Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

Há vida para lá da Touriga Nacional

Por Luís Ramos Lopes (director da Revista de Vinhos)

Muitos produtores e enólogos começam a buscar a diferença noutras variedades para apresentar vinhos com grande qualidade e personalidade.

O vinho português que chega até à garrafa é, quase sempre, um blend. A tradição vinícola nacional aponta para a mistura de várias castas para que o vinho mostre o melhor de cada uma. Por exemplo, num blend alentejano clássico das castas Alicante Bouschet, Aragonez e Trincadeira, vai buscar-se a cor, corpo e frescura ácida à primeira, a fruta bem madura à segunda, os taninos, especiarias e vegetais à terceira.

Não há muito tempo, os vinhos feitos de uma só casta eram bastante raros em Portugal. Alvarinho e Loureiro da região dos Vinhos Verdes, Arinto de Bucelas, Baga da Bairrada, Fernão Pires do Tejo ou Castelão da Península de Setúbal eram os casos mais conhecidos de varietais, ainda que alguns não mencionassem a casta no rótulo. Ao grupo acabaram por juntar-se castas como Antão Vaz, Alicante Bouschet, Aragonez, Vinhão, Avesso, Encruzado ou Verdelho, entre outras. De entre todas as castas portuguesas, porém, a que mais cresceu, quer enquanto componente de um blend quer como vinho varietal, foi, esmagadoramente, a Touriga Nacional. A tal ponto que, nos dias de hoje, uma boa parte dos vinhos portugueses mais ambiciosos e de preço mais elevado integra, em maior ou menor grau, uma percentagem desta casta que, no país, já se tornou a quinta mais plantada.

Mas a verdade é que o Portugal do vinho é muito mais do que a Touriga. O país possui uma enorme riqueza e diversidade vitícola: existem 340 variedades aptas a produzir vinho, um número enorme para um território relativamente pequeno. O próprio peso relativo da Touriga Nacional nos vinhedos portugueses diz muito sobre esta diversidade: apesar de ser a mais famosa, a Touriga representa apenas 6% de todas as variedades plantadas. Mais significativo ainda, a casta mais plantada, a Aragonez (também chamada Tinta Roriz, ou Tempranillo em Espanha), não ocupa mais de 9% da área.

Tanta casta diferente para escolher pode, em alguns casos, revelar-se um problema, sobretudo se pensarmos na afirmação internacional de um “modelo” de vinho português. Mas, se essa afirmação se basear em produtos de excelência, em vinhos de nicho, a diversidade pode ser um trunfo importante. Num mundo em que os consumidores mais exigentes reconhecem e valorizam a diferença e o carácter, apostar em algumas castas menos conhecidas é uma opção que cada vez mais enólogos e produtores começam a tomar.

Valorizar a diversidade

Um dos caminhos para a diferença passa por aproveitar castas que são muito utilizadas em blend mas que têm vindo a ser bastante desprezadas nas últimas décadas, não sendo por muitos consideradas suficientemente “nobres” para originar um vinho varietal. Essas variedades, quando plantadas no local certo e objeto de vinificação cuidada, podem fazer (e fazem!) vinhos de muito bom nível e vincada personalidade. É o caso, entre outras, das uvas brancas Rabigato, Viosinho, Síria e Cercial, e das castas tintas Alfrocheiro, Jaen e Castelão.

Rabigato e Viosinho são duas castas que entram em quase todos os lotes de vinho branco da região do Douro mas raramente são engarrafadas a solo. É pena porque a Rabigato origina vinhos com enorme frescura ácida, muito importante numa região quente como o Douro. A marca duriense Dona Berta percebeu isso e faz desde há vários anos um Rabigato muito bem-sucedido. Frescura é algo que a Viosinho dificilmente consegue sozinha no Douro, mas no clima atlântico da região de Lisboa a música é outra, e começam aí a surgir vinhos muito interessantes elaborados unicamente com esta casta, de rótulos como Adega Mãe ou Quinta do Gradil.

A variedade Síria é apelidada de Roupeiro no Alentejo, região onde é usada sobretudo nos blend dos brancos mais simples. O calor alentejano não permite tirar o máximo partido desta casta, mas no frio planalto da Beira Interior, a mais de 600 metros de altitude, a Síria é a base de brancos muito aromáticos, finos e expressivos, de que a Quinta do Cardo é o principal expoente.

O caso mais notável, no entanto, é o da Cercial. Esta casta típica da Bairrada, existente em pequenas quantidades, foi sempre misturada com as variedades Maria Gomes e Bical para fazer os brancos bairradinos. Desde há mais de uma década que a Quinta de Foz de Arouce faz pouco mais de mil garrafas de um belo vinho desta variedade. Mas só muito recentemente, os vinhos de produtores bem conhecidos, Luís Pato e Campolargo, vieram chamar a atenção do mundo para o extraordinário potencial da Cercial, capaz de originar alguns dos melhores brancos nacionais.

No que respeita a castas tintas, a Alfrocheiro é certamente das mais injustiçadas. Trata-se de uma variedade de excelente qualidade, existente sobretudo no Dão e no Alentejo, mas também no Tejo e Lisboa. No Dão, ficou sempre tapada pela fama da Touriga Nacional e no Alentejo perdeu espaço para castas como a Aragonez ou a Alicante Bouschet. E no entanto, a Alfrocheiro origina vinhos de enorme elegância e finura, que em nada ficam a dever à Touriga Nacional. Felizmente, hoje em dia, são já vários os produtores do Dão que apostam nas virtudes desta casta em vinhos varietais (Quinta dos Carvalhais, Quinta do Perdigão, Quinta de Lemos, entre outros), para além de belíssimos exemplos no Alentejo (Paulo Laureano) e Tejo (Quinta da Lagoalva).

A região do Dão é igualmente o espaço privilegiado da Jaen, casta oriunda da região espanhola de Bierzo (onde tem o nome de Mencía) e que está em Portugal desde o final do século XIX. Por fazer vinhos tintos com pouca cor, no Dão foi quase sempre usada para os blends mais baratos, com uma ou outra honrosa exceção, como é o caso da Quinta das Maias que desde os anos 90 aproveitou uma vinha antiga de Jaen para fazer algumas colheitas memoráveis. Actualmente, marcas como Quinta da Pellada, Casa da Passarela, Quinta da Alameda ou Titular produzem vinhos Jaen que espelham o que de bom esta casta tem: delicadeza e sofisticação, num perfil elegante que lembra por vezes o do Pinot Noir.

O cenário da casta Castelão é bem distinto. É ainda a terceira mais plantada em Portugal, mas nos últimos 30 anos a área de plantação desceu dramaticamente e hoje quase ninguém planta uma vinha nova com Castelão. Já foi dominante nas regiões do Tejo, Lisboa e Alentejo. Atualmente, apesar de também aí valer cada vez menos, apenas mantém a liderança na Península de Setúbal. E, na verdade, é nesta região que a Castelão se mostra em pleno, sobretudo nos terrenos arenosos de Palmela e nas vinhas mais antigas. Aí, rótulos como Leo d’Honor, Periquita Superyor, Pegos Claros ou Horácio Simões mostram a verdadeira Castelão, a sua complexidade (lembra ameixa, tabaco, especiarias), os taninos polidos e suaves, a grande frescura de boca.

Se as vinhas velhas de Palmela são sobretudo de Castelão, já as centenárias vinhas do Douro escondem várias dezenas de castas diferentes, algumas delas desconhecidas até dos produtores que as cultivam. São essas vinhas que, na última década, têm fornecido matéria para diversas experiências vínicas com variedades de que só alguns ouviram falar. É o caso da Bastardo, nome pouco abonatório para uma casta que origina vinhos bem curiosos, como o produzido pela marca Conceito. Ou ainda o tinto Quinta de Cidrô da variedade Rufete e o rótulo Carvalhas feito de Tinta Francisca, ambos da Real Companhia Velha.

Mas não é apenas no Douro que se recuperam castas raras a partir de vinhas antigas. A quase desaparecida Tinta Grossa, outrora a casta tinta tradicional da sub-região da Vidigueira (Alentejo) recuperou recentemente a grandeza num vinho de Paulo Laureano.

Todas estas castas proporcionam ao apreciador internacional mais conhecedor, acostumado a néctares de todas as origens, uma experiência absolutamente única: beber um vinho de grande qualidade com aromas e sabores nunca antes experienciados. E isto é apenas o princípio. A arca do tesouro enterrada nas vinhas portuguesas ainda está por abrir e por explorar.

--%>