Caro leitor, a sua resposta pode ser importante: qual foi o vinho natural mais velho que já bebeu? Desculpe a pergunta, mas ela tem utilidade como ponto de partida para uma abordagem à mais recente moda do longevo mundo do vinho. Até agora, quando nos referíamos a grandes vinhos, falávamos quase sempre de vinhos velhos, de brancos e tintos secos que sobrevivem de forma admirável durante décadas ou de fortificados quase eternos, como um Madeira ou um Porto, por exemplo. Virou lei no sector que um vinho para poder ser considerado extraordinário precisa de vencer a prova do tempo. Não basta nascer soberbo. Tem que crescer em garrafa, complexar e durar o mais possível em grande nível, ao ponto de um dia poder emocionar quem o beber.
Os artíficeis destes vinhos costumam recomendar paciência, pedindo para se esperar pelo seu auge, que pode só chegar ao fim de uma, duas ou até mais décadas. Ao invés, muitos produtores de vinhos naturais quase que imploram para que os bebam depressa, nos próximos dois ou três anos, no máximo.
Será que o mundo do vinho virou do avesso? Ainda não. O que se está a assistir é a um movimento em favor do vinho saudável e do respeito pela natureza, uma versão líquida do movimento slow food e dos alimentos bio. Está em alta em países como a França, Estados Unidos, Itália e Espanha. Não é uma moda qualquer, nem um devaneio de uns quantos produtores hippies. Há cada vez mais consumidores ávidos por vinhos artesanais e saudáveis e também produtores interessados em seguir uma via mais naturalista e emocional em contraponto com o ambiente anódino do industrialismo vinícola. “Já ouvi muita gente dizer que os vinhos naturais são apenas uma moda que vai passar depressa, mas eu faço uma pergunta: a cerveja artesanal é uma moda que também vai passar? Basta ver como esse segmento de nicho se desenvolveu e cresceu para entender que não”, diz o brasileiro Ricardo Melo, proprietário da Mondinowines, uma pequena distribuidora de vinhos naturais em Londres.
Mas, afinal, o que distingue um vinho natural de um vinho dito convencional? Embora não haja legislação específica, nem mesmo uma definição consensual, vinho natural é um vinho feito sem químicos ou produtos industriais desde as uvas até à garrafa. A fermentação é feita com leveduras indígenas (presentes nas uvas), não são toleradas correcções ou intervenções como colagens e filtragens e, acima de tudo, está vedada a adição de sulfitos, o mais poderoso conservante do vinho. Basicamente é sumo de uva fermentado sem qualquer intervenção química e com mínima intervenção humana. Os seus defensores e praticantes sustentam que, além de mais saudável, é um vinho que expressa de forma mais autêntica a natureza das uvas e do seu lugar de origem. E lembram que o vinho “sempre foi natural em todo o mundo durante milhares de anos”. “Em Portugal, quando se produziam os vinhos de talha, não se usavam sulfitos. Ou, se usava, era muito pouco, apenas como assepsia, não para matar toda a vida que há no vinho e as leveduras, onde se encontra toda a magia dos vinhos. Com a tecnologia e a modernidade, o vinho foi sendo cada vez mais desconstruído e o mercado foi fazendo uma lavagem cerebral nos consumidores para que eles bebam sempre vinhos totalmente padronizados, pasteurizados, exactamente iguais, como se alguém que tivesse um filho quisesse todos os anos ter outro filho exactamente igual”, advoga Ricardo Melo.
Se o vinho é a expressão do terroir, então faz sentido que este seja o mais puro possível. Livrar as vinhas de contaminantes e alimentá-las com fertilizantes naturais, respeitando os ritmos da natureza, e intervir o menos possível na fase de vinificação faz todo o sentido. É este, de resto, o princípio essencial da viticultura biodinâmica, uma espécie de homeopatia da terra que tem como objectivo preservar a autenticidade e a singularidade de cada vinha. Embora não vá tão longe, a viticultura orgânica ou biológica também assenta nos mesmos princípios de promoção de práticas amigas do ambiente e da saúde humana. No entanto, quer a viticultura biodinâmica, quer a viticultura orgânica não são tão restritivas na adega, nomeadamente ao nível da adicção de sulfuroso (SO2) no vinho.
As leveduras industriais e o sulfuroso são os patinhos feios que os produtores de vinhos naturais querem ver longe das suas adegas. Mas este radicalismo tem enormes riscos, porque deixa os vinhos mais vulneráveis à oxidação precoce e à ocorrência de defeitos aromáticos e gustativos.
O sulfuroso, ou dióxido de enxofre, é um poderoso antioxidante do vinho que actua também como desinfectante, fungicida, bactericida, solvente de compostos fenólicos presentes na pele das uvas, melhorador de aroma e afinador de cor. Embora de diferentes formas, já é usado na produção de vinho há milhares de anos. Não é um produto inócuo e pode causar alergias, daí surgir nos rótulos dos vinhos a informação “contém sulfitos”. Mas se for usado em doses baixas não tem implicações na saúde. Por cautela, a Organização Mundial de Saúde (OMS) fixou um máximo de consumo diário de SO2 equivalente a 0.7mg/litro por quilo de peso, o que dará cerca de um copo a dois de vinho por dia para uma pessoa com peso normal. Os piores vinhos são, em geral, os que levam maiores quantidades de sulfuroso. Os vinhos doces naturais (sem adição de aguardente) também são fortemente protegidos com sulfuroso, por causa do açúcar residual que possuem. Mas quando comemos frutos secos descascados e embalados estamos a ingerir dez vezes mais sulfuroso do que se bebermos um copo de vinho.
O uso de sulfuroso no vinho não é uma inevitabilidade, mas é uma necessidade quando se pretende fazer vinhos estáveis e duráveis. Ao optarem pela fragilidade em nome da pureza e da autenticidade, os produtores de vinhos naturais estão a oferecer ao consumidor vinhos que podem estar hoje extraordinários e imbebíveis daqui a uns meses. Já nos aconteceu bebermos um grande vinho natural no Jura, em França, e, já em casa, poucas semanas depois, o mesmo vinho estar completamente oxidado.
Ainda assim, é um risco que muita gente parece disposta a correr. Em Portugal, o movimento dos vinhos naturais só agora começa a fazer o seu caminho. Ricardo Filipe, produtor dos vinhos Humus (Óbidos), é o rosto principal deste movimento. Não como prosélito militante, mas por ser aquele que mais vinho natural faz. Em 2007, começou a tratar os seus nove hectares de vinha de forma biológica. Em 2010, fez o seu primeiro vinho natural, um tinto, ao qual não não adicionou sulfuroso. Em 2011, fez o primeiro branco livre de sulfuroso. Em 2015, um ano fantástico para este tipo de vinhos, Rodrigo Filipe fez cerca de 20 mil garrafas de vinho natural.
Discreto e tímido, Rodrigo Filipe é uma espécie de anti-vedeta do vinho. “Comecei a fazer vinhos naturais como um desafio, porque tinham algo que me interessava, que era a autenticidade. E gostei do resultado. São vinhos que me dão muito prazer a beber. E também tenho tido bons feed-backs de pessoas que são intolerantes aos sulfitos”, diz.
Embora faça tudo para não usar sulfuroso, até por ser um produto desagradável ao olfacto, Rodrigo não partilha do radicalismo de alguns produtores de vinhos naturais. “Há anos em que não é possível deixar de usar algum sulfuroso. É preferível usar algum do que fazer vinhos estragados”, defende.
O grande desafio dos vinhos naturais prende-se com a sua regulamentação. Ao contrários dos vinhos orgânicos e biodinâmicos, que contam com entidades certificadores, os vinhos naturais não estão sequer consagrados em lei. Um vinho dito “natural” pode ser tão ou mais “químico” do que outro vinho qualquer, porque ninguém o controla. Há associações de defesa do vinho natural em vários países, mas cada uma tem o seu próprio regulamento. Em França, há associações que toleram o uso de algum sulfuroso, mas a associação espanhola, por exemplo, defende a interdição total.
Por outro lado, o termo “natural” tem algo de maniqueísta e dogmático. A existência de vinhos “naturais” pressupõe que os outros não são naturais, logo são piores. Este confronto não é meramente etimológico. O famoso escritor de vinho inglês Andrew Jefford afirmou à revista Decanter que alguns produtores naturais perseguem uma “perversão de ideias de naturalidade fundamentalista”. O crítico americano Robert Parker foi mais contundente, classificando os vinhos naturais como uma gigantesca fraude.
Não há razões para tanto. É verdade que se vendem vinhos naturais (a preços até mais elevados do que os ditos convencionais) que estão cheios de defeitos; é verdade que não há nenhuma entidade que ateste a sua elaboração; e também é verdade que existe alguma arrogância em muitos dos seus praticantes, ao colocarem todo os outros produtores de vinho no lado dos maus. Mas também há enormes virtudes neste movimento, porque pode ajudar o sector a optar por práticas mais sustentáveis e a intervir menos quimicamente no vinho. “No futuro, vamos olhar para o vinho natural como uma dádiva. Os consumidores estão, talvez pela primeira vez, a começar a questionar seriamente o que vai dentro do vinho que bebem, assim como milhões já fazem com a comida”, defende a Master of Wine francesa Isabelle Legeron, responsável por uma das principais feiras de vinhos naturais do mundo, a RAW, que se realiza em Londres.
O único viticultor biodinâmico certificado em Portugal tem 72 anos
Fernando Paiva
Se não o conhecêssemos e se nos tivessem falado pela primeira vez do único viticultor biodinâmico certificado em Portugal, imaginaríamos alguém entre os 30 e os 50 anos, de ar negligé, talvez um hippie ou um wine freak. Alguém a procurar fugir das modas e a viver de forma extravagante e alternativa. Um homem a fumar tabaco de enrolar e, de vez em quando, até uns “charros”. Um beberrão de tintos e brancos alternativos, um produtor meio louco a fazer vinhos intransigentes numa adega simples, muito artesanal, com tecnologia mínima.
Mas nada do que pudéssemos imaginar, a não ser a simplicidade da adega e a vontade de fazer vinhos autênticos, encaixa em Fernando Paiva. Não fuma, é discreto, faz os seus vinhos sem grandes alaridos e tem 72 anos. Elegante e com a pele bem tisnada pelo sol do campo, é um septuagenário em grande forma e muito preocupado com o que come e bebe. “Tornei-me biodinâmico a pensar na minha saúde. Fui egoista, reconheço”, diz.
Fernando Paiva possui a Quinta da Palmirinha, em Bouça Chã (concelho de Felgueiras), e uma pequena parcela de 0,5 hectares junto a Amarante. Ao todo são cerca de 3,5 hectares de vinha que herdou de família. Palmirinha era o petit-nom da mãe, que morreu com 104 anos. Antes de ser viticultor, Fernando Paiva foi professor de História e Português no 2º Ciclo em Amarante. E dirigiu durante alguns anos o jornal local.
Reformado aos 56 anos, virou-se para as vinhas sem saber muito bem o que fazer. No ano 2000 surgiu-lhe a possibilidade de realizar em Celorico de Basto uma formação com o especialista francês em biodinâmica Pierre Masson. “Na altura, nem sequer conhecia a palavra ´biodinâmica`”, recorda. E durante essa semana de formação teve uma espécie de epifania. Masson dera-lhe a conhecer um mundo novo, uma nova forma de encarar o cultivo da terra e a transformação dos alimentos, sem pesticidas e outros produtos químicos, em respeito pela natureza e pelo bem-estar da humanidade. Fascinou-o a ideia de produzir uvas e vinhos saudáveis, num ambiente holístico, em que tudo o que a vinha precisa para se alimentar e proteger tem origem na própria exploração agrícola, nas plantas e nos animais que a povoam. “Comecei por ter grandes dúvidas. O que eu precisava de saber era se a agricultura biodinâmica poderia ser generalizada ao ponto de poder assegurar a alimentação da humanidade. E na altura fiquei bastante convencido”, conta.
Nessa época, o valor das uvas na região era muito baixo e tendia a diminuir ainda mais. Pela mesma altura, Fernando Paiva leu um artigo sobre uma investigação feita em França que concluiu que os agricultores eram o grupo profissional com maior incidência de cancro na cabeça, associado à exposição aos pesticidas. “Prejuízo por prejuízo, então mais vale fazer uvas biológicas”, disse para si. E foi assim que tudo começou.
Os primeiros anos foram de aprendizagem. A sério, só a partir de 2007 é que Fernando Paiva começou a fazer viticultura biodinâmica. Sempre com um sentido prático e sem ceder ao esoterismo e à religiosidade que muitos agricultores biodinâmicos cultivam. “Eu sou agnóstico”, diz. Mas, mesmo não sendo homem de fé, acredita na eficácia do preparado de bosta (o preparado 500) que é usado no solo para aumentar a vida microbiana e facilitar a obsorção dos minerais por parte das videiras; acredita no preparado 501, uma mão cheia de cristais de quartzo moídos que são enterrados num corno de vaca desde a Páscoa até ao Outono e que, pulverizado sobre a vinha, depois de ser agitado numa grande quantidade de água durante uma hora, ajuda à frutificação e à maturação dos cachos; acredita nas macerações hidroalcoólicas de folhas de consolda, urtiga, cavalinha e eucalipto, que usa para tornar as videiras mais resistentes a várias doenças; e respeita dentro do possível o calendário desenvolvido por Maria Thun com as actividades que devem ou não devem ser realizadas em cada dia do ano, de acordo com as energias cósmicas que chegam à Terra. Uma espécie de avatar biodinâmico do almanaque Borda d’água. Também não tem dúvidas sobre a importância das abelhas na paisagem cultivada, como polinizadoras e como transportadoras de veneno, com efeito estimulante conhecido na vida das plantas; e por isso tem sempre uma ou duas colmeias na quinta, bem como cerca de 50 a 60 galinhas, que ajudam a diminuir as ervas infestantes e também, queixa-se Fernando Paiva, a “alimentar raposas e milhafres”.
Tudo isto dá muito trabalho e requer bastantes conhecimentos. Fernando Paiva faz regularmente macerações de plantas e já chegou a fazer os principais preparados. Mas, como diz, prefere comprá-los “a quem os sabe fazer mesmo bem”. E o seu principal fornecedor é Pierre Masson, o homem que lhe deu a conhecer a agricultura bodinâmica.
Desde então, já teve outros formadores, como Daniel Noel, Daniel Pasquet (que o aconselhou tecnicamente durante dez anos), Jacques Fourés e Nicolas Joly, um dos mais famosos produtores biodinâmicos de França. Depois ter trabalhado em Finanças no Reino Unido e nos Estados Unidos, Joly regressou em 1977 para tomar conta da propriedade da família no vale do Loire e começar a fazer alguns dos melhores vinhos desta região.
Fernando Paiva ainda não chegou tão longe, mas os seus vinhos, com a marca Quinta da Palmirinha, merecem ser descobertos. Em Portugal, só são conhecidos no circuito alternativo. O grosso das cerca de 15 mil garrafas que produz é vendido no Reino Unido, Alemanha, Espanha, Noruega, França, Estados Unidos e Canadá
A sua premissa é a de que os vinhos “são feitos pela natureza”, pelo que se limita a ser um mero intermediário na transformação das uvas, sem desengace e leveduras industrias e indo até mais longe do que impõe o caderno de normas da viticultura biodinâmica. De acordo com a entidade certificadora, a empresa alemã Demeter, os vinhos biodinâmicos podem levar até 120 mg/l de sulfuroso. Mas Fernando Paiva usa muito menos e no tinto da casta Vinhão que fez na última vindima não usou mesmo nada. Ainda no inox, é um vinho cheio de fruta vermelha, fresquíssimo e nada adstringente.
A mesma pureza e franqueza é também notória nos brancos (todos sem barrica), em especial no Quinta da Palmirinha Loureiro. O 2015 está muito delicado e fino, revelando uma precisão aromática e uma frescura deliciosas. Tem apenas 11,5% de álcool, mas parece mais gordo e a acidez não magoa, como acontece com tantos vinhos verdes. O Loureiro/Azal 2015 é ainda mais seivoso, por ter mais acidez e menos álcool (11%). Muito interessante está também o Azal/Arinto 2015, um branco de textura gorda, com alguma sensação tânica até e grande frescura. Por sete euros, o preço estimado a que chegam ao mercado, são vinhos imperdíveis.