Em 1995 a equipa de enologia da Fladgate Partnership, grupo que controla empresas como a Croft, a Taylor’s ou a Fonseca, decidiu abrir as janelas a outra interpretação do estilo Porto vintage. Aos tradicionais vintage clássicos ou aos Single Quinta foi decidido acrescentar um vintage de terroir. No caso, um vintage produzido exclusivamente a partir das vinhas velhas da Quinta de Vargellas, um paraíso vitícola que se situa pouco depois da entrada para o Douro Superior. David Guimaraens, que tinha acabado de chegar ao grupo e preparava-se para dar seguimento à longa linhagem da família na direcção da enologia da Taylor’s e da Fonseca, lembra-se das discussões que estiveram na origem da criação dos Vinha Velha. E do seu desfecho: “O projecto avançou porque os vinhos eram extraordinários”. E continuam a sê-lo.
Depois de 1995, foram nascendo ao longo dos anos mais seis edições de Vinha Velha e há algumas semanas, o médico e coleccionador Flávio Alves decidiu organizar uma prova vertical destes vintage para avaliar a consistência da sua evolução. David Guimaraens foi convocado para dirigir a prova – nem ele tinha alguma vez feito uma prova vertical de todos os Vinha Velha. Que atingiu um nível surpreendente. Por um lado, é impossível não notar nos sete vinhos separados por quase 20 anos um perfil e uma identidade inconfundíveis. Por outro lado, fica-se com a sensação de que os vintage provenientes de vinhas muitas velhas apresentam uma elegância aromática, uma fineza tânica e uma riqueza gustativa que os tornam mais fáceis de beber sem terem de passar as duas ou três décadas de envelhecimento recomendadas para os vintage clássicos, por natureza mais concentrados e com uma estrutura mais dura.
Tal como acontece com o magnífico Stone Terraces da Graham’s, os Vinha Velha revelam uma feição mais feminina dos Porto Vintage. Apresentam um aroma mais floral que por vezes chega a sugerir rosas, e temperos balsâmicos de arbustos do Douro (rosmaninho, esteva). Os seus taninos são mais suaves do que os dos vintages tradicionais, mas nem por isso os Vinha Velha carecem de garra e intensidade. E, sim, a sua frescura e elegância final são um privilégio para os sentidos. Ainda que, como é evidente, entre os vinhos recentes com o 2011 e os da década de 1990 haja a considerar os efeitos do factor tempo e da variação das características das diferentes vindimas, há nestes vintage o denominador comum de uma mesma origem e de um mesmo património vitícola cada vez mais raro.
Os anos dos Vinha Velha não coincidem necessariamente com as vindimas dos vintage clássicos. Na série de sete edições, apenas quatro (1997, 2000, 2007 e 2011) se enquadraram no espírito das grandes declarações. Normalmente, a produção é limitada a 3000 litros, o que dá para cerca de quatro mil garrafas. Uma quantidade que representa entre 1 e 2% da capacidade de produção das vinhas velhas de Vargellas – a parte restante continua a ser uma âncora fundamental dos vintages da Taylor’s. Actualmente, o mercado português absorve uma parte importante desta produção. Mas houve anos, como o de 1997, em que a totalidade do Vinha Velha foi para exportação.
A criação dos primeiros Vinha Velha “ensinou-me muito do que sei hoje”, diz David Guimaraens. Em primeiro lugar porque o que esteve em causa desde 1995 foi a aplicação da teoria da “adega mínima”. “Aqui não há nada de enologia moderna”, explica David. “O que mudou nestes vintages em relação aos de um século foi a aguardente”, acrescenta o enólogo. Depois de 1991, a compra de aguardente foi liberalizada e poucos anos depois o grupo Taylor’s dedicou particular atenção ao perfil e à aguardente utilizada na produção de vinho do Porto o que, garante o enólogo, alterou radicalmente a qualidade. O que está na origem do perfil dos Vinha Velha é, como o próprio nome sugere, a qualidade do vinhedo histórico de Vargellas.
Dos quase 200 hectares de vinhas da quinta adquirida pela Taylor’s Fladgate & Yeatman entre 1893 e 1896, cerca de 15 são de vinhedos com muitas décadas de vida. Situam-se nas parcelas do Polverinho, Renova do Armazém, Renova do Depósito, Gricha e Vinha Grande. No final do século XIX, a filoxera tinha arrasado as suas plantações. Os novos donos começam uma tarefa hercúlea para as reconstruir. Em 1911, um notável historiador do Porto, Manuel Monteiro, escreveu de Vargellas “Pertence à empresa bem conhecida e altamente reputada Taylor Fladgate & Yeatman de Vila Nova de Gaia, que a comprou em 1893. No entanto, em tal ruína foi por eles adquirida e em tal estado de abandono e negligência estava que, muito embora constitua um domínio extenso, produziu somente a quantidade improvável e insignificante de quatro pipas de vinho! No entanto, os esforços inabaláveis dos Srs. Taylor & Co., sólida e praticamente orientados, cultivando o solo e rompendo a rocha, logo causaram a fecundidade dos tempos antigos brotar de novo a partir do solo estéril e com ousadia e sucesso únicos este melhorou.”
O esforço de replantação com porta-enxertos capazes de resistir à filoxera (um insecto proveniente da América do Norte contra o qual as videiras nacionais não tinham defesas) prossegue durante décadas. Boa parte das vinhas que chegaram até nós têm a assinatura de dois nomes históricos da empresa e do vinho do Porto: Frank Smiley Yeatman e o seu filho Dick Yeatman, que à boleia dos seus estudos em viticultura na universidade francesa de Montpellier foi pioneiro no Douro na instalação de socalcos com uma única casta, entre 1927 e 1935. As vinhas velhas de Vargellas nasceram por isso na sequência desse imenso esforço de reconstrução do Douro depois da destruição da filoxera, no final do século XIX. “Foi uma época de ouro na região, que durou entre 1900 e 1930”, diz David Guimaraens.
Se o enólogo diz que muito do que faz e pensa sobre os grandes Porto se deve às características das vinhas velhas, é porque encontrou na qualidade e no estilo dos vinhos que produzem um modelo a conservar. David é conhecido no Douro por ser um intransigente defensor dos saberes ancestrais da região. Os vinhos DOC Douro não o atraem como à maioria dos enólogos da sua geração – pelo contrário, o grupo Taylor’s continua a recusar fazê-los. A rega da vinha é para ele um pecado sem remissão. Os estudos que fez sobre a memória da viticultura do Douro, em grande medida liderados pelo viticultor António Magalhães, levaram-no a concluir que nas opções dos agricultores de há um século ou mais havia um saber empírico e uma racionalidade que merecem ser consideradas. “Sabemos hoje, por exemplo, que a escolha das castas nessa época era intencional” e não resultado de um mero acaso, com até há bem pouco tempo se acreditava, sublinha David. “Nós lemos pouco as memórias dos séculos XVIII e XIX. Muitas vezes andámos à procura de descobrir a roda”, afirmou no ano passado António Magalhães no decorrer de um seminário promovido pela Fladgate Partnership.
O potencial das vinhas velhas acabou por isso por servir como inspiração para a crítica das opções tomadas no Douro depois dos anos 70/80 do século XX. “A mecanização mudou os princípios da viticultura”, diz David e criou uma oposição na região entre “as vinhas velhas e as vinhas novas” que se confirma nas marcas da paisagem. Para David, “o que aconteceu nos últimos 30 ou 40 anos foi um descalabro”. Na armação do terreno, na condução da vinha ou na escolha das castas. Quando nas vinhas velhas coexistem por vezes dezenas de variedades, nas vinhas modernas a selecção restringiu-se a três ou quatro castas e a um certo predomínio da Touriga Nacional – o que muitos viticultores designam depreciativamente por “touriguização”, um fenómeno que se expandiu para outras regiões do país.
Os trabalhos de David Guimaraens e de António Magalhães no sentido de recuperar o potencial das vinhas velhas tinham como condição prévia a manutenção de elevadas densidades de plantas por hectare sem que o recurso à mecanização fosse impedido. Foi assim que nasceu a “Segunda Geração do Socalco Pós-Filoxera”, que está na base das restruturações das vinhas realizadas pela empresa – a área de vinha do grupo ultrapassa os 500 hectares. Para manter a identidade genética de Vargellas, as vinhas são reconstruidas ou replantadas através do recurso a plantas já existentes nas vinhas velhas. E para fechar o círculo, a equipa técnica da empresa replica no terreno as castas escolhidas há décadas por Frank e Dick Yeatman.
David Guimarães, divide-as entre as “castas principais” que valem entre 60 e 80% do lote final (a Touriga Francesa, “a casta mais consistente que nós temos”, a Touriga Nacional, a Tinta Roriz e a Tinta Barroca), as “castas diferenciadoras”, que representam entre 20 e 30% do lote (Tinta Amarela, Tinto Cão, Tinta da Barca, que é a ex-libris da quinta de Vargellas, e a Tinta Francisca). Depois, há ainda um conjunto de “castas residuais” que apenas afinam o lote. Inclui-se aqui o Rufete, a “alentejana” Alicante Bouschet, que era presença habitual nas vinhas pós-filoxéricas – vale perto de 3% das vinhas velhas da quinta da Roeda-, ou a mais incompreendida Mourisco. “Hoje, quando planto uma vinha uso sempre oito ou nove castas”, sublinha David Guimaraens.
O que essa diversidade existente nas vinhas velhas exprime é, na opinião do enólogo, a primazia da elegância e a fineza em detrimento de uma certa “brutalidade” que alguns vintage exibem – pelo menos na sua fase inicial, embora, na generalidade esta categoria de vinhos seja hoje muito mais polida do que há apenas 20 ou 30 anos. Mas, entre todos os vintage que surgiram nos últimos anos, os Vinha Velha (ou o Stone Terraces da Graham’s, como se disse) apresentam, de facto, um perfil muito mais delicado e elegante do que a maioria dos seus pares.
Sete vinhos para nota máxima
Vargellas Vinha Velha 1995
Um ano com boas condições para a floração. O Verão começou fresco e lá para Agosto as temperaturas subiram. A vindima fez-se em boas condições. No aroma este vinho revela notas de chá verde, sensações remotas de fruta e toque de garrafa. É de todos o menos límpido no nariz. Taninos muito finos e uma magnífica tensão no final de prova.
Vargellas Vinha Velha
Vintage 1997
Um ano marcado pela alta temperatura do Inverno e da Primavera, que acelerou a floração. Notas florais (rosa) muito originais e interessantes. Mais volume de boca que o antecessor. Alguma mineralidade no final, embora seja entre todos o menos imprevisível e surpreendente na boca.
Vargellas Vinhas Velhas 2000
Depois de um Abril e Maio muito chuvosos, a evolução da vinha fez-se sob a secura de Junho Julho, o calor intenso do princípio de Agosto e temperaturas mais moderadas do final desse mês e de Setembro. A harmonia deste vinho é a expressão desta ausência de calor extremo na fase final da maturação. Sem ser uma bomba aromática como alguns dos seus pares, a dimensão de fruta, de sensações balsâmicas e de especiaria dão-lhe uma enorme classe e personalidade. É um estrondo na boca. Expressivo mas ao mesmo tempo delicado, sofisticado e elegante. Um vintage estratosférico.
Vargellas Vinhas Velhas 2004
Após um inverno seco, o ano foi excelente e a temporada das vindimas reuniu as condições ideais. Aroma pujante de fruta, esteva e sugestões de chocolate. Opulento pelo seu volume e pelo nervo dos seus taninos, cuja polidez e requinte não lhe comprometem a elegância. Na sua fase actual é entre todos o que mais impressiona na boca. O seu final, com sensações apimentadas, é extraordinário.
Vargellas Vinhas Velhas 2007
Inverno muito chuvoso e quente. O clima manteve-se moderado durante o Verão. Um ano clássico para Porto Vintage. Este Vinha Velha tem uma aroma mais franco, mas talvez menos sedutor que os seus pares. Tanto que, quando chega á boca é uma revelação. Parece outro vinho. É aqui que se revela, mostrando um músculo que invoca o 2004 e uma subtileza que remete para o 2000.
Vargellas Vinhas Velhas 2009
Um Verão completamente seco e, com excepção do final de Agosto, de temperaturas moderadas. Um ano climático que sujeitou as vinhas a um stress elevado. Ano no qual a Vinha Velha mostrou todo o seu potencial. No aroma este vintage é talvez o mais admirável e atraente: fruta exuberante, notas de alecrim, esteva, numa montra de complexidade extraordinária. E na boca, este 2009 não desmerece. Pelo contrário. É um vinho cheio, que se mostra em diferentes andamentos sempre com uma explosão de sensações.
Vargellas Vinhas Velhas 2011
Inverno chuvoso ao qual se seguiu um período seco entre Maio e Agosto, No final deste mês a chuva apareceu e criou condições ideais para a fase final da maturação. Como consequência, 2011 é um vinho memorável – uma das grandes vindimas das últimas décadas. E o Vinha Velha não se ficou atrás – a consagrada crítica Jancis Robinson escreveu que o 2011 foi talvez o melhor vinho que se fez em todo o mundo. A sua juventude mostra-o como um vintage com aromas dominados pela fruta vermelha e preta, sob a qual se pressentem notas florais, sugestões balsâmicas, provocando uma impressão de enorme complexidade. Na boca, os seus taninos precisos e elegantes proporcionam a este vinho uma harmonia, passe a redundância, perfeita. O impacte que causa no palato é difícil de descrever, pela sua intensidade, pela sequência da aparição dos taninos, da fruta, de alguma especiaria e de uma acidez final que lhe garante uma notável frescura e longevidade. Um grande vinho do Porto.