Fugas - Vinhos

  • Martin Henrik
  • Nelson Garrido
  • Nelson Garrido
  • Nelson Garrido

Promessa cumprida: Um ramo dos Ferreira voltou a ser duriense

Por Manuel Carvalho

A saga do trineto de Dona Antónia Adelaide Ferreira desde que visitou o Vale Meão aos sete anos até que ficou dono da quinta e senhor de um dos mais bem- -sucedidos projectos do Douro contemporâneo. Uma história que deu um livro assinado pelo personagem principal: Francisco Olazabal.

A primeira vez que Francisco Olazabal pôs os pés na Quinta do Vale Meão foi numa Primavera. Tinha sete anos e ainda hoje conserva uma memória vívida dessa experiência. “Lembro-me do cheiro intenso. Tudo ressumava a flor de laranjeira”, diz. Não se pode dizer que essa estreia carregada de odores do Douro na Primavera e de ofertas estranhas a um rapaz da cidade, como a de uma gaiola com um abelharuco lá dentro, foi o princípio de uma ideia que demorou uma vida a concretizar: a posse plena da quinta. Mas foi o princípio de uma história. Em 1994, Francisco Olazabal compra os pequenos lotes de capital dispersos por dezenas de membros da família e dedicou-se a uma segunda vida que culminou com a criação de um dos principais ícones do vinho português, o Vale Meão. Este ano, Francisco Olazabal lançou um livro sobre a quinta em torno da qual gravitou uma boa parte da sua vida. É um texto de memórias e de afectos que nos ajudam a entender melhor uma das mais extraordinárias quintas do Douro. E, por consequência, a grandeza dos seus vinhos.

O Douro que Francisco visitou pela primeira vez em 1945 era um mundo remoto, esquecido e muito diferente do actual. No Vale Meão as condições eram mínimas – “não era um sítio muito apetecível, nem sequer tinha casa de banho”, recorda Francisco. A malária só seria erradicada do vale em 1948. E a situação dos trabalhadores roçava os limiares de miséria. “O meu pai sofria imenso com a pobreza no Douro. Achava que o Douro era vítima de uma exploração desalmada. Por isso ele nunca pôs os pés no Grémio dos Exportadores, que era dominado pelos ingleses”, diz. Não admira que as visitas à quinta da família fossem raras e breves. Pelo menos até que, por volta dos 16 anos, Francisco Olazabal começou a correr os seus montes na caça.

Hoje, esse cenário faz parte do passado. Ainda subsiste o intenso aroma das flores da laranjeira. O meandro do rio que, numa súbita inflexão do seu curso, faz uma derivação para Norte antes de se regressar ao seu caminho directo até à foz, continua a ser o mesmo lugar belo onde a exposição solar e a influência das águas do rio criam uma espécie de paraíso para as videiras. Mas a adega do Vale Meão foi modernizada, os caminhos retocados e a casa onde os pioneiros da família se instalam desde o século XIX dispõe hoje de todas as condições de conforto. Em pouco mais de 20 anos, a posse plena da propriedade por parte de Francisco Olazabal e da sua família significou de alguma forma o renascimento do projecto ousado, quase extravagante, que Dona Antónia Adelaide Ferreira lançou em 1884. Há novas plantações de vinha na encosta e hoje a empresa é capaz de produzir umas 250 mil garrafas de vinho que se exportam para vários países.

A conquista do Meão

Entre o momento em que Dona Antónia se lançou na construção do Vale Meão e o desenvolvimento que o seu trineto lhe concedeu há um fio condutor. Que nem sempre é permanente. Mesmo que na memória da família a conquista do Meão seja vista como a mais arrojada iniciativa empresarial de uma mulher com uma extraordinária garra e visão para o negócio. Por volta de 1870, quando a filoxera começava a causar graves danos no Douro, Dona Antónia investe na compra de parcelas junto ao Pocinho para criar a sua utopia. Um administrador dos Ferreira escreveu ao seu segundo marido, Silva Torres, em 1877, avisando-o: “Faça a sua vontade na conquista do Monte Meão [a quinta também era conhecida por este nome] se dessa conquista lhe puder vir algum prazer, porque interesse certamente não”. O cepticismo de Claro da Fonseca seria, no entanto, superado pela tenacidade de Dona Antónia. Em breve, o comboio chegaria ao Pocinho e o projecto podia finalmente avançar.

A primeira vinha, junto ao lugar da Barca Velha, um lugar de passagem do rio, começa a ser plantada em 1888. As casas para os donos e para os caseiros avançam em simultâneo. As adegas avançam e ficariam prontas em 1895. Só para estes edifícios foram necessárias 6000 toneladas de pedra, que tiveram de ser transportadas de pedreiras localizadas a mais de 20 quilómetros de distância. Para as trazer até à obra, os carros de bois que as carregavam tiveram de percorrer 240 mil quilómetros. Milhares de trabalhadores vieram de toda a região. A maioria, porém, viajou desse a Galiza. O Vale Meão tornou-se uma realidade e passou a fazer parte da elite das quintas de Dona Antónia, onde se incluíam preciosidades como o Vesúvio, Arnozelo ou Vargellas.

Por pouco tempo. Em 1896 Dona Antónia morre. A quinta entra então no seu primeiro capítulo de fragmentação, por força das heranças. Se a empresa comercial, a Casa Ferreira, se transforma numa sociedade por quotas, as propriedades são dispersas. Na primeira partilha, o Vale Meão fica na posse de uma das filhas de Dona Antónia, Maria da Assunção, que casara com o conde de Azambuja (filho do Duque de Loulé), um casal da alta nobreza lisboeta pouco dado a amores por lugares com pó e calor tórrido. Quando chega a vez das partilhas entre os netos, a quinta é já dividida por três das filhas de Maria Assunção, em 1905. Depois de um acordo negocial, a posse da propriedade ficaria apenas nas mãos de Maria Tereza e de Maria Luiza. Até 1973, estes dois ramos de herdeiros da Ferreirinha tomarão conta dos destinos do Vale Meão.

Maria Luiza e o seu marido, o basco Ramon de Olazabal y Eulate, conde de Arbelaiz, ainda vivem cerca de dois anos no Vale Meão, em 1919. Mas seria necessário esperar quase um século para que um descendente de Dona Antónia repetisse a sua paixão pelo Douro e pelas vinhas e montasse lá o seu quartel-general.

Em 1921, Ramon vai para o Porto, onde administrará a Casa Ferreira até ao seu falecimento e o seu filho, Jaime, pai de Francisco Olazabal, sucede-lhe em 1950. Durante este longo período de estagnação do comércio de vinho do Porto, a quinta torna-se uma realidade distante para as prioridades da família. “Nunca deu prejuízo”, recorda Francisco Olazabal, mas o seu potencial produtivo e as suas infra-estruturas foram definhando lentamente. Desde 1952 que as suas uvas estavam na base do lote do famoso Barca Velha, mas nem esse estímulo era capaz de inverter a estagnação em que caíra – Francisco Olazabal afirma no seu livro que o vinho não se chamou Vale Meão porque o seu pai se opôs, alegando que parte das uvas que o originaram não provinha da quinta.

A segunda vida do Meão

A recuperação do vinho do Porto depois de 1963 cria condições para que, uma década mais tarde, se investisse pela primeira vez numa nova plantação de oito hectares. Mas a quarta geração de herdeiros tinha multiplicado os proprietários. Eram agora dezenas. A fragmentação reduz os proveitos e dificulta a gestão. Muitos querem vender. Em 1974, o ramo Olazabal adquire a totalidade da quinta aos seus primos Sequeira. A construção da barragem da Valeira inunda parte da quinta e com a indemnização recebida, 1500 contos, a modernização da propriedade ganha novo impulso. Francisco Olazabal exige que este valor seja reinvestido em novas plantações e pede um conselho ao tio José António Rosas (administrador da Ramos-Pinto, criador da quinta de Ervamoira e pai de José Rosas, o actual líder da empresa) sobre que castas plantar. A resposta, em 1975, antecipa o futuro do vinhedo duriense: Touriga Nacional.

Após a morte de Jaime de Olazabal, em 1982, uma nova ronda de negociações reduz o número de proprietários de 22 para sete. Francisco entra na onda e eleva a sua participação de 6.5% para 38%. O sonho de juventude começa a ganhar consistência. Mas, o seu centro de interesses continuava a gravitar em torno da Casa Ferreira. Nos anos 80, a empresa estava em boa forma e começa a ser objecto de cobiça de multinacionais como a Seagram. Dividida por 140 herdeiros de Dona Antónia, a Ferreirinha estava vulnerável a assaltos hostis e a pulverização de accionistas ameaçava paralisá-la. “Não havia ninguém com muita vontade de andar para a frente”, recorda Francisco Olazabal. Artur Santos Silva, o homem-forte do BPI, tenta organizar um MBO (uma compra da empresa por uma parte dos sócios), mas “havia pela parte da família uma vontade de vender e de encaixar dinheiro”. Em 1987 a empresa é vendida à Sogrape.

Francisco Olazabal continua na administração mas, em 1994, há uma possibilidade de negócio que lhe muda o curso da vida. Os seus seis primos com quem dividia o Vale Meão querem vender as suas partes. Olazabal vê finalmente aberta a porta para se tornar dono da obra da sua trisavó. Com o dinheiro que recebe da venda da Casa Ferreirinha, avança. “Dei tudo o que tinha. Como se diz no poker, entreguei a cave”, recorda. Nesse ano, a quinta passa integralmente para as suas mãos. O seu filho Francisco (Xito) Olazabal estava a terminar o seu curso de enologia em Vila Real. O projecto para uma segunda vida do Vale Meão estava em curso.

Para o concretizar, Francisco tinha de tomar uma opção difícil. A de trocar a administração da Ferreira pela incerteza de um projecto no Meão. “Ia fazer 60 anos e pensei: se não der este passo agora, nunca mais dou”, recorda. Foi a decisão mais difícil da sua vida? “Não sei, mas foi certamente a mais excitante”. Xito tinha começado a vinificar os vinhos da Quinta do Vallado, na posse de um ramo da família Ferreira, e torna-se o principal entusiasta do Vale Meão. “Disse-me que tínhamos todas as condições para ter sucesso. Disse-me que estava até pronto a vir para cá viver”, recorda o pai. Quase um século depois da breve passagem de Ramon Olazabal pela quinta, um descendente de Dona Antónia mostrava vontade de viver no Meão com a família. Se havia dúvidas ou incertezas, Xito demoliu-as uma a uma. “Ele nunca teve dúvidas. Dizia-me para me não preocupar. Nunca tremelicou”, recorda Francisco Olazabal.

Decisão tomada, havia arestas para limar. A mais importante era a de encerrar o acordo de abastecimento de uvas à Ferreira, para vinho do Porto e, fundamentalmente, para os Barca Velha. A Sogrape já tinha antecipado essa possibilidade quando adquiriu, poucos anos antes, a Quinta da Leda. Uma nova adega estava projectada para esta quinta em 1999. Um ano antes, Francisco Olazabal sente que a sua missão na Casa Ferreirinha tinha acabado. Sai e dedica-se de corpo e alma ao Vale Meão.

Hoje, permite-se dizer que fora capaz de antecipar o sucesso da sua opção, por acreditar desde sempre que “tínhamos todos os trunfos na mão”. Mas antes da estreia do primeiro vinho, de 1999, admite que viveu tempos de “ansiedade”. Chegava a levantar-se de noite e ir provar os vinhos com medo que estivessem estragados. “Aquilo tinha de correr bem. Se começássemos mal, a coisa nunca mais se resolveria”, diz. Os investimentos feitos impediam-no de optar por um estilo como o do Barca Velha por “não termos condições para esperar seis ou sete anos pelo momento da venda”. O que Xito e o pai tinham congeminado era um tinto opulento, com aromas e sabores modernos mas ancorados nas características únicas do Vale Meão. Quando os primeiros vinhos chegaram ao mercado, as críticas foram entusiásticas. A Revista de Vinhos deu-lhe 19 pontos (em 20) e considerou-o o “melhor vinho lançado em 2001”; A Wine Spectator conferiu-lhe 90 pontos em 100. Nos anos seguintes, as pontuações foram subindo. Em 2014, o Vale Meão chegou ao quarto lugar no top 100 mundial da Wine Spectator.

Nesta sua nova fase da vida, os Olazabal estão bem no Douro. Xito e a família continuam por lá. Há netos que nasceram na quinta e já se habituaram aos aromas do vale na Primavera ou aos pássaros (há mais de 100 espécies na quinta) que tanto impressionaram o avô. “Depois de cinco gerações, tenho netos durienses. Do coração”, diz Francisco Olazabal com um sorriso largo. Hoje com 68 anos, Vito, como é conhecido no sector, está por isso bem com a vida. O Vale Meão está bem e “pode ir agora mais longe”.  Numa tarde escura, entre o barulho da chuva e o chilreio dos pássaros, recosta-se no sofá numa das salas da quinta e confidencia: “Sou um homem com sorte”.

Os vinhos que nascem no meandro

O vinho icónico do projecto dos Olazabal é sem dúvida o Vale Meão, mas na estratégia da empresa houve outras apostas certas e há iniciativas que prometem dar que falar no futuro próximo. Actualmente, das cerca de 250 mil garrafas produzidas na quinta, o Vale Meão representa cerca de 30 mil e o Meandro, a segunda marca da casa, por volta de 200 mil. Pelo meio há o Monte Meão Touriga Nacional e os vinhos do Porto. E em breve haverá novidades. Um Tinta Roriz extreme e… um Baga.

A base dos vinhos da quinta continua a ser a casta Touriga Nacional. Nos 85 hectares de vinha do Vale Meão, e esta casta que domina os encepamentos, juntamente com a Touriga Franca e a Tinta Amarela. Para lá do Monte Meão varietal, a casta-rainha do país faz parte de mais de 50% do lote do Vale Meão. Mas as plantações mais recentes permitiram a Xito Olazabal, um dos mais reputados enólogos da sua geração, outras opções. Entre as castas disponíveis há agora variedades como a Tinta Francisca, a Tinta da Bairrada (a Baga), a Cornifesto ou a Rufete.

Contrariando alguns indícios do princípio da carreira, Xito Olazabal devota uma crescente atenção ao vinho do Porto – um fenómeno que alastrou aos jovens enólogos que mudaram o mapa dos DOC Douro na década de 1990. O Vale Meão tem 300 mil litros de vinho do Porto em envelhecimento. Em breve começará a reforçar a sua dimensão como casa de vinho do Porto. O que já se conhece, promete. Experimente-se o Vale Meão Vintage 2000, por exemplo. Um vinho notável. Como que a confirmar que, com uma vinha como a do Meão, o difícil mesmo é fazer vinho mau.

--%>