Fugas - Vinhos

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Um Porto celebrado, que vinha do frio

Por Abel Coentrão

O que une Portugal e a Terra Nova? Toda a gente sabe que é o bacalhau, claro. Mas a resposta está incompleta: o vinho do Porto também está na rota dos dois territórios. A história singular dos cascos que seguiam viagem de barco, estagiavam em Harbour Breton e desembarcavam depois em Inglaterra está a ser investigada pelo agrónomo António Magalhães.

Quando alguém se pergunta o que une Portugal e a Terra Nova, a resposta imediata é: bacalhau.O que poucos sabem é que a resposta está incompleta, e que, durante séculos, nessas viagens de transporte do fiel amigo de Newfoundland para os portos portugueses, uma família de ingleses, os Newman, levaram, na volta para aquelas paragens frias, cascos de vinho do Porto que, depois de submetidos a estágio em Harbour Breton, seguia para Inglaterra, onde era aclamado pelos consumidores mais exigentes. O fim da exportação do Porto a granel acabou com esta triangulação virtuosa, há duas décadas, mas a Fladgate Partnership está apostada em manter viva esta história carregada de aspectos lendários sobre um porto de grande qualidade, Matured in Newfounland.

Nas prateleiras das liquor stores de São João da Terra Nova, St John’s, as garrafas de Newman’s Celebrated Port costumam estar numa posição de destaque. Este ruby tem ainda muita procura na ilha que os portugueses frequentaram, à procura de bacalhau, durante séculos, ainda que o seu conteúdo não seja produzido segundo as características que deram fama à marca. Hoje em dia, o vinho segue engarrafado de Portugal e já não é submetido ao estágio nestas paragens, bem mais frescas do que Gaia e as suas caves, que lhe garantia um bouquet, uma textura e um sabor bastante distintos. Hoje, o que o distingue, para além das qualidades adquiridas em Portugal, é mesmo a sua história singular, que está a ser investigada pelo agrónomo António Magalhães, da Fladgate Partnership, e que um empresário e escritor canadiano com ligações ao nosso país gostaria de ver retomada.

Mas para começar a perceber esta história o melhor é dar um salto a Dartmouth, bela cidade no Devonshire, sudoeste da Inglaterra, elo ancestral comum de várias famílias inglesas que a protagonizam. São elas os Newman, que no início do século XVIII se haveriam de estabelecer no pequeno porto de Harbour Briton, na Terra Nova, para pescar, secar e comercializar bacalhau, e os Hunt, os Roope e os Teague, que criaram uma sociedade comercial, com representação em Portugal e que, entre outros produtos, lidava com o fiel amigo, pois claro, mas também com o vinho do Porto, que a determinado momento passou a ser usado como pagamento das valiosas cargas do bacalhau descarregadas no Norte do país. Um bem trocado também por sal, precioso, também ele, mas que, mesmo às toneladas, não chegava para cobrir o valor da carga recebida. 

Desde 1828, a Quinta da Eira Velha, no Pinhão, foi fornecedor exclusivo do vinho necessário para equilibrar esta relação comercial da Roope, Hunt & Teague com os Newman. Na sequência da crise provocada pela filoxera, os Roope acabaram por comprar a propriedade aos seus anteriores donos e, mais tarde, em 1938, venderam-na, também eles, mas aos Newman. Em 1907, depois de 200 anos dedicados ao comércio de bacalhau, estes tinham abandonado Harbour Breton e, a partir da capital da Terra Nova, St John’s, apostavam tudo no outro produto que lhes sustentou o negócio, o vinho do Porto. Na década de 1950, a família tratou de instalar no lagar da propriedade no Douro um conjunto de painéis de azulejos que celebrava essa relação triangular, e que garantiram a sobrevivência desta história, mesmo depois da sua saída de Portugal com a venda da Eira Velha à Fladgate Partnership, em 2007.

Foram estes painéis, da autoria de Fernando Gonçalves e produzidos na Fábrica do Carvalhinho, em Gaia, que puseram o responsável pela viticultura da Fladgate, António Magalhães, no encalço deste legado associado a uma propriedade onde, por acaso, antepassados seus, o avô e o bisavô, tinham trabalhado para os Roope. O experiente e reconhecido agrónomo teve a sorte, pelo caminho, de conhecer o empresário e escritor Jean-Pierre Andrieux, um estudioso da pesca do bacalhau, pelos portugueses, na Terra Nova, que o pôs em contacto com Doug Wells, o guardião da história local da pequena localidade de Harbour Breton. Criado este novo triângulo, Magalhães teve acesso a outras fontes de informação sobre a presença dos Newman na ilha que lhe permitiram perceber melhor o que é história, e o que é lenda, no processo de produção deste porto que se deu muito bem com as temperaturas mais frias daquelas latitudes, que o mantinham “muito mais brilhante, com a fruta e a frescura intactas” refere o enólogo da Taylor’s, David Guimaraens.

Economia da logística

“Esta história é muito bonita. E está muito ligada à própria natureza do vinho do Porto, que se desenvolveu graças aos comerciantes”, assinala o enólogo responsável pelo recém-criado Quinta da Eira Velha, um vintage apontado ao exigente mercado canadiano — o terceiro maior consumidor de vinhos das categorias especiais do grupo — que ostenta no rótulo a ilustração do veleiro Retriever. No final século XIX, repetindo uma tradição que tinha pelo menos mais dois séculos, este elegante navio de três mastros saía de Harbour Breton carregado de bacalhau para o ávido mercado português, e regressava a casa carregado com sal e com cascos de vinho do Porto. Parte destes seguiam para o mercado da América do Norte, mas algumas das pipas eram guardadas em armazém, podendo ali ficar meses ou anos, antes de serem enviados para nova viagem pelo Atlântico, desta vez rumo a Inglaterra. 

Com dois anos de estudo, o agrónomo da Fladgate já deu uma sacholada numa das lendas sobre a origem deste vinho torna-viagem, que situava a sua origem num episódio épico.

Um dos painéis da Eira Velha mostra um navio a ser atacado por piratas, numa cena inspirada numa pintura a óleo que os Newman tinham em casa, e que uma jornalista, Marjorie Mews, situou no século XVII. Segundo a lenda, para escapar ao ataque, o capitão do Jenny desviou-se do rumo que o deveria levar para Inglaterra e, no meio do Atlântico, decidiu ir para a Terra Nova, onde teria sido obrigado a passar o Inverno, provocando essa inovadora maturação do vinho que carregava no porão.

Uma parte disto aconteceu de facto, mas no século XIX, e António Magalhães descobriu no Museu Marítimo de Greenwich uma gravura exactamente igual ao quadro dos Newman, mandada executar pelo capitão desse navio. Este conseguira salvar uma carga de vinho do Porto das garras de corsários, levando-a, intacta, mas para o destino previsto. Menos épica, mas porventura de verdade também duvidosa, existe uma outra lenda que diz que numa dessas viagens de triangulação entre Portugal, Terra Nova e Inglaterra, alguém se esqueceu de duas pipas no porão de um navio durante o Inverno, naquele território hoje integrado no Canadá, descobrindo-se, na chegada ao destino, as maravilhas que isso fazia ao vinho.

David Guimaraens assinala que, muito provavelmente, o vinho começou a ser levado para a Terra Nova por uma questão de economia da logística, já que os navios saíam de Portugal habitualmente carregados com sal, essencial para o bem conhecido processo de preservação do bacalhau que os ingleses levavam a cabo na Terra Nova. Os cascos de Porto eram ali armazenados, e se uns saíam quase de imediato para os mercados de destino, é natural que, em anos menos bons, no comércio, algumas pipas tenham ficado mais tempo nos armazéns de Harbour Breton, onde acabaram, então, por sofrer essa paragem na fermentação cujo resultado, depois de reconhecidas quer pela empresa, quer pelos consumidores, foi replicado ano após ano.

Na verdade, ninguém sabe bem como tudo aconteceu, e isso pouco interessa, porque, como nota António Magalhães, as lendas, verdadeiras ou falsas, ganharam vida própria. O que se sabe é que os ingleses, gente letrada, que tomavam conta das instalações dos Newman em Harbour Briton, onde até havia um “clube” de convívio, eram eles próprios apreciadores de Porto, e o mais provável é que, ao acaso, se tenha juntado o engenho humano para transformar uma descoberta num processo de estágio assumido que perdurou até há poucos anos, dando ao mundo um porto afamado: o Matured in Newfoundland.

A Taylor’s continua a produzir o porto que a Newman’s vende. Jean-Pierre Andrieux, que se tem esforçado por manter vivas as relações entre a Terra Nova e Portugal — seja pelos livros que escreve, seja pela homenagem que organizou, no ano passado, aos bacalhoeiros portugueses sepultados em St. John’s — quer mais. O empresário gostava de ver produzida uma edição especial comemorativa desta relação transatlântica, com três ou quatro pipas de Porto que pudessem repetir a viagem de ida e volta entre o Porto e St. John’s, algo que, neste momento, não é legalmente possível. Entretanto, considerando os seus esforços para divulgação desta história que une os dois países, o canadiano vai ser entronizado, já este mês, como cavaleiro da Confraria do Vinho do Porto, decisão que o “deixou muito honrado”, explicou à Fugas.

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