir noutras culturas, tal como se fez no passado.
Se olharmos para o mapa de forma simplista poderá parecer estranho que locais tão próximos possam ter condições naturais tão díspares. A região de Colares será ainda mais extrema nessa aparente contradição de locais tão próximos poderem ser tão descoincidentes. Basta perceber a diferença abismal entre as vinhas plantadas em ‘chão de areia’ e ‘chão rijo’, condição que se distribui de forma mais ou menos uniforme pelo mapa da denominação, para perceber que pequenas diferenças podem ter consequências dramáticas na qualidade e personalidade dos vinhos.
Mas nem todas as vinhas nasceram pelo compromisso de manter os ensinamentos da história. Muitas das grandes vinhas são consequência de experiências, do acaso, da coincidência de uma enorme quantidade de factores. No novo mundo a totalidade das vinhas que entretanto passaram a ser conhecidas nasceram da simples experimentação, do velho método da tentativa e erro. Na verdade, todas as vinhas do mundo, grandes vinhas centenárias da velha Europa incluídas, nasceram desta forma, pelo velho método de tentativa e erro. A grande diferença é que a Europa leva vários séculos de vantagem temporal sobre os demais continentes…
Muitas das boas e más vinhas existentes são o corolário de inércia, conveniência, antecedentes ou fruto do mero acaso. Muitas existem porque correspondiam a um terreno herdado, porque aquele era o único espaço disponível, porque sim. Outras porque alguém quis genuinamente apalpar terreno, arriscar, ensaiar porque acreditava que nesse espaço poderiam nascer grandes vinhos. Quando a experiência funciona, tanto pelo resultado na garrafa como pelo sucesso económico, a vinha continua e eventualmente surgirão seguidores para o projecto. Se não funcionar, muito provavelmente a vinha deixará de existir.
A Herdade de Portocarro, na Península de Setúbal, é um bom exemplo desta vontade de experimentar novas localizações, novas castas, novos conceitos. As vinhas situam-se no Torrão, na longa cintura de arrozais que guarnece a margem esquerda do rio Sado, ligeiramente a sul de Alcácer do Sal, na fronteira entre os distritos de Setúbal e Évora. Um local improvável no meio de uma manta de arrozais que transformam o perímetro das vinhas numa península seca e árida sitiada por uma mancha intensa de cor verde viçosa que contrasta com a aspereza do terreno. Água e videiras, arroz e vinhas, duas culturas que raramente seguem em boa companhia mas que este local mostrou poderem ser compatíveis. Nem mesmo a inexistência de vinhas, a falta de um passado ou de um caminho prévio que ajudasse nas escolhas do presente foram capazes de dissuadir sobre a escolha do local.
Seria poético e talvez desejável pensar que o local eleito para a implantação de uma vinha seria sempre uma decisão objectiva assente na equação quase mística do terroir, na escolha do melhor local possível para cada casta e estilo de vinhos. Na verdade, a escolha costuma resultar mais das opções económicas e de viabilidade financeira, eventualmente da sorte ou azar de uma herança que de factores mais encantadores mas menos reais. A maioria das grandes regiões europeias nasceu por circunstâncias económicas e práticas, pela proximidade a rios, a cidades ou portos que permitissem ao mesmo tempo escoar o vinho e que fossem locais de consumo.
Por isso, a maioria das grandes regiões portuguesas e europeias dependem de um rio ou estão situadas na proximidade de cidades influentes. No passado muitas delas nasceram por se situarem perto dos mosteiros mais ricos, mais influentes e com melhor conhecimento técnico. Hoje algumas nascem e desenvolvem-se porque são facilmente elogiadas e engrandecidas por estratégias de marketing bem pensadas.
De reputação histórica ou de notabilidade mais recente a verdade é que o sucesso de uma região ou de uma vinha em particular dependem sempre do sucesso que os vinhos têm junto do consumidor. Cada vez que escolhe uma garrafa de vinho em detrimento de outra está a elogiar um vinho em detrimento de outro. Se decidir que prefere um Touriga Nacional do Dão sobre um Touriga Nacional do Douro, se decidir que prefere um Alvarinho sobre um branco do Tejo está a enviar uma mensagem ao produtor e à região que terá repercussões directas no estilo que cada um privilegia.