Fugas - Vinhos

  • Nelson Garrido
  • Nelson Garrido
  • Nelson Garrido
  • Nelson Garrido

A vez de regressar a Portugal

Por Manuel Carvalho

Rogério de Castro é um dos mais conceituados cientistas portugueses no estudo da viticultura. Mas é também produtor na região dos Vinhos Verdes. Na sua Quinta de Lourosa ele e a sua filha Joana combinam o prazer da experimentação com o negócio. O Arinto que se desenvolveu ali está na base de um vinho que vale a pena conhecer.

Nas propriedades familiares onde se produz vinho, o nome das coisas aparece por vezes da forma mais singular. Na Quinta de Lourosa, a vinha do Avô chama-se assim porque é a parcela que fica mais perto da casa de onde os netos de Rogério de Castro o costumam ver trabalhar. A pequena vinha, que se inicia numa zona quase plana e se ergue depois até meia-encosta, não é conhecida apenas pela designação afectuosa dos netos de uma das personalidades que mais marcou a evolução da viticultura portuguesa nos últimos anos. É o também, e principalmente, por ser o lugar onde Rogério de Castro instalou o primeiro campo de selecção da casta Arinto em Portugal, já lá vão mais de 30 anos.

Nessa época, a Arinto era apenas uma variedade a mais entre o enorme mar de castas que se encontram nas vinhas velhas do país; hoje, é a casta rainha dos lotes do Alentejo e de quase todas as regiões por força da sua acidez e frescura. “É a casta mais plástica do país; dá-se bem em todas as zonas”, confirma Rogério de Castro
A Vinha do Avô é por isso mais do que uma simples parcela. É uma parte da história recente da viticultura e da ampelografia do país. Em Portugal “estudaram-se nas últimas décadas cerca de 200 clones de Arinto vindos de toda a parte. No final, seleccionaram-se cinco para serem homologados. E desses cinco, dois são daqui”, diz Rogério de Castro, um professor jubilado do Instituto Superior de Agronomia que continua a falar de videiras e de vinha com o entusiasmo de um principiante deslumbrado pela novidade. Esses dois clones vieram de uma vinha da Livração, onde o rio Tâmega se cruza com o Douro, e ainda hoje são a base das plantações de Arinto que Rogério de Castro faz na Quinta de Lourosa, que gere a meias com a sua filha Joana, também ela agrónoma. É com base na produção dessa plantação pioneira no estudo do Arinto que se produz o Vinha do Avô, um lote das colheitas de 2013, 2014 e 2015 com fermentação parcial em barrica que é vendido exclusivamente em garrafas magnum (ver texto nas páginas seguintes)

Na vinha da Arinto, como por todas as parcelas da Quinta de Lourosa que se estendem por 27 hectares, sente-se uma combinação entre a atitude científica, sempre mais aberta à experimentação e ao risco, e o realismo da economia, que obriga a procurar índices de produtividade ou perfis de vinhos ajustados ao mercado. “Temos de conjugar as duas coisas, mas a verdade é que uma [a ciência] ajuda a outra [a economia]”, diz Rogério de Castro. A verdade é que há ciência um pouco por todo o lado. Um pequeno pomar de macieiras e pereiras melhoradas geneticamente faz um pequeno triângulo entre parcelas. “Aqui, quase nenhuma árvore é minha”, diz Rogério de Castro, referindo-se às experiências que vários amigos do ISA ou da Universidade Trás-os-Montes ali realizam. Há também uma meia dúzia de bardos destinados a ensaios de alunos de doutoramento. E, a cada passo, bardos plantados recentemente pelo próprio mestre de viticultura. “É raro o ano em que não arranco uma coisa e replanto outra”, diz.

A geringonça na vinha

É, no entanto, na condução da vinha que a Quinta de Lourosa mais surpreende. Não admira. A tese de doutoramento de Rogério de Castro foi dedicada ao estudo da condução de macieiras jovens, mas cedo orientou os seus interesses para a vinha. Foi docente, presidiu a sessões de congressos científicos, fez visitas guiadas, orientou dezenas de mestrados e doutoramentos em várias universidades, publicou variadíssimos livros e estudos sobre a videira e a vinha e ainda hoje é consultor de empresas, entre as quais a Globalwine, cujo projecto de viticultura no nordeste brasileiro acompanha desde o início. No meio de toda esta azáfama, Rogério de Castro continua a ser o cérebro por detrás da operação agrícola da quinta, cabendo à sua filha Joana a gestão da parte de enologia, administrativa e comercial. Porque é entre os bardos das videiras, mexendo nas folhas e trocando os arames que as conduzem que ele se sente bem. Gesticula, descreve os comportamentos das plantas como se tivessem vontade própria, descreve o processo que o levou a optar por uma forma de viticultura e não por outra e, no final, reconhece que “temos de ser humildes com a natureza”. Uma vez tinha serrado videiras doentes para avançar com uma replantação e no compasso de espera deu conta que as plantas estavam a renascer já sem qualquer doença.

Olhando para os bardos das vinhas de Rogério de Castro fica-se com uma ideia de uma geringonça. Vários arames estendem-se entre os postes de madeira, como em qualquer vinha, mas aqui há diferenças. Os arames são amovíveis. Podem ficar mais baixos ou mais altos em função do desenvolvimento das plantas ou das operações de cultivo – poda, monda, vindima, etc. O objectivo é garantir que o ecossistema das videiras seja o mais saudável possível, que a capacidade de receberem luz seja maior e que os custos de trabalho sejam o mais baixos possível. Na Vinha do Avô as videiras de Arinto são conduzidas segundo o sistema Lys, que o próprio Rogério de Castro desenvolveu, mas um pouco mais abaixo há uma vinha de Loureiro com a parte foliar bem mais alta do que é normal – uma vinha pensada para poder acolher rebanhos de ovelhas ou animais de capoeira, que na terminologia científica é designada por R5C2.

Esta intenção de fazer regressar animais às vinhas obedece à convicção que Rogério de Castro tem sobre a necessidade de a agricultura regressar a práticas mais sustentáveis e amigas do ambiente. “O meu pai não sabia o que era a produção biológica ou a viticultura biodinâmica, mas era assim que ele fazia agricultura”, lembra o académico. O uso de tojos e de excrementos animais era uma prática antiga que, na medida do possível, pode estar de regresso. Até lá, há pequenos detalhes em que a propriedade mostra estar a par das tendências contemporâneas da agricultura amiga do ambiente. O espaço livre entre os bardos é capinado alternadamente, o que permite que haja coberto vegetal suficientemente desenvolvido para acolher insectos – “aqui há bichinhos e nós precisamos deles”, diz Rogério de Castro. Joana, lembra que havendo erva alta, as cigarrinhas verdes não atacam a vinha.

Com as diferentes parcelas estendendo-se entre o cenário de povoamento disperso típico da zona entre Lousada e Felgueiras, a Quinta de Lourosa é um puzzle não só de experiências ou de formas originais de viticultura. É também um puzzle de castas. Nas zonas mais altas há Arinto e Alvarinho, mas também Merlot ou Touriga Nacional. “Planto qualquer coisa nova todos os anos”, diz Rogério de Castro. Uma das suas últimas experiências faz-se com a Encruzado, uma variedade branca do Dão com crescente protagonismo. Mas há também Verdelho, Gouveio, Moscatel ou Avesso.
Nem toda a produção da quinta é usada na comercialização das marcas da casa. Pelo contrário, cerca de metade da vindima é vendida a comerciantes ou adegas cooperativas da região. O resto da matéria-prima é vinificada na adega frugal, mas suficiente, instalada no coração da propriedade Ao todo, as marcas da Quinta de Lourosa vendem 150 mil garrafas.

A maior parte destes vinhos são exportados. “Mais de 95% vão para fora, principalmente para a Alemanha mas também para países como a Dinamarca ou a Polónia”, diz Joana de Castro. Em regra, os vinhos com a assinatura de Joana têm teores de açúcar residual muito baixos e tendem a fugir de uma certa tendência da região dos Vinhos Verdes para usar leveduras que dão origem a vinhos com forte marca de fruta tropical. “É curioso que mesmo na Polónia, onde se diz que os consumidores gostam de vinhos mais doces, as nossas marcas de entrada de gama têm boa aceitação por serem como são”, diz Joana de Castro.

Com uma estratégia que passa pela combinação da venda de uvas com a produção de marcas de terceiros e, principalmente, de vinhos com marca própria, a Quinta de Lourosa é também uma unidade de turismo rural onde é possível experimentar o quotidiano da vida no campo. Para chegar aqui, Rogério de Castro fez da propriedade uma aposta pessoal que dura há mais de 30 anos. O núcleo original da propriedade era posse do seu pai, um agricultor de Gondomar. O professor habituou-se a ir à quinta desde tenra idade – “O único dia em que podia faltar à escola era quando visitava a quinta com o meu pai”, recorda – e dessas memórias resultou a ambição que o trouxe até aqui. Ao longo do tempo, foi reunindo aos quatro hectares originais 23 artigos comprados aos vizinhos até que a Quinta de Lourosa chegou aos actuais 27 hectares – uma área apreciável no universo dos Vinhos Verdes. Para ele, as vinhas que instalou e desenvolveu e que estão na origem do trabalho da filha são bem mais do que um fim económico em si mesmo. São como que a prova final de um trabalho académico de quatro décadas.  

Dos vinhos produzidos na Quinta de Lourosa, só uma ínfima parte fica no mercado nacional. A guerra de preços nas gamas de entrada e a concorrência acrescida numa região onde reside a força motriz do espírito de iniciativa do país, que se constata na proliferação de marcas, forçaram a procura de alternativas no exterior. Mas após a consolidação na exportação, Joana de Castro e Rogério de Castro ensaiam um regresso a casa. Na região de Lisboa têm já um distribuidor e os resultados são “muito positivos”, diz Joana. Em breve será possível que esta estratégia se alargue a todo o país.

Para o mercado nacional, a Quinta de Loureiro tem três trunfos: um verde de lote, um Alvarinho e o Vinha do Avô. O vinho verde é feito a partir das castas Arinto e Loureiro e conserva os principais pergaminhos da região - aromas intensos da Loureiro, bom volume de boca e o nervo característico da Arinto. Um vinho directo, harmonioso e eficaz que custa no mercado 4 euros. O Alvarinho tem aromas mais escondidos. A sua força está na concentração que exibe na boca, os toques de fruta fresca que impõe e a complexidade de notas de barrica – estagiou parcialmente em madeira de segundo e terceiro ano. É um Alvarinho muito saboroso e interessante, com excelente aptidão gastronómica.

O Vinha do Avô é para já uma amostra do poder de fogo da Quinta de Loureiro. A edição que está no mercado limita-se a 1500 garrafas magnum. Mais do que uma prova de mestria na criação de um lote, este vinho, tenso, com volume e profundidade, é um belo testemunho do poder da Arinto para fazer um vinho original, com carácter, garra e um enorme potencial de envelhecimento. Numa altura em que os Vinhos Verdes arriscam alguma massificação induzida pelo seu sucesso internacional, é um exemplo acabado do potencial da região para fazer vinhos de classe, com identidade própria que resulta da combinação de uma certa irreverência enológica com o potencial do terroir. Cada garrafa custa 30 euros. Um preço sensato para quem quiser experimentar um vinho singular e com muita personalidade.

--%>